24 – Disquete de Memórias
O papel diante de mim dizia tudo: 99,999977% de chance de eu ser o pai da Beatriz. Por um instante, o mundo parou. As lágrimas começaram a escorrer sem controle, quente e verdadeiras. Um misto de alívio e alegria tomou conta do meu peito.
Peguei o celular, não era o caso de mensagem, liguei para o Wilfredo com as mãos trêmulas.
— Alô? — atendeu ele, com a voz ansiosa, quase como se estivesse esperando a minha ligação.
- Peguei o resultado!
- Então fala logo de uma vez, caralho!! Tô quase morrendo aqui!!
- Ué, você dizia que colocava a mão no fogo pela Simone, não devia estar assim tão nervoso, não? — brinquei, tentando aliviar a tensão.
- Anderson, para de brincadeira! Conta logo, porra! — ele respondeu, quase impaciente.
Sorri, vibrando por dentro.
- Sou o pai, Wilfredo. Quer dizer, tem 99,99% de chances de Beatriz ser minha filha. (risos)
Do outro lado da linha, ouvi a risada dele explodir, seguida de uma comemoração genuína. Na mesma hora, o peso que vinha me esmagando começou, enfim, a se dissolver.
— O exame só confirma que a filha é minha. Ou seja, Simone pode até ter ficado com o Fernando... mas a filha é minha. — falei, num tom mais baixo, como quem ainda tenta se convencer.
— Para com isso, Anderson! — Wilfredo quase gritou. — Já deu, cara.
— Tá certo, tá certo, você tem razão. — Respirei fundo — Preciso parar com essas paranoias, senão vou acabar ficando louco.
— Você já tem o exame nas mãos! Confia na Simone, pô!
— Quero te ver, mano. Vamos almoçar juntos.
O encontro com Wilfredo, além da comemoração, teria uma segunda finalidade.
Nos encontramos no meio do dia, num pequeno restaurante. Wilfredo me parabenizou com um abraço firme, carregado de cumplicidade.
Conversamos aliviados, celebrando o resultado dos exames. Depois que os pratos chegaram, respirei fundo. Sabia que era hora de tocar no outro assunto.
Olhei para ele, com um misto de gratidão e vergonha.
— Wilfredo, preciso te pedir outro favor — comecei, com a voz baixa. — Eu… traí a Simone. Uma única vez. Com a Camila. E agora eu preciso saber se o Gabriel, filho dela, é meu também.
O sorriso de Wilfredo sumiu. Seu semblante ficou sério, decepcionado.
— Anderson... — ele suspirou, lento. — Isso complica as coisas, cara. Mas você precisa ser homem, teu relacionamento com ela não é brincadeira.
Abaixei o olhar, tomado por um peso de culpa.
— Eu sei… e juro que nunca mais vou fazer isso. Nunca mais.
Ele me encarou, como se tentasse ler nas entrelinhas do meu rosto se eu falava mesmo a verdade.
— Eu te ajudo. Mas só dessa vez. Não vou ser teu cúmplice para sempre. Se um dia você trair a Simone de novo, não me conte. Não quero participar disso.
Fez uma pausa e completou, tentando segurar a decepção:
— Não tô aqui pra te dar sermão, nem dizer o que fazer. Só… não me arrasta contigo se fizer merda de novo.
— Você tem toda razão, Wilfredo. Não tenho nem o que dizer.
Ele voltou a sorrir, um sorriso sincero, cheio de irmandade.
Me deu um abraço forte.
— Somos irmãos, Anderson. Sempre fomos. Só quero que entenda que eu desejo o melhor pra você.
Naquele instante, no meio de tanta confusão, senti que ainda havia esperança.
Logo depois, ele me olhou de lado, o sorriso se apagando aos poucos.
— E como você vai fazer pra pegar o Gabriel? Isso não vai ser tão simples assim, né?
Eu sabia. Mas precisava arriscar.
— Vou dar um jeito — respondi, tentando parecer mais confiante do que realmente estava. — Tenho meus meios.
Wilfredo assentiu, já pegando o celular.
— Beleza. Vou resolver isso pra você. Vou falar com um contato meu no laboratório e deixar o exame agendado. Daqui a três dias, pode ser?
— Três dias tá ótimo. Dá tempo de me organizar — respondi, aliviado.
— Fechado, Anderson. Vou resolver isso. Pode contar comigo. Mas… e se o Gabriel for mesmo teu filho?
— Nesse caso, eu vou lutar pela guarda dele.
Wilfredo franziu a testa.
— E, consequentemente, a Simone vai acabar descobrindo a traição…
— Vai — respondi, tenso. — Ela vai ficar arrasada. Mas não vejo outra saída.
— E se ele não for teu filho?
Hesitei. Minha mente girava em mil possibilidades.
— Aí… não sei. Talvez eu…
— Anderson — interrompeu ele, com firmeza — se o Gabriel não for teu filho, esquece isso. Não conta nada pra Simone. Teu segredo morre comigo.
Fiquei em silêncio por um instante, ponderando as palavras dele. Depois, assenti.
— Obrigado, Wilfredo. De verdade. É bom saber que posso contar contigo no meio dessa bagunça.
Voltei para casa com a cabeça fervendo.
O volante nas mãos, os olhos na estrada… mas a mente estava longe. Muito longe.
"Eu não tinha contado pro Wilfredo, mas se o Gabriel fosse mesmo meu filho..."
"Além de confessar pra Simone que a traí com a Camila, iria soltar outra bomba."
Entregar o vídeo pro Marcos.
O vídeo em que Suzy e Madalena aparecem — juntas, íntimas — e, em meio a gemidos e carícias íntimas, deixam escapar algo que dá a entender que foram elas que mataram o Eduardo. O pai dele.
Eu tinha esse vídeo.
Elas também tinham um meu. Um vídeo meu com as duas, ali mesmo, na minha sala da NeoThread. Eu traindo a Simone com as duas, filmado de perto.
Uma guerra fria.
Os dois lados estavam armados. Cada um com sua ogiva guardada no cofre da chantagem.
Armas de dissuasão.
Não são feitas pra atacar. São feitas pra impedir que o outro ataque.
Pra deixar claro: “Se você me ferrar, eu acabo com você.”
Nenhum de nós queria apertar o botão. Mas o dedo estava perto dele.
Sônia tinha me convencida a não mostrar o vídeo, nem pra polícia, nem pra Marcos.
Dois motivos:
1. A imagem da NeoThread.
2. Eu podia ser acusado de violação de privacidade.
Mas o primeiro motivo já era.
Faltava pouco para que eu não fosse mais dono da empresa. Então que se dane.
E quanto ao segundo… bem, eu podia mandar de forma anônima. Ou encarar as consequências. Pagar o preço. Quem sabe até merecido.
O que me impedia, de verdade, era o medo.
Porque se eu soltasse o vídeo… elas soltariam o delas.
E aí a Simone veria tudo.
Mas se o Gabriel for meu filho, e eu for contar pra Simone que a traí com a Camila… o casamento já vai pro saco mesmo.
Então… que diferença faz?
Como diz o ditado:
O que é um peido pra quem já tá cagado?
Cheguei no Condomínio, cada passo ecoava nas paredes como se o prédio também me julgasse.
Abri a porta, e ali estava ela. Alicinha.
De short jeans e uma camiseta branca justa, cabelo preso de qualquer jeito, aquele tipo de descuido que só deixa alguém mais bonita ainda. Continuava linda. Talvez até mais do que antes.
— Oi, doutor Anderson — disse ela, sorrindo com a voz doce, quase inocente.
Senti um calor súbito subir pelo pescoço. Desviei o olhar rápido demais, como um adolescente culpado. Dei um leve aceno, e fui direto para o quarto. Mas já era tarde demais.
O estrago estava feito: No quarto, eu me masturbei pensando em Alicinha.
Depois de me recompor, sentei-me à mesa, peguei uma folha em branco e comecei a escrever. Uma a uma, enumerei as possibilidades, como se, ao fazê-lo, pudesse dar algum sentido à morte de Camila.
Possibilidade 1 – Suzy e Madalena mandaram matar Camila.
É difícil confiar nelas. Já mostraram do que são capazes. A motivação? Dinheiro, claro. Com Camila fora do caminho, a herança de Gabriel — seu filho — passaria para as mãos de Marcos, que já entrou com pedido de guarda. Suzy teria muito a ganhar com isso.
Possibilidade 2 – Simone mandou Alex matar Camila.
Essa ideia me dá calafrios. Simone pode ter descoberto o caso que tive com Camila. Como? Ainda não sei. Mas ela sabe dos meus envolvimentos com garotas de programa. Se soube de Camila... poderia ter agido por vingança.
E se for isso? — pensei. E se ela quiser me matar também?
Mas… eu sou o pai da filha dela.
Possibilidade 3 – Alex agiu sozinho, por ganância.
Talvez tenha tentado roubar Camila. Pode ter achado que ela escondia dinheiro. Algo saiu do controle.
Possibilidade 4 – Uma fatalidade.
Talvez tenham exagerado nas drogas. Uma overdose. Um acidente estúpido e sem sentido. Mas, se foi isso, por que tantas perguntas sem resposta?
Possibilidade 5 – Alex é inocente.
Sônia foi clara: ser indiciado não é o mesmo que ser culpado. Pode ter sido apenas um bode expiatório. Alguém precisava pagar o preço. E se o assassino for outro — Tiago, por exemplo, o ex de Camila?
Possibilidade 6 – Marcos mandou matar Camila.
Faz sentido. Com ela fora do caminho, toda a fortuna ficaria só com ele. O que pesa contra essa hipótese é que Marcos e seus seguranças não estavam em Florianópolis no dia da morte.
Fechei os olhos por um momento, tentando organizar as ideias. Mas outras peças começaram a emergir... estranhas coincidências que me deixavam ainda mais desconfiado.
Simone comprou um apartamento no mesmo condomínio de Eduardo — que é paciente do hospital onde ela trabalha. Coincidência? Talvez. O Hospital São Francisco tem muitos pacientes. O fato de Simone ter comprado um imóvel no mesmo prédio pode ser apenas casualidade.
Mas Eduardo foi casado com Camila, que no passado foi garota de programa. E Camila tinha conexões com Alex, ex de Simone.
Não parece mais tão casual.
Camila e Alex com certeza se conheciam. Ele estava na festa na casa dela. E os dois estavam juntos na mesma foto que encontrei na internet.
Camila queria ser síndica. Mas por quê?
Para ter autonomia financeira?
Para escapar do controle de Eduardo?
Para sustentar um amante?
O amante seria Tiago? Quem sabe Alex? Outro?
Se é que havia mesmo algum amante.
Vai ver ela só queria mesmo ter algo que fosse dela, um pouco de controle sobre a própria vida?
E no centro disso tudo: Dr. Fernando. Eduardo. Camila. Alex.
E Simone, que — por coincidência ou não — se mudou para o mesmo condomínio.
Seria tudo uma teia de conexões ocultas? Ou estou vendo padrões onde só há acaso?
Larguei a caneta. A folha diante de mim parecia pesar uma tonelada.
Cada possibilidade carregava o fardo de uma verdade incômoda. Mas qual delas era real?
Se é que alguma era.
O celular vibrou.
Mensagem da Sônia:
"Rui já concluiu a venda da parte dele. Quando podemos marcar para assinar o contrato da sua parte também?"
Respondi seco:
"Sônia, segura um pouco. Preciso resolver umas coisas antes."
Guardei o celular no bolso e fiquei parado por uns segundos.
Peguei as chaves. O carro me levou até a sede da Neothread quase no piloto automático.
Subi direto. No corredor executivo, parei diante da sala que antes era do Rui. Estava aberta. Dois funcionários desmontavam prateleiras, carregavam caixas. Uma nova placa descansava encostada à parede: SUZY C. SATO – DIRETORA EXECUTIVA.
Madalena e Suzy estavam coordenando as mudanças na sala do Rui
— Algum problema, Anderson? — disse Suzy, como quem fala do tempo.
— A gente precisa conversar. Sério. Sem rodeios.
— Sobre o quê exatamente? — perguntou Madalena, braços cruzados.
Cruzei os meus também.
- É um assunto sério. Vamos na minha sala.
Entrei na sala acompanhado por Suzy e Madalena.
O ar estava denso. Cheio de expectativa, como o silêncio antes de um trovão.
Fechei a porta atrás de mim. Sem hesitar.
— Quero abrir o jogo com vocês — anunciei, direto. — Vou assinar a venda da minha parte na empresa. Mas antes… preciso que a Suzy faça algo por mim.
Meu olhar se prendeu ao dela.
Os olhos de Suzy brilharam, uma mistura de curiosidade, alerta… e talvez um fiapo de medo.
— Tive um caso com a Camila — confessei, cada sílaba pesando como chumbo. — E existe a chance de o Gabriel ser meu filho.
O silêncio foi absoluto.
Madalena me lançou um olhar de relance, frio e rápido.
Suzy arregalou os olhos, surpresa. Mas manteve o controle.
Continuei.
— Sei que o Marcos, teu noivo, tem a guarda do Gabriel.
— Quero que, daqui a três dias, você o leve discretamente até uma clínica. Preciso de um exame de DNA. Sigiloso.
As duas trocaram olhares.
Havia algo naquele silêncio compartilhado… como se tivessem entendido imediatamente as ramificações do que eu acabara de dizer.
Se Gabriel fosse meu filho, então Marcos — o noivo de Suzy — seria o único herdeiro legítimo de Eduardo.
A herança mudaria de mãos. E com ela, o jogo.
Madalena soltou uma risada baixa, cortante.
— Eu sabia. Você é mesmo um nerd tarado, Anderson — disparou, com aquele sorriso de escárnio que ela usava como arma.
Engoli a provocação a seco.
Minha voz endureceu.
— Não vou mais discutir moral com vocês — falei, firme, olhando diretamente pra ela.
— Quero que a Suzy faça o que pedi. Sem isso, não assino nada.
Parei por um segundo. Deixei o peso das palavras cair no ar.
— E mais uma coisa: sigilo absoluto.
— Porque, como vocês sabem… eu também sei dos podres de vocês.
Suzy me encarou, como quem calcula riscos.
Madalena, por sua vez, digeria a ameaça com olhos semicerrados.
Tirei um papel do bolso e entreguei a Suzy com o endereço da clínica.
Ela o pegou com calma, leu. E então falou:
— Tudo bem. Vou levar o Gabriel. Vou dar um jeito de sair sem que o Marcos perceba.
Ela sorriu. Mas não era um sorriso gratuito. Era uma negociação. Sempre é.
— Mas, Anderson — disse, com doçura envenenada — esse favor, e esse sigilo, têm um preço.
Pausou.
Como uma atriz no palco, esperando que a plateia respirasse.
— Fiz uma proposta. Você subiu o valor em 25%. Depois, numa “boa negociação”, baixou para 15%.
— Agora que vou fazer o favor… o preço volta ao valor original. Sem acréscimos. Nem descontos.
Fiquei olhando para ela. Por fora, uma estátua. Por dentro, um tabuleiro de xadrez em chamas.
Peguei o celular.
Enviei uma mensagem rápida para Sônia, pedindo o ajuste no contrato.
Suzy arqueou a sobrancelha. Surpresa. Mas não disse nada.
— Te aguardo no dia e hora combinados — falei, encarando-a.
Nos despedimos.
Quando saí da sala, meus olhos pousaram em algo encostado no corredor: uma placa, ainda sem ser instalada.
“Vensys Tech”
Franzi a testa.
— O que é isso?
Madalena sorriu. Confiante. Vitoriosa.
— Estamos só esperando você vender sua parte.
— Vamos mudar o nome da empresa pra Vensys. “Ven” de Vênus. Já que agora, as donas… serão duas mulheres.
Nada seria como antes.
Entrei no carro. Respirei fundo e vi a mensagem de Wilfredo:
“Está tudo certo para o exame. Dia e hora confirmados. A clínica já está avisada. Só falta ela aparecer com o menino.”
Respondi com um simples:
“Confirmado. Suzy estará lá com Gabriel.”
Nos três dias seguintes, vivi uma espécie de tortura silenciosa. Alicinha estava por todos os cantos: no corredor, na cozinha, no quarto com Beatriz. O tempo todo sorrindo, leve, cheirosa. O tipo de beleza que não precisa se esforçar.
E eu… eu tentando não olhar demais. Não pensar demais.
Mas cada vez que ela cruzava a sala, como se flutuasse, com aquele jeito despreocupado, eu me perguntava quanto tempo mais conseguiria manter o controle. Não era só desejo — era a cruel constatação de que talvez eu nunca tenha aprendido a me afastar do que é perigoso.
O exame se aproximava. E junto com ele, a verdade sobre Gabriel.
Mas enquanto isso… havia Alicinha.
E o inferno particular que eu mesmo criei.
Finalmente o grande dia! Cheguei à clínica quase vinte minutos antes do combinado. Era cedo demais até pro meu padrão de ansiedade. A recepcionista me pediu que aguardasse na sala ao lado. Assim que entrei na sala de espera, vi Wilfredo. Sentado numa das poltronas, celular na mão, postura de segurança à paisana, como sempre.
— Cheguei cedo — falei.
— Eu também — ele respondeu, levantando e me cumprimentando com aquele aperto de mão firme.
Mandei uma mensagem pra Suzy:
“Já estou aqui. Tudo certo?”
A resposta veio segundos depois:
“Chego em 10 minutos.”
Guardei o celular e me sentei ao lado de Wilfredo. Ele sorriu de leve, relaxado.
— E aí, tem visto o pessoal da rua? Do tempo em que a gente era moleque?
— Alguns, sim. De outros perdi o contato — respondi. — Lembra do João? O apelido dele era Rato…
Wilfredo soltou uma risada.
— Claro! Por causa dos dentes, né? Aqueles dentões da frente, parecia que ia roer tudo.
— Pois é… ironia do destino: virou dentista. E ainda por cima, acertou os próprios dentes. Tá todo alinhado agora, tudo certinho.
— A vida é uma piada bem contada às vezes — disse ele, rindo mais.
Ficamos em silêncio por um momento, rindo quieto. A lembrança daqueles dias batia fundo. Eram outros tempos.
— E o Bola, lembra? — perguntei.
Wilfredo levantou as sobrancelhas.
— O gordinho?
— Esse mesmo. Hoje em dia não pode mais dar apelido assim. Ia ser cancelado antes de crescer.
— Verdade — ele concordou. — Mas olha essa: Bola se formou em Educação Física. Virou personal trainer. Tá magro, forte, vive postando vídeo na academia.
— Tá brincando…
— Sério. A última vez que vi ele tava dando palestra sobre “superação de limites”. Quase não reconheci.
Rimos mais uma vez. A memória daqueles tempos parecia distante, quase de outro mundo.
— Naquela época todo mundo tinha apelido — eu disse.
— Qual era o teu mesmo? — ele perguntou.
— Japa — respondi. — E nem podia ser outro, né?
Wilfredo deu uma gargalhada sincera.
— É, o povo não tinha muita criatividade. O meu era polaco. Porque eu sou loiro e branquelo que nem leite.
— Polaco e Japa — murmurei, sorrindo. — Parece nome de dupla sertaneja falida.
O clima ficou leve, por um instante quase esqueci onde estávamos. Mas logo meu olhar voltou pro relógio. Os dez minutos estavam quase se esgotando. E com eles, o tempo de fugir da verdade que viria a seguir.
Wilfredo olhou pro chão por um momento, pensativo, depois riu sozinho.
— A Sônia também tinha um apelido da época de infância.
— A Sônia? Jura?
— Juro. O apelido dela era Monalisa.
— Monalisa?
— É. Porque diziam que ela parecia a Gioconda do quadro. Tinha aquele sorriso meio de canto. E também o formato do rosto, o cabelo, lembrava muito o quadro.
Caímos na risada juntos.
Não disse nada ao Wilfredo, mas na primeira vez que vi Sonia, naquela festa, isso não me passou despercebido. Ela era muito parecida com a Monalisa mesmo.
No meio da nossa risada abafada, ouvimos a porta se abrir. Era Suzy.
Ela entrou com Gabriel pela mão. O garoto parecia meio sonolento, vestindo uma camiseta azul e um boné. Tinha o olhar curioso, sem entender muito bem o que estava acontecendo. Suzy, por outro lado, estava impecável. Como sempre.
— Chegamos — disse ela, com aquele tom frio de quem está cumprindo uma tarefa.
A funcionária da clínica apareceu na recepção e nos chamou para a sala de coleta. Tudo foi feito de forma discreta, profissional. Gabriel estava tranquilo. A técnica foi simpática, colheu o material com calma, conversando com ele o tempo todo.
— Já temos o material do senhor Anderson — disse ela, olhando para a prancheta. — Podemos usar a amostra que foi colhida na semana passada.
Senti o olhar de Suzy em mim. Frio, afiado.
— Não. Vamos colher de novo — falei, me levantando. — Quero tudo feito hoje. Do zero.
A técnica assentiu sem questionar. Fez o procedimento em mim com eficiência, rápida e limpa. E pronto.
A coleta estava feita.
Nos despedimos ali mesmo. A atendente avisou que o resultado estaria pronto em três dias. Três dias até a verdade.
Saí da clínica com o estômago pesado.
Quando cheguei em casa, vi que as malas pequenas de Alicinha estavam no corredor. No sofá, uma senhora de idade conversava com Simone. Uma mulher simpática, cabelo grisalho preso num coque firme. Olhava para minha filha com ternura e segurança.
— Oi, amor — disse Simone, se levantando. — Essa é a dona Ivone. Ela vai ficar com a nossa filha agora. Alicinha vai começar no hospital, lembra?
Alicinha surgiu logo atrás, ainda com aquele sorriso leve no rosto. Ela se aproximou de mim com educação.
— Boa sorte no hospital, Alicinha — falei, genuinamente.
Ela agradeceu com um brilho no olhar, talvez de alívio, talvez de empolgação. E, com um último olhar para a casa, se despediu.
Fechei a porta atrás dela e me encostei ali por um segundo, respirando fundo.
Livre. Finalmente livre da tentação daquela moça linda, doce e perigosamente acessível.
Agora só me restava esperar.
Três dias.
Três dias até saber se Gabriel era ou não meu filho.
Três dias até a verdade.
Continua ...