Capitulo 38 - Peter Pan!
...
Théo
– Você vai acabar mal com o Bernardo – avisei Daniel, aproveitando que o Be tinha ido ao banheiro. Puxei meu irmão pelo braço até o corredor.
– E por quê, exatamente? – ele cruzou os braços, fingindo que não sabia do que eu falava. – Fiz tudo que ele me pediu.
– Mas precisava fazer aquela cara de nojo pro Gabriel? – questionei, inconformado.
Daniel fechou a cara no instante em que o garoto pisou naquele apartamento. Gabriel estava um trapo: olho roxo, lábio machucado e o braço esquerdo imobilizado. Tinha passado por um inferno, e ainda assim, no lugar onde deveria estar seguro, recebia olhares atravessados.
– Eu não gosto dele, ok? – Daniel disse, meio contrariado. – Não sei explicar, mas tem algo nele que me incomoda.
– O que ele fez? – ri de leve, achando aquilo completamente sem sentido.
– Sei lá, Théo... Ele tem um ar de santo que não me convence – Daniel procurava uma justificativa que simplesmente não existia.
Foi aí que eu entendi tudo.
– Você está com ciúmes dele! – falei, tapando a boca com a mão – Não acredito nisso, Dany!
– Não é ciúmes! – ele rebateu, corando visivelmente.
– Daniel Vilella com ciúmes do namorado... Que gracinha! – zombei. – E nem adianta negar. Está estampado na sua cara.
– Tá tão óbvio assim? – ele suspirou, passando as mãos no rosto.
– Nem tanto, mas eu te conheço. – Toquei o ombro dele com carinho. – Relaxa. O Bernardo e o Gabriel são só amigos. Não tem clima nenhum ali.
– Você tem certeza? – ele perguntou com aquele olhar inseguro. – O Bernardo já me traiu uma vez...
– Sim, mas ele mudou – falei com firmeza. – Cresceu. E te ama de verdade, Dany. Não vai errar de novo.
Ele me olhou no fundo dos olhos, tentando detectar alguma hesitação na minha fala. Mas não encontrou. Porque eu realmente acreditava no que dizia. O Be tinha amadurecido muito desde que os dois tinham terminado. Antes, ele escondia muito de si mesmo, mas hoje... Hoje ele era só um cara tentando fazer tudo certo por quem amava.
Bernardo apareceu no fim do corredor e nos olhou com curiosidade.
– Está tudo bem aí?
Daniel e eu apenas sorrimos, tentando tranquilizá-lo.
– Nada demais – Daniel respondeu, indo até ele e lhe dando um beijo apaixonado. – Coisa de irmãos.
– Sei... – Bernardo riu, alternando o olhar entre nós dois. – Estão aprontando algo, certeza. Me contem.
Na verdade, estávamos mesmo. Bem antes dos últimos acontecimentos, tínhamos começado a planejar uma festa surpresa para ele. Mas agora, isso estava em segundo plano.
– Eu? Tramando alguma coisa? Jamais! – falei brincando.
– Só se eu não te conhecesse, Théo – ele respondeu sorrindo.
Voltamos pra sala, onde a conversa rolava solta. Percebi que Daniel ainda estava desconfortável com a presença de Gabriel, mas mais tranquilo em relação ao Bernardo. Ele parecia estar enxergando que entre os dois só existia amizade.
Pedrinho acabou dormindo ao lado do irmão, e o Nick prontamente se ofereceu para levá-lo ao quarto. Os dois saíram e aproveitei para ir até a cozinha beber água. Bernardo me acompanhou.
– Ainda não tinha tido chance de te agradecer por ter me apoiado – ele disse, se referindo àquela vez em que tomei o celular do Daniel. –
Sei que você não era totalmente a favor...
– Eu sou, sim – respondi, pegando a garrafa na geladeira e enchendo um copo alto. – Aquele garoto sofreu demais. E é seu amigo. Pode não ser de longa data, mas dá pra ver que vocês criaram um laço forte.
Bernardo sorriu com os olhos.
– Confesso que não fui com a cara dele de início – sentou-se numa das banquetas da bancada de mármore – Era sarcástico, vivia provocando... Mas depois percebi que aquilo era só uma barreira. Uma defesa. Ele afastava as pessoas para não deixar que vissem o que ele escondia.
– E você ficou – comentei.
– Eu e a Roberta – ele disse. – Ela era a única do grupo gótico que realmente gostava dele. Ele nos contou tudo, mas ainda assim é impossível ter noção real do que ele passou.
– A dor estava estampada no rosto dele – falei, lembrando da cena da chegada – Mais do que o olho roxo ou o braço quebrado... Era como se ele já tivesse desistido da vida.
– Mas apesar de tudo, o Gabriel é um bom garoto – ele disse. – Até um pouco ingênuo, se for pensar.
Era difícil imaginar alguém com aquele histórico sendo inocente. A inocência dele já tinha sido arrancada à força há muito tempo.
– Ele parece sim ser do bem – confirmei – E eu achava que minha vida tinha sido difícil... perto da dele, é quase nada.
– O sofrimento dele não diminui o seu – Bernardo disse com firmeza. – A diferença é que você teve apoio.
Lembrei de tudo o que Daniel e Samuel fizeram por mim. Das piadas, dos abraços, das conversas que me ajudaram a continuar. Sem eles, talvez eu nem estivesse mais aqui.
Nick entrou na cozinha tímido, com um sorriso sem graça. Estava sozinho.
– Posso falar com vocês?
Bernardo assentiu. Nick caminhou devagar até nós, olhos presos nos próprios pés. Sentou-se ao lado do Be e começou a tamborilar os dedos na bancada, visivelmente nervoso.
– Vai, fala logo, Nick – eu disse, apoiando meu copo na pia.
– Não sei nem por onde começar – ele murmurou.
– Pelo começo, talvez – Bernardo cruzou os braços.
Nick nos olhou, envergonhado. E então falou:
– Eu... queria pedir desculpas. Pros dois.
Bernardo permaneceu sério. Eu também já imaginava que isso viria.
– Você me magoou muito, Nick – falei – Eu gostava de você de verdade. Você sabia disso. E mesmo assim me traiu com meu melhor amigo. E o pior... foi numa fase horrível da minha vida.
– Eu sei – ele disse, cabisbaixo. – E me arrependo. De verdade.
– Eu acredito – respondi. – E, mesmo com toda a dor, quero te perdoar. Porque eu já segui em frente. Hoje tenho quem me ama de verdade, e me sinto livre. Então... sim. Está perdoado.
– Obrigado – ele sussurrou, emocionado. – Bernardo... também queria me desculpar por tudo. Principalmente por ter tentado te forçar aquele dia. Eu mereci o soco do Daniel. Se eu pudesse voltar atrás...
Bernardo respirou fundo antes de responder.
– A culpa não foi só sua. Eu também errei. Eu deveria ter me afastado, mas fui fraco. Me deixei levar.
– Be... – eu disse, tentando aliviar o peso do momento.
– Eu fiz merda, Théo. Me envolvi com o Nick enquanto ainda tinha sentimentos por você. A culpa foi minha também.
– Obrigado por reconhecer – Nick disse – E... estou tentando ser alguém melhor. Principalmente pelo Gabriel.
– Ele merece – Bernardo falou – Só não brinque com ele. Não faça o que fez conosco.
– Eu jamais faria isso – Nick respondeu. – Eu tô apaixonado por ele. De verdade.
– Espero que seja – falei – Por vocês dois. E que tenha mudado, Nick.
– Mudei – ele disse. – Pena que foi tarde demais pra nós.
– É... – murmurei, saindo da cozinha.
...
Bernardo
Os quatro dias que se seguiram foram tensos para todos nós. A polícia ia e voltava constantemente para interrogar os irmãos, tentando garantir que não havia nenhuma inconsistência em suas versões. Eu via como aquilo estava desgastando os dois — principalmente Pedrinho.
Desde a primeira noite em que chegou aqui com o irmão, o garoto teve pesadelos horríveis. Enquanto Gabriel ainda estava internado, minha mãe foi quem o acalentava durante as madrugadas. Com o tempo, os dois começaram a criar um laço silencioso, uma empatia mútua que crescia a cada noite.
Na primeira noite em que Gabriel dormiu no nosso apartamento, Pedro teve mais um de seus pesadelos. O irmão tentou acalmá-lo, mas ele pediu pela minha mãe. E lá foi ela, com todo carinho do mundo, pegá-lo no colo e levá-lo para a sala. Sentou-se com ele no sofá e começou a contar suas histórias de contos de fadas — as mesmas que costumava me contar quando eu tinha a idade dele. Gabriel ficou envergonhado por Pedrinho ter incomodado minha mãe no meio da noite, mas ela não se importava nem um pouco.
— Está ouvindo as histórias? — meu pai se sentou ao meu lado na escada, de onde eu observava a cena. Minha mãe narrava a aventura de Peter Pan. Ela estava justamente na parte em que o Capitão Gancho sequestra Tigrinha, João e Miguel, e Peter precisa enganar os piratas imitando a voz do capitão. Sempre amei essa parte.
— Culpado — sussurrei, rindo baixinho. — Sempre fui fã dessa história.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, prestando atenção no momento em que o crocodilo se aproxima com o relógio fazendo “tic-tac”.
— Eu lembro que você adorava — meu pai disse com saudade no olhar. — Pedia para sua mãe ler quase todas as noites. E pediu uma fantasia do Peter Pan naquele carnaval…
Claro que eu me lembrava. Eu tinha "s3is" anos e fiz minha mãe procurar desesperadamente aquela fantasia. Na festa, me senti como se realmente fosse o líder dos garotos perdidos. Quase podia jurar que conseguiria voar.
— Eu era obcecado por aquela fantasia — ri com nostalgia.
— Eu lembro. Levou duas semanas para conseguir tirar aquela roupa — ele riu também.
— Sinto falta dessa época… Tudo era tão mais simples.
— É verdade — ele me abraçou pelos ombros. — Mas também tenho muito orgulho do homem que você está se tornando. O que está fazendo por esses meninos… é admirável, Bernardo.
— O senhor que está fazendo — lembrei-o.
— Porque você me pediu. No início, minha reação foi a que a maioria teria: entregar os dois ao Estado e deixar que a polícia cuidasse. Era mais seguro. Todo mundo disse isso. Mas eu decidi confiar em você. E não me arrependo.
— Mas está preocupado com a mãe — completei.
— Sim. Ela está se apegando demais ao Pedrinho. Não sei como vai reagir quando ele tiver que ir embora.
Ficamos calados por um tempo, enquanto minha mãe narrava a cena em que Sininho toma o veneno no lugar do Peter. Eu também estava preocupado com ela. Ela ajudava Pedro a se vestir, comprava brinquedos, o abraçava. Era como se já o visse como um filho.
— Alguma novidade sobre um possível parente? — perguntei, mesmo já sabendo a resposta.
— A única parente é a tia dele, que se recusou a cuidar de Pedro. E mesmo que aceitasse, não sabemos se aceitaria também Gabriel. Mas agora isso já nem importa. Eles vão ser enviados para um abrigo e colocados no sistema de adoção. O problema…
— …é que são velhos demais pra alguém querer adotá-los — completei. Eu já tinha lido sobre isso. Crianças acima de três anos têm chances muito menores, e irmãos são ainda mais difíceis de manter juntos. Um adolescente de 17 anos então… quase impossível.
— Exatamente — ele bagunçou meu cabelo. — Temos que nos preparar para o dia em que eles forem embora.
Ele me deu um beijo na testa e se despediu.
— Só não deixa sua mãe ver que você está aí.
— Não vou. Boa noite, pai.
— Boa noite, filho.
Fiquei ali, escutando o fim da história. E me perguntando como seria o dia em que seríamos obrigados a deixá-los partir.
— Só eu que amei a nova música da Demi? — Théo perguntou, enquanto ouvíamos o álbum 1989 da Taylor Swift pela milésima vez.
Théo tem vindo aqui em casa todos os dias para me fazer companhia — ou, nas palavras dele, “garantir que eu continue vivo”. Tem sido um apoio e tanto. Prova de que aquele Théo egocêntrico e cruel que conheci já não existe mais.
— Cool for the Summer? — perguntei, e Théo assentiu. — Eu amei! Nem sou muito fã das músicas dela, mas essa ficou ótima.
— Eu não ouvi — Gabriel comentou com um sorriso tímido.
— Isso não é nenhuma surpresa — Théo revirou os olhos. — Você nem conhecia as músicas da Taylor!
— Eu conhecia You Belong With Me — retrucou Gabriel, se defendendo.
— Meu amigo, conhecer pelo menos essa era o mínimo! — Théo zombou. — Que tipo de viado é você?
— Do tipo passivo das trevas — Gabriel respondeu com um sorriso atrevido. Um sorriso que eu não via nele desde que Nick apareceu.
— Nossa! — Théo fingiu espanto. — A bicha é passiva!
E caímos os três na gargalhada. O que eu mais admirava no Théo era a forma natural com que ele lidava com tudo. Mesmo nos momentos tensos — como quando Gabriel ficava calado demais ou apertava o braço engessado com força — ele mantinha o bom humor. Até nas vezes em que Nick veio visitar, Théo conseguiu deixar o clima leve, como se quisesse afastar toda a dor e o peso que pairava sobre nós.
— Você devia saber disso, Théo. Afinal, ele namora o seu ex. E a gente sabe muito bem que o Nick é ativo — brinquei.
— É verdade — Théo revirou os olhos. — Esqueci que ele já pegou os três!
— Isso foi completamente desnecessário — comentei, rindo. — E voltando ao tema da Taylor... O Gabriel curte rock.
— Não consigo gostar desse troço — Théo reclamou. — É gente gritando com aquela voz de demônio!
— Nada a ver, Théo — falei. — Rock é um gênero bem amplo. Nem todo rock é metal. Aquela música que o Daniel cantou pra mim na festa junina é rock.
— O Daniel canta? — Gabriel perguntou, surpreso.
— Canta sim — respondi. — Tão bem quanto nada.
— O amor além de cego é surdo também, Gabriel — Théo debochou.
Alguém bateu à porta do meu quarto e a abriu em seguida. Era meu pai.
— Gabriel, precisamos ir à delegacia agora. Encontraram um corpo que bate com a descrição do Gustavo. Precisamos que você e Pedro façam o reconhecimento.
— Graças a Deus! — falei, enquanto Gabriel suspirava, aliviado. — Eu sabia que esse maluco não ia escapar por muito tempo.
— Calma, Bernardo — meu pai advertiu, com aquele tom de voz firme que usava quando vestia o distintivo. — Ainda não sabemos se é ele. Encontraram um suspeito morto, mas o reconhecimento precisa ser feito.
— Onde ele foi encontrado? — Gabriel quis saber.
— Em uma vala, perto do apartamento onde vocês moravam — meu pai respondeu, num tom neutro e profissional. — Foi morto a tiros.
— Executaram ele? — Théo perguntou, visivelmente chocado.
— Nada foi levado. Se for realmente o Gustavo, parece ter sido um tipo de acerto de contas. Alguém que viu as reportagens na TV.
— Pelo menos alguém acreditou em mim — Gabriel murmurou, referindo-se às matérias que sugeriam que ele havia matado o padrasto e forjado tudo.
— Esses jornalistas não fazem ideia do que estão dizendo — meu pai colocou a mão no ombro dele. — A verdade vai aparecer. Agora vamos.
Eles saíram com Pedrinho. Minha mãe aproveitou para ir às compras e trazer mais roupas para os meninos. Apesar de já terem algumas peças novas, ainda estavam sem muitas opções, pois as roupas que tinham ficaram no apartamento de Jair, que seguia interditado para perícia.
Ficamos só eu, Théo e Mirian em casa. Théo e eu fomos para a sala e começamos a assistir a videoclipes na TV, enquanto ele me contava que as coisas com Samuel estavam indo muito bem. Fiquei feliz por ele — ele merecia.
De repente, ouvimos tiros vindos da rua. Corremos para a sacada que dava para a frente do prédio. Um aglomerado de pessoas já se formava ao redor de dois corpos caídos no chão. Eram dois homens. E ambos vestiam fardas da polícia militar.
— São policiais? — Théo perguntou, tremendo.
Observei melhor e confirmei com um aceno de cabeça. Antes que eu pudesse responder, Mirian se aproximou, vinda do corredor, e alguém começou a esmurrar a porta com força.
Foi nesse momento que eu soube. Soube exatamente quem era, antes mesmo da porta se abrir.
— Não, Mirian! Não abre essa porra, caralho! É o doente do Gustavo!
Mas já era tarde demais. Ela havia girado a maçaneta.
Gustavo entrou num rompante, arrastando o porteiro pela camisa. Em uma das mãos, segurava uma arma. Na altura da cintura, havia um ferimento sangrando muito.
— Por favor, me solta — o porteiro choramingava. — Eu já te trouxe até aqui…
Gustavo sorriu de canto e o empurrou com força ao chão, fazendo uma careta de dor logo em seguida. Sem hesitar, apontou a arma para o homem caído e disparou um único tiro em sua cabeça.
...
Continua...