Capitulo 41 - O apartamento
...
Bernardo:
O quarto estava silencioso, mergulhado numa escuridão acolhedora. Só o som suave do vento do lado de fora quebrava aquele silêncio profundo da madrugada. Me remexi devagar entre os lençóis, sentindo o corpo quente de Daniel dormindo ao meu lado. Estava com sede, a boca seca. Me levantei sem fazer barulho, nu, como sempre dormíamos juntos.
A luz do frigobar me atingiu de forma inesperada quando abri a porta. A claridade fria contrastava com o calor do meu corpo, me arrepiando. Senti o frio no chão e peguei a garrafinha d’água. Foi quando ouvi a voz dele, rouca e meio sonolenta:
— Onde você vai, amor?
Olhei pra trás e o vi sentado na cama, os cabelos bagunçados, os olhos semicerrados me encarando. Ele me observava de um jeito... quase faminto.
— Só fui beber água. Não queria te acordar — respondi, fechando a porta da geladeira.
— Ainda bem que acordou. — Ele sorriu devagar. — Vem aqui.
Me aproximei, e antes mesmo de dizer qualquer coisa, ele me puxou pela cintura. Seus lábios tocaram minha barriga, depois desceram para o osso do quadril. Arfei com o toque, e senti meu corpo inteiro reagir. Ele deslizou as mãos pelas minhas costas, puxando-me pra cima dele.
O beijo foi intenso, profundo. Me derreti nos braços dele, sentindo cada toque como se fosse a primeira vez. A pele dele era quente, os olhos tão escuros naquela penumbra me devoravam. Me deixei guiar. Me entreguei.
Me virei, ficando de bruços, e senti quando ele se encaixou atrás de mim. Daniel sempre foi assim — firme, cuidadoso, apaixonado. Quando entrou em mim devagar, gemi baixo, mordi o travesseiro e arqueei o corpo, querendo mais.
Ele me segurava com força pela cintura e ao mesmo tempo beijava minhas costas com doçura. Cada investida era acompanhada de um sussurro, um gemido contido, um toque de carinho. Meu corpo se abriu inteiro pra ele.
Mudamos de posição. Sentei sobre ele, de frente, com as mãos em seu peito, rebolando devagar, sentindo-o todo dentro de mim. Ele cravava os olhos nos meus como se quisesse me decorar por dentro. O prazer me tomava como uma onda — quente, forte, descontrolada.
Depois de lado, entrelaçados, ele me possuía com os olhos fechados e a boca entreaberta, gemendo no meu ouvido. Na última posição, ele segurou minhas pernas nos ombros e me penetrou fundo, rápido, selvagem. Eu gemia sem medo, sem vergonha. Só queria mais dele, sempre mais.
O orgasmo me atingiu como um raio, o corpo inteiro tremendo, meus músculos contraindo ao redor dele. E quando senti o gozo quente dentro de mim, sorri satisfeito, completamente entregue.
Ficamos ali, ofegantes, colados. O corpo dele sobre o meu, o coração dele batendo rápido no meu peito.
— Vem tomar banho comigo — ele murmurou no meu ouvido.
Nos levantamos e fomos pro banheiro. A água quente do chuveiro caiu sobre nossos corpos suados, lavando os vestígios do que tínhamos acabado de fazer. Eu o abracei por trás, encostando o rosto em suas costas largas, beijando seu ombro.
Ele se virou e me encarou. Nem precisou dizer nada. Me virei de frente pra parede, as mãos espalmadas no azulejo. Senti quando ele me agarrou pela cintura e me penetrou de novo. Gemeu meu nome no meu ouvido enquanto se movia, o som da água caindo misturado aos nossos corpos se chocando.
Foi mais rápido, mais urgente. E ainda mais intenso.
Depois, exaustos, rimos baixinho de nós mesmos. Nos secamos juntos, nos abraçamos e voltamos pra cama. Ele me puxou pra deitar de conchinha, me enlaçando com o braço forte, a respiração quente na minha nuca.
— Acho que vou te acordar pra beber água todo dia — murmurei, já com sono.
Ele riu. — Melhor fazer estoque de garrafa do lado da cama.
Sorri. E dormi com a certeza de que era dele. Completamente.
...
Gabriel:
Fazia três meses desde que meu irmão sequestrou dois amigos meus e, em seguida, deu um tiro dentro da própria boca. Eu estava ao telefone com ele quando ouvi o disparo. Na hora, pensei que o sádico do Gustavo havia matado Bernardo. Lembro-me de ter deixado o celular cair no chão enquanto mantinha os olhos fixos na sacada, esperando que ele jogasse o corpo do meu amigo. Foi quando ouvimos a voz de Théo gritar no telefone: “Ele se matou! Ele atirou na própria cabeça!”.
Talvez seja errado pensar assim, mas senti um alívio imenso ao ouvir isso. Meu irmão e meu padrasto estavam mortos. Os monstros que povoavam meus piores pesadelos haviam desaparecido, e isso, de alguma forma, me deu paz.
– Tem certeza de que está pronto? – Miguel me perguntou naquele fim de semana, quando a polícia finalmente liberou o apartamento para que Pedrinho e eu pegássemos nossas coisas.
– Tenho – respondi, respirando fundo e apertando a mão de Nick, que tinha feito questão de vir comigo naquela noite para me acompanhar nesse momento difícil.
Olhei para Pedrinho, que respirava ofegante ao encarar o prédio onde vivemos boa parte de nossas vidas. Para ele, aquelas lembranças ainda eram doces, até algumas semanas atrás, quando nossa mãe morreu. Eu nem precisava perguntar para saber que um filme passava em sua cabeça. Ele se lembrava da mamãe chegando do trabalho e o fazendo rir. De Jair o tratando como um bebê. De Gustavo, sempre indiferente. Se lembrava do boneco do Ben 10 perdido durante nossa fuga, e do aniversário em que ganhou aquele presente especial.
Mas as lembranças boas dividiam espaço com as piores. Ele se lembrava da morte da nossa mãe, do desespero do acidente de carro com Gustavo, da noite em que Jair o tocou, e dos gritos do padrasto sendo torturado por meu irmão mais velho. Pedrinho ainda sonhava com tudo aquilo, e às vezes acordava chorando no meio da noite.
– Eu estou com você – disse Nick, apertando minha mão.
Assenti para meu namorado e soltei sua mão para abrir a porta do carro. Havia tirado o gesso do braço esquerdo havia apenas uma semana. Saí acompanhado dele, do meu irmãozinho e de Miguel. Um policial nos aguardava na entrada e autorizou nosso acesso ao prédio. Vários curiosos observavam da rua, e das janelas dos prédios ao redor, olhares curiosos nos seguiam. Tentei não me importar.
Subimos até o quarto andar. Abri a porta do apartamento e, ao entrar, senti um nó na garganta. Estava tudo igual: o sofá, a estante, a televisão, a mesa de centro... Nada havia mudado. Aquele espaço agora pertencia a Pedro, mas me causava um peso enorme.
Pedro — ou melhor, Pedrinho — apertou minha mão esquerda, trêmulo. Olhei para ele, e vi que lágrimas já escorriam pelo rosto.
– Estou com medo, Gabriel – sussurrou, choramingando.
– Eu o levo de volta ao carro – Miguel se ofereceu – Fiquem o tempo que precisarem.
Inclinei-me e beijei a testa de Pedrinho.
– Vai ficar tudo bem, Pedrinho. Nunca mais vamos precisar voltar aqui.
– Promete?
– Prometo – afirmei com firmeza.
Ele assentiu e foi com Miguel.
Nick e eu seguimos para o quarto de Pedrinho. Pegamos a velha mala da nossa viagem a Canela, com mamãe. Enchi a mala com suas roupas e parti para o quarto de Jair buscar outra. Ao entrar, me deparei com a cama onde ele foi morto. Ainda havia uma mancha escura de sangue no colchão. Aquilo me causou asco. Peguei as malas no alto do guarda-roupa e saí o mais rápido que pude.
Depois de guardar o restante das roupas de Pedrinho, segui para o meu quarto. Ali, memórias horríveis retornaram. Uma vida de abusos. Um irmão louco que me dominava e se satisfazia à custa de uma criança indefesa.
– Quer que eu pegue suas coisas enquanto você espera lá fora? – Nick perguntou, com a mão no meu ombro.
– Não precisa – menti, tentando parecer forte. – Eu dou conta.
Respirei fundo e abri a última mala. Ali, naquela cama, tive algumas das noites mais traumáticas da minha vida. Com ajuda de Nick, dobrei minhas roupas e as guardei. Não eram muitas, mas encheram a mala até o limite.
– Eu lembro do dia em que te dei isso – disse Nick, segurando um moletom vermelho – Foi quando nos conhecemos.
Peguei o casaco e o acariciei, sentindo o tecido familiar. O perfume adocicado e intenso ainda estava ali. O cheiro dele.
– Amo esse casaco – murmurei, o abraçando – Foi o primeiro presente que me deu. E ainda tem seu cheiro.
– Você fica lindo com ele – ele disse, tocando meu rosto com carinho – Eu te amo, Gabriel.
– Também te amo – respondi, me inclinando para beijá-lo.
Terminamos de arrumar tudo, e descemos com as malas. Colocamos no porta-malas, e Miguel nos levou para casa. A casa onde eu morava desde que fugi de Gustavo.
Tecnicamente, eu e Pedrinho deveríamos estar em um abrigo, mas Miguel usou sua influência para nos manter sob sua guarda até minha maioridade. Sabia que isso tinha dedo de Bernardo, que temia nossa separação. Conversamos muito sobre isso depois do sequestro, quando entrei em pânico com essa possibilidade.
Nick nunca me abandonou. Chegou até a perguntar aos pais se eu poderia morar com eles, mas eles recusaram. Nunca aceitaram muito bem o fato de ele ser bissexual. Só queriam conhecer as namoradas, nunca um namorado. Isso me entristecia por ele. Ele merecia viver plenamente.
Às vezes, pensava se minha mãe me aceitaria. Ela morreu antes de termos essa conversa, mas no fundo, eu sabia: ela jamais me rejeitaria. Ela me amava demais para isso.
Passei a tarde com Nick. Miguel buscou Bernardo na escola, e Pedrinho ficou com Cristina. Ficamos deitados assistindo a um filme. Eu o abraçava, sentindo seu cheiro... o mesmo do moletom, inebriante e reconfortante.
À noite, Nick foi embora logo após a chegada de Bernardo e Miguel. Meu amigo me cumprimentou e chamou todos para o jantar. Jantamos juntos, como uma família. Bernardo falava da escola com empolgação, assim como Pedrinho, que estava de volta à sua antiga escola, com Cristina o levando e buscando. Era visível como os dois se apegavam.
– Gabriel, Cristina e eu temos conversado muito sobre você e Pedrinho – Miguel começou, ao final do jantar.
– Eu também tenho pensado bastante, Miguel. Acho que deveríamos ir para o abrigo logo... O senhor e sua esposa já fizeram muito por nós.
– Eu não quero ir pro abrigo – protestou Pedrinho.
– Ninguém vai para abrigo nenhum, meu príncipe – Cristina disse, afagando o cabelo dele – E o que fizemos foi de coração, Gabriel. Gostamos muito de vocês dois.
Olhei para Bernardo, que sorria com doçura enquanto tomava um gole de refrigerante.
– Já havíamos decidido há uma semana – Miguel continuou – Mas precisávamos conversar com Bernardo antes. Hoje, no caminho pra casa, ele concordou. – Miguel cruzou as mãos sobre a mesa – Queremos adotar você e Pedrinho.
Fiquei sem palavras. Sabia do carinho entre Cristina e Pedrinho, mas não esperava por isso. Olhei para ela, que sorria com ternura. Pedrinho estava radiante. Até Miguel, sempre sério, parecia feliz.
– E então, queridos? – Cristina perguntou.
– Eu... eu não sei o que dizer – admiti, com a voz embargada. Era um misto de choque, gratidão e alegria. Eu queria gritar, comemorar, mas só consegui ficar parado.
– Eu sei – disse Bernardo, se levantando e me abraçando – Bem-vindos à família, irmãos.
Cristina e Miguel também se aproximaram. Logo estávamos todos abraçados. Depois, nos reunimos na sala para assistir à novela das nove. Como uma verdadeira família.
Foi decidido que o quarto de hóspedes, que eu e Pedrinho dividíamos, seria nosso oficialmente. Miguel prometeu renovar os móveis e decorá-lo do nosso jeito. Agradeci com um abraço apertado.
– Tem mais uma coisa, Gabriel – disse ele, sentando-se na beira da cama – Encontraram uma carta no bolso de Gustavo depois que ele morreu. A polícia me entregou esta semana, após a perícia. Foi escrita para você.
Uma carta? Gustavo havia me deixado uma carta? O mesmo irmão que eu me recusei a ver depois da morte? Que foi enterrado pelo Estado? Ele havia escrito algo para mim?
– O que diz? – perguntei, num sussurro.
– Acho que é algo que você mesmo deve ler – Miguel tirou uma folha dobrada do bolso, manchada de sangue seco – Se quiser, claro.
– Eu quero – disse, estendendo a mão.
– Então é sua – ele sorriu e acariciou meus cabelos – Quando Pedrinho sair do banho, coloque-o pra dormir, certo?
– Pode deixar.
Fiquei sozinho no quarto, encarando a carta. Sabia que seria difícil lê-la. Provavelmente, ele tentaria justificar tudo o que fez comigo. Mas ainda assim, desdobrei o papel.
Caro Gabriel,
Imagino que, ao ler esta carta, eu já esteja morto — e que você me odeie. Talvez até com razão. Mas preciso que saiba de uma coisa: eu te amei. Te amei como irmão, como amigo… e como homem.
Sei que você nunca me amou. Via isso no seu olhar todas as vezes que fazíamos amor. Talvez porque você nunca enxergou o que eu via.
Você é igual a ele. Mamãe dizia isso quando papai ainda estava vivo, e ela estava certa. Vocês têm o mesmo cabelo, os mesmos olhos, o mesmo sorriso.
Sempre que olho para você, é como se estivesse olhando para ele.
Sim, Gabriel. Papai e eu nos deitávamos juntos. E nos amávamos. Sei o que o mundo pensa sobre isso — e não me importo. Quando estávamos na cama, nus, era apenas amor. Amor puro, íntimo, nosso.
Quando ele morreu, foi como se arrancassem o chão sob meus pés. Mas então olhei para você.
Eu te desejei da mesma forma.
Te amei da mesma maneira.
Quando nos tocávamos, quando dividíamos a cama, era como se estivesse nos braços dele outra vez. Me sentia seguro. Me sentia inteiro.
Tentei resistir, Gabriel. Juro. Eu sabia que você não era ele, que jamais poderia me amar da forma como ele me amava. Mas eu estava desesperado. Sentia tanta falta dele, tanta dor, que acabei descontando em você.
Te machuquei.
Destruí sua infância.
E me odiei por isso.
Mas mesmo assim, mesmo com o ódio de mim mesmo, o vazio era maior. Você era a única coisa que preenchia esse buraco dentro de mim.
E então você tentou se matar.
Aquilo me destruiu. Foi como reviver a dor de quando papai morreu.
Eu não queria te perder.
Foi por isso que matei Jair. Não por Pedro. Nunca foi por ele. Foi por você.
Queria te proteger. Queria que você me visse como herói. Que me amasse, mesmo que só um pouco.
A verdade, Gabriel, é que eu teria feito qualquer coisa por uma gota do seu amor. Mas você fugiu.
De novo, senti aquele buraco.
A agonia.
E, quando soube que você tinha um namorado… meu coração partiu. Em mil pedaços.
Foi por isso que matei ele. Queria que você sentisse só um pouco da dor que eu carregava.
E agora me despeço porque não posso mais viver sem você.
Adeus, Gabriel.
Nunca vou esquecer do meu irmãozinho.
Com amor,
Gustavo
Levantei-me com a carta na mão e fui até a cozinha. Acendi o fogão e aproximei o papel de caderno, manchado de sangue, da chama azul. Fiquei olhando a caligrafia redonda de Gustavo se transformar em cinzas.
Havia lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Lágrimas de raiva, de alívio, de confusão. A carta era uma aberração — mas, de alguma forma, eu precisava saber o que ela dizia. Aquilo não justificava o que ele fez comigo. Nunca justificaria. Mas pelo menos agora eu sabia o porquê. O porquê daquela obsessão doentia, daquela destruição lenta e calculada da minha infância.
Fiquei ali, em silêncio, observando a última parte da folha desaparecer em brasas.
– Você tinha razão em uma coisa, irmão – murmurei. – Eu te odeio.
Dizer isso em voz alta foi libertador.
Depois, fui dormir com o coração um pouco mais leve.
Não curado.
Mas com espaço para recomeçar.
...
Continua...