Após uma noite inspiradora, estou liberando o primeiro capítulo do conto na visão da Emilinha.
Não sei ainda se conseguirei fazê-lo diariamente, mas virá. Tenham certeza.
Espero que curtam.
Forte abraço,
Mark
[...]
Eu sou a Emilinha... É! Aquela mesma... A filha do Zé Maria e da Clara doceira, nascida e criada em Passa-Vinte, um cantinho de Minas Gerais onde o tempo pareceu ter feito morada com uma preguicinha gostosa, de dar sono. Ali, os morros protegem nossa cidadezinha com um abraço verde que não se cansa de encantar, e cantar, pois há pássaros de todos os tipos, tamanhos e cores, e cantos, lógico! O cheirinho de café coado invade toda a cidade numa rotina bem manhosa: de manhã, após o almoço e no final da tarde, isso quando alguém não faz à noite, para dormir. Vejam só! Café para dormir... E o ranger do carro de boi então? Nu! Bonito demais! É como um hino lá da minha terra, desafinado, é verdade, até irritante, mas que, se sumisse, ninguém conseguiria mais ter paz.
Naquela época, eu, moça, contava só dezoito anos, e diziam que eu era mui formosa, mas a modéstia me impede de confirmar. Sempre tive cabelos pretos, longos, às vezes lisos, às vezes meio arrepiados, mas sempre balançantes ao vento e ao movimento do meu corpo. Ah, e sempre fui sorridente, um sorriso que, brincava papai, tinha calor até para acender o fogão à lenha de mamãe.
Mas não é das minhas formas que quero falar, nem do que os olhos alheios enxergavam em mim. Quero contar, com o coração trêmulo e a alma inquieta, uma história que sempre me atormentou, perigosa como o rio que corta Passa-Vinte, uma ameaça sempre eminente de afogamento, li-te-ral-men-te... Não queria ter que contar o que vivi, o que sofri e quem fiz sofrer, aliás, quisera eu nunca tê-lo vivido, mas a verdade da vida, às vezes, é dura, traiçoeira e magoa. Ah, sim senhor, como magoa... Então conto! Conto porque contar é o único jeito de dar forma ao que se passou, e se, ao fim, me julgarem tola, volúvel ou até cruel, que seja. Talvez só Capitu, aquela mesma dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada, me entenderia.
Passa-Vinte, para quem ainda não sabe, ganhou seu nome de uma história antiga que virou lenda, no mínimo um bom causo de boteco, contado e repetido à exaustão na venda do Seu Zé Formoso, entre um gole e outro da sua disputada pinga especial, enquanto risadas de alguma anedota se faziam audíveis. Se eu repetisse toda a história, tim-tim por tim-tim, ficaria muito chata, mas vá lá, serei rapidinha... Conta-se que, há muito, um valentão chamado Timóteo Tonico aterrorizava a comunidade. Cansados de suas façanhas, contrataram outro valentão, o Paulão Sutileza, para dar cabo dele. Mas, como o destino gosta de rir dos planos dos homens, os dois se aliaram, e a valentia dobrou. A solução? Os locais pagaram vinte contos de réis para que os dois sumissem. Daí, Passa-Vinte. Curioso, não? Pois é. Mas deixemos o passado e voltemos ao que me trouxe aqui: à pena que tremula em minha mão enquanto escrevo.
Cresci correndo pelas ruas de terra, brincando no coreto da pracinha e jogando bolinha de gude com os meninos, e, confesso com um sorriso incontido, sempre vencia aqueles mãos de pedras. Além disso, era rotina dividir pão de queijo na merenda da escola com Paulinho, o filho do Seu Ciro, neto do Tião Gumercindo, e ele comigo as frutas de época que sempre trazia. Fazíamos verdadeiros piqueniques durante o recreio, com toalha no chão, guardanapo e tudo, e ele, meu fiel defensor, sempre afastava algum inconveniente que tentasse partilhar a nossa partilha. As professoras achavam lindo; eu gostava de me sentir protegida e Paulinho... Há! Paulinho se sentia “o” Paulinho. Aliás, falando de Paulinho... Este sempre foi menino de olhos ansiosos e coração atabalhoado, mas também foi meu melhor amigo de infância, adolescência e juventude, meu cúmplice nas traquinagens, meu amigo, meu confidente, meu... quase um irmão.
Só que o tempo, esse artesão caprichoso, mudou as coisas e transformou o menino desengonçado na figura de um jovem bonito, alto, um corpo meio magro e meio forte, lapidado na lida da roça e que, aos dezoito anos, já carregava no peito um trem que eu não entendia bem. Tá! Eu não entendia, mas imaginava, aliás eu sabia, afinal, nós meninas somos temporonas e amadurecemos mais rápido que os homens. Só talvez eu não quisesse assumir, porque tinha medo de um negócio entre a gente acabar dando errado e a gente perder aquela nossa amizade que eu tanto prezava. E, vejam só que ironia, por medo demais de errarmos, por excesso de zelo, acabei errando eu.
Eu!? Bem, eu também cresci e me tornei mulher, com curvas generosas, uma bun... Sim! Uma bundona igual da mamãe que vestido algum vestia somente, agarrava mesmo! Sem dó! Também herdei um jeito que, segundo ela, era uma sabedora nata do sangue índio da vovó Cema, misturada com a teimosia do sangue português dos Almeida que ganhei de papai. Mas, se me permitem a confidência, nem eu mesma sabia o que carregava no fundo da alma. Pelo menos, naquela época não...
E como diz o ditado: “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, furou! Paulinho tanto insistiu, tanto teimou, que, mesmo apesar do seu jeitinho tímido, conseguiu me convencer. Tornamo-nos namorados!
Nosso namoro nasceu tímido, como tudo por ali: passeios na praça, mãos dadas no coreto, beijos que mal ousavam durar mais que um tiquinho... Paulinho, com seu jeito atrapalhado, queria mostrar ser mais do que era, mas o que era esse “mais”? Acho que nem ele sabia. Eu o via corar, gaguejar, coçar a nuca, e sentia nele uma batalha que eu não compreendia. Queria ele me tomar nos braços, como os heróis dos folhetins que mamãe lia? Ou era apenas o desejo confuso de um menino, meio homem ainda, que, de repente, se viu diante de uma mulher, meio moça ainda? Eu confesso: esperava algo dele! Mas era algo que nem eu mesma sabia definir. Um gesto, uma palavra, uma prova de que ele era mais do que o menino de outrora, mas como pedir ou exigir o que eu mesma não sabia?
Uma tarde, com um sol forte que dourava os morros de Passa-Vinte, trazendo um aroma de rosas que só podia vir da casa de Don’Ana, estava eu na varanda de casa, ajudando mamãe a descascar milho verde, pois faríamos pamonha, curau e bolo recheado de doce de leite, uma encomenda, quando ela, com seus olhos que pareciam enxergar além do horizonte, percebeu um silêncio vindo de mim, e que devia estar demais da conta, afinal, eu vivia falando pelos cotovelos. Ela, com aquele tom que misturava sabedoria e repreensão, disse:
- Emilinha, o que tá te dando essa gastura, menina? Paulinho te fez joça?
- MAMÃE!? - Praticamente gritei, e corei de imediato, como se ela tivesse desvendado um segredo que eu nem soube que guardei.
Baixei o olhar, por respeito e vergonha, fechei os olhos, respirei profundamente, mexendo as espigas pra lá e pra cá, e murmurei:
- Ara, mãe, é nada não. Só tô pensando na vida...
- Pensano é!? Sei... - Ela riu, um riso baixo, maternal, e continuou: - É Paulinho... Sei que é! Homem, minha filha, é como milho: tem que descascar com cuidado, senão tu perde grão bom. Depois tira os cabelinhos com jeito para não engasgar o paladar. Se ocê fizer direitinho, vai degustar felicidade pela vida toda.
- Do que a senhora tá falano, mamãe? De comida ou do papai?
- Uai! Do que será!? - Ela riu novamente e colocou sua mão sobre a minha: - O Paulinho é moço, bom, direito... Aprende ainda a ser homi, mas está em bom caminho, pois Ciro é bom exemplo, honrado, trabalhador... Cê tem que ter paciência, mas também tem que mostrar o que quer e como quer. Moça direita não se entrega de graça, mas também não deixa o pretendente pensar que não o quer, entende? Tem que sabe dosar...
As palavras dela ecoaram forte em mim, mas, em vez de clareza, trouxeram mais confusão. O que eu queria? Não sabia, uai! Paulinho era meu amigo, digo, meu namorado, meu... amor? Será!? Ou era apenas o hábito de tê-lo por perto que nos mantinha unidos? Eu não sabia, realmente... E foi nesse torvelinho de dúvidas que o destino, como um cruel menestrel, resolveu me testar.
Junho passou voando, mas, antes de entrarmos em julho, seria a Festa de São Pedro se anunciou. A praça de Passa-Vinte se enfeitou de fitas e bandeiras. Nu! Esteve tudo lindo demais! O cheiro de canjica doce, de doce de leite, pé de moleque, quentão e vários outros quitutes inundava o ar, e o som do acordeão do Seu Alaor, que parecia fazer os morros tremerem, deixou tudo com uma cara de festa da capital. Taí! Nunca soube se teve esse tipo de festa na capital... Eu, com um vestido florido que minha mãe cosera com capricho, sentia os olhares de todos sobre mim, mas me interessava buscar apenas os de Paulinho. Ele não tardou a chegar, todo arrumado, aprumado mesmo, uma belezinha! Veio com uma calça de brim azul-marinho, uma camisa xadrez em tons de azul e vermelho, e um perfume forte que certamente era de Seu Ciro. Estava bonito... Acho que já falei isso, né? Mas, enfim... Ainda assim, havia nele aquela danada timidez que o fazia gaguejar ao se aproximar de mim e me fazia rir por dentro e por fora, ainda mais quando ele fazia as dele, tentando ser charmoso. Ele, quando me viu... Há! Vi seus olhos brilharem e ele veio rapidinho, rapidinho, bem rasteirinho mesmo, até mim, me olhando de cima a baixo e dizendo, a voz falhando:
- Tu tá... tá... tá... Nu! Parece uma flor que Deus caprichou, Emilinha.
Ri, não por maldade, mas porque seu jeito atrapalhado era, de alguma forma, encantador. Agradeci o elogio e também o elogiei, claro. Daí, ficamos os dois, nos olhando em silêncio, sem saber mais o que dizer. Beijar ali nem pensar! Afinal, toda a comunidade estava ali e seria dar munição para mexeriqueira. Puxei-o para o centro da pracinha e começamos a dançar. Logo partimos para a quadrilha e dançamos um tantão, com o roçar dos nossos corpos trazendo um calor que não era só da fogueira. Enquanto girávamos, eu me perguntava: era amor aquele brilho nos olhos dele ou apenas o reflexo do fogo? E eu, o que sentia? Seria ele o homem que eu sempre quis ou era apenas o menino que eu me acostumei a ter ao meu lado? Eu sentia, eu queria, só não sabia o quê.
E no meio dessa chuva de dúvidas, uma tempestade chegou, rápida, sem aviso prévio, com nuvens escuras cobrindo toda Passa-Vinte, e tinha nome: Leonardo ou Léo, um primo meu, filho da tia Valdete, lá da capital. Ele chegou do nada num jipão novinho, novinho, reluzente de limpo, mas que não ficou assim por muito tempo, graças às estradas empoeiradas de cá. Tinha seus 22 anos. Era alto, grandão, encorpado... Passa gel no cabelo para não ficar tudo arrepiado e usava uma camisa diferente, polo se não me engano, que parecia gritar “sou da cidade grande, seus caipiras!” Eu não lembrava dele, mas assim que me viu, já veio me abraçando com uns dizeres meio íntimo demais para o meu gosto:
- Prima, tu tá cada dia mais bonita!
Depois se virou e apertou a mão do Paulinho, esbanjando confiança para desespero do meu namorado:
- E aí, Paulo!? Então, tu é o namorado da minha prima?
Sua espontaneidade me fez corar igual um tomate e não sabia se só da surpresa ou de algo mais. Léo era diferente, admito. Tinha um charme natural que beirava a arrogância e um sorriso que parecia querer mostrar para todos que ele era o sabido ali do lugar. Paulinho... Ah, coitado! Paulinho estava lá quando ele chegou e viu aquele abraço cheio de braços e dedos, e vi em seus olhos uma raiva que nunca tinha visto antes, ou seria decepção comigo? Afinal, eu deveria ser a moça direita que não aceita essas aproximações, mas com Léo, acabei deixando, em respeito ao parentesco, acho...
Léo ficou em Passa-Vinte por uns bons dias. Cada um deles foi um tormento diferente para Paulinho e uma confusão para mim. Léo não se cansava de contar histórias da capital, das festas, das luzes de natal, da faculdade de direito que fazia, de um mundo que eu só conhecia de ouvir falar. Fiquei deslumbrada, claro, quem não ficaria?
Não sei se Léo não via ou se ele era simplesmente indiferente ao incômodo que causava em Paulinho. Achei até que ele abusava! Quis e começou a me ensinar a dançar um tal de sertanejo que aprendeu na faculdade, bem diferente das modas de viola ou da catira dançada por aqui. O jeito dele era mais perto, abraçado, com as mãos na minha cintura, me puxando mesmo. E eu, bocó de tudo, ria, não porque queria, mas porque suas passadas desengonçadas mostravam que ele falava mais do que sabia. Deixei estar e fingi aprender, porque pensei que ele quisesse me impressionar sendo legal, porque dançar não era o seu forte. Paulinho não chegou a ver esses momentos, nem podia, afinal, ele era o meu namorado, o único que, além do meu pai, encostou a mão em mim. Papai, a princípio desconfiou daquele “moço da cidade”, mas não demorou muito e passou a elogiá-lo, dizendo que ele tinha um jeito bom. Eu, no meio disso tudo, sentia um aperto no peito. Não era amor, isso não. Era mais uma curiosidade, uma imaginação, uma... Não sei! Talvez tentação de imaginar como seria a vida além dos morros de Passa-Vinte, embaladas pelas histórias do Léo.
Uma noite, num sanfonada fora de época inventada pelo Seu Alaor, aproveitando uma ausência do Padre Cláudio, com a praça iluminada, Léo me puxou para dançar, lá mesmo, no meio de todos. Não vi mal algum, afinal, era meu primo:
- Você está linda demais, prima. Sortudo o seu namorado, viu?
- Brigada. Léo, melhor a gente não exagerar. Paulinho não tarda a chegar e pode não gostar de ver a gente dançando aqui.
- Sério!? Fazemos algo errado?
- Não é que... - Calei-me com medo de ofendê-lo.
Suas mãos firmes me davam segurança e ele seguiu falando, sussurrando no meu ouvido na verdade, fazendo-me rir, mas também me fazendo tremer. Não era amor, repito, mas havia algo ali, um jeito de... falar, de instigar, de me fazer querer conhecer um mundo que eu não conhecia, que me deixa intrigada.
Seguimos dançando, afinal, não fazíamos nada errado, ou fazíamos? Certo é que, depois de um tempo, vi Paulinho parado do outro lado da praça, olhando-nos com uma chateação no olhar. De repente, ele veio, com uma coragem que eu não sabia que ele tinha que até pensei que fosse dar briga. Já me preparei para apartar a contenda, no mínimo gritar, mas ele, ao contrário, apenas falou e com uma voz trêmula:
- Com licença, Léo, mas essa dança é minha… E a namorada também!
Leonardo o encarou e, ao invés de me soltar para o meu namorado, me apertou ainda mais. Nem sei se o Paulinho notou, acho que não. Então, o Léo sorriu de canto e caçoou, pelo menos, eu entendi assim:
- Relaxa, Paulinho, é só uma dança. A prima não vai fugir “docê”.
Não gostei da caçoada, não senhor. Olhei invocada para o Léo e depois para o Paulinho, sorrindo de nervosa, tremendo mesmo:
- Deixa, Léo, o Paulo tem razão.
Léo pareceu não ter gostado do que ouviu e me manteve presa em seus braços, só soltando quando eu fiz força para sair. Peguei na mão do Paulinho e nos afastamos. Passamos a dançar e eu fiquei com vergonha de encará-lo, medo, mas vergonha do mal estar que causei. Me sentia no meio de um jogo de bolinhas de gude, sendo eu a bolinha.
Só que o jogo não estava divertido, não para mim, muito menos para o Paulinho que tinha chamas saindo pelas ventas. Só depois de um tempo consegui olhá-lo nos olhos, que estavam estranhos, meio... apagados. Mas logo ele se encantou comigo novamente, com meu sorriso que, longe de ser espontâneo, era o melhor que eu tinha a oferecer naquele momento. Agradeci a Deus por ele não ter me inquirido do porquê fizera aquilo com o Léo, ali, na frente de todos, porque eu não saberia o que dizer. Mas o seu olhar...
Dançamos e enquanto girávamos, eu tentava ler o que havia naquele olhar. Era amor? Ciúme? Medo? E o meu, o que mostraria? O que eu queria, afinal? Paulinho, com seu jeito simples, mas honrado e disposto a se dar para mim, ou o sonho que Léo tentava vender? Uma realidade nova, um sonho inalcançável ali em Passa-Vinte.
Com o tempo e nossos corpos colados, tudo se acalmou e dançamos um bocado, girando, agora rindo, nos olhando como antes, nos querendo. Nem sei como saímos dali, mas rapidinho estávamos num canto perto da igreja e Paulinho me beijou com uma urgência que me surpreendeu. Respondi ao beijo surpresa, mas feliz, um calor gostoso me tomando de arroubo. Só que além da felicidade, ainda havia em mim uma sombra, uma dúvida que me percorria o ser como um calafrio, algo que nem eu ousava confessar para mim mesma. Numa pausa, afinal, o ar me faltou, falei, com um meio sorriso:
- Tu tá aprendendo, Paulinho, tá ficando quase bom.
“Quase bom...” De onde eu tirei isso, meu Deus!? Eu só beijei dois homens em minha vida toda, papai, Paulinho, vovô Beto e vovô Antônio. Ok, quatro na verdade, mas foram só eles e só o Paulinho na boca. Ele, aliás, me olhou, com aqueles olhos que pareciam implorar por uma verdade que eu não sabia dar. Fui covarde? Fui. Deixei o momento passar, sem dizer o que realmente me pesava. Só sabia que havia falado besteira e preferi não mexer para não feder ainda mais.
Dois dias depois, eu estava sozinha no tanque, terminando de lavar uma trouxa de roupa encomendada à mamãe. Do nada, senti duas mão apertarem minha cintura, depois fazendo cócegas em minhas costelas. Ri porque sou cosquenta mesmo e tremi, tentando fugir daquela brincadeira sorrateira. “Paulinho tá ficando ousado!”, pensei, e decidi me virar para lhe dar um beijo em resposta. Só que quando me virei, já fazendo um meio bico, vi Leonardo com seu sorriso suspeito. Surpreendida, não sabia o que fazer e tentei dar um passo atrás, mas o tanque de roupas limitou minha fuga. Leonardo me prensou e beijou a boca, e... era diferente! Nunca tinha experimentado assim, com uma língua invadindo e dançando dentro da minha boca. Sei lá... Era estranho e me perdi. Acabei ficando, ficando... Só depois de um tempo, aliás, depois de Genoveva, a minha galinha, minha melhor amiga gritar aos quatro cantos o meu erro, é que me dei conta do que fazia. Empurrei Leonardo e lhe dei um baita bofetada no rosto, daquele de estalar mesmo. Soube que foi alto, porque a própria Genoveva se calou e sumiu, talvez assustada com a minha reação:
- Nunca mais me faça isso, Leonardo! Cê me respeita que sou moça direita. Tenho namorado e hei de me casar de branco na igreja, com as benção do padre e de Deus!
- Nossa, Emilinha! Foi... tão ruim assim?
- Não muda de assunto, seu desabusado... Nunca mais encosta em mim, entendeu?
Empurrei-o de vez e entrei em casa, trancando-me em meu quarto. Ele bateu algumas vezes, querendo conversar, se desculpar, mas não abri. Vai que ele tentava de novo, sei lá... Ele disse algumas palavras bonitas por detrás da porta mesmo, mas eu não ouvi. Ouvi, mas não aceitei. Afinal... Ara! Não adiantava falar que se arrependeu depois de dizer que estava apaixonado por mim, não é? Apaixonado!? Ele disse apaixonado? Por mim!? Eu ouvi direito? Só podia ser maluquice da minha cabeça, afinal, o que eu tinha para oferecer para um moço da cidade grande? Logo eu, a Emilinha de Passa-Vinte.
Léo partiu no dia seguinte, justificando ter que terminar um trabalho para a faculdade, além de dizer que estava para começar um tal estágio num escritório de Beagá. O povo de Passa-Vinte riu do moço da capital que não aguentou o “sossego do interior”, claramente falando do trabalho duro, alguns até o chamaram de mole, mas eu não ri.
Paulinho, desde o forró, me olhava diferente com um misto de amor e desconfiança, como se temesse que Léo tivesse levado algo que era dele. E eu, confesso, não sabia se ele estava errado.
Na noite seguinte, sob uma lua cheia que parecia iluminar até os segredos da alma, fomos à beira do rio. Eu, com um vestido leve, sentia a brisa brincar com o tecido, como se quisesse revelar o que eu aprendi a esconder desde criança. Segurei a mão de Paulinho, com um tremor que eu não sabia explicar. Quando ele me beijou, com aquele ardor que misturava amor e desespero, correspondi, mas uma parte de mim estava distante, lembrando de Léo e do seu beijo ousado. Peguei-me comparando o beijo dos dois e isso me doeu fundo na alma, afinal, Paulinho não merecia tamanha... Ah, Deus, nem sabia como pensar isso, porque só me vinha traição à mente, e é duro admitir, talvez tenha sido:
- O amor é um trem danado de complicado, né, Paulinho? - Falei, com a voz baixa, os olhos fixos no rio, procurando sei lá o quê.
Ele me olhou, certamente com o coração na garganta:
- Por que tá dizendo isso, Emilinha? Aconteceu alguma coisa?
Nu! Como ele sabia? Hesitei por um instante, pensando no que dizer. Pior, comecei a tremer, a suar frio... Pensei em contar tudo, eu queria: sobre a confusão que Léo trouxe, o vazio que suas histórias deixaram, o beijo roubado, a dúvida sobre o que eu queria ou quem queria... Mas as palavras não vieram. Eu não queria magoar o Paulinho, não ele, nunca. Mesmo que eu tivesse dúvidas, por certo não lhe queria mal algum, nunca lhe quis e nunca lhe quereria mal. Então, eu ri, um riso fraco, resignado:
- Uai, Paulinho, tu vê mistério em tudo. Só tô pensando alto.
Ele não me confrontou e digo, deveria tê-lo feito. Talvez se ele tivesse me chacoalhado, cobrado uma resposta, uma firmeza, uma postura de moça direita, eu tivesse confessado tudo entre lágrimas e pedido perdão. Até mais, teria lhe pedido que me tornasse sua noiva de vez. Mas o silêncio, esse maldito companheiro ausente, foi mais pesado que qualquer palavra. Ele me olhava, buscando nos meus olhos uma verdade que eu não tinha coragem de confessar. E eu, covarde novamente, e parecia ser essa a minha sina, ser uma covarde durante a minha vida, deixei o rio testemunhar o que eu não disse.
Naquela época, sentada na varanda, com o cheiro de café vindo da cozinha, eu me perguntava: o que era eu para Paulinho? A moça que ele amava? A menina que ele conhecia? E para Léo, com seu jeito de cidade grande, era eu o quê? Uma moça desejável? Um brinquedo para uma diversão? E o pior, o que Leonardo deixara em mim? Uma saudade de algo que nunca vivi ou a sombra de uma dúvida que eu mesma criei? Mamãe uma vez me disse que mulher era como café: precisava de tempo e jeito pra ficar boa. Mas e se o gostinho do café, no fim, não era o que o outro esperava?
Paulinho era uma certeza em minha vida e eu via que ele se desdobrava. Via de verdade! Ele me trazia flores, ajudava meu pai na roça quando não estava ele mesmo trabalhando na lida, arriscava romance em versos que me faziam rir... Mas agora havia algo no seu olhar, uma desconfiança que me feria, como se ele visse em mim uma Capitu que eu não era. Ou era? Não sei. Só sei que, em Passa-Vinte, onde o tempo é lento, meu coração corria rápido demais, e eu, Emilinha, ainda não sabia para onde ele queria ir.
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