Coração Perdido - Parte 3

Um conto erótico de Emilinha (Por Mark da Nanda)
Categoria: Heterossexual
Contém 4854 palavras
Data: 05/08/2025 17:05:20
Última revisão: 05/08/2025 19:11:06

Eu a olhei, ainda sem entender, mas imaginando onde ela queria chegar, e ela sorriu:

- Será que o cê tá dando o seu café para a pessoa certa cuidar?

Eu não respondi. Apenas abaixei minha cabeça. As palavras dela ecoaram em mim, mas não trouxeram paz alguma. Só me fizeram pensar no Paulinho, no Leonardo, e até na Emilinha que um dia eu fora e que queria voltar a ser. Tinha saudades da minha infância, quando tudo era tão mais simples...

[CONTINUANDO]

Num dia qualquer, sentada num banquinho na varanda da casa de mamãe e papai, com um vestido de chita azul que Paulinho, em dias mais leves, dizia combinar com meus olhos, agora parecia insuficiente para ocultar a vergonha que eu sentia de mim mesma. O céu de Passa-Vinte, com suas estrelas piscando, pareciam zombar do mesmo estado de espírito. E era justo, eu merecia aquilo! O silêncio da noite, quebrado apenas pelo canto dos grilos, era um espelho da minha alma: inquieto, mas sem coragem de gritar.

Penso em Paulinho diariamente e agora mais na dor que eu lhe causaria caso ele soubesse o que venho deixando acontecer. Penso, também, em Leonardo, que partiu com seu jipe empoeirado, deixando para trás promessas de um mundo que eu só conheço por ouvir dizer. Ele se foi, mas não antes de se certificar se a dúvida cravada em mim ainda ali estivesse firme, não uma qualquer que não explica, mas um “e se” que me faz questionar se Passa-Vinte, com seus morros verdes e sua calma preguiçosa, é tudo o que desejo, ou se há algo além, algo que talvez nunca alcance. E, Deus me perdoe, penso naquela noite na varanda, sob a lua cheia que parecia testemunha de um pecado culposo que cometi. Lembro-me ainda do calor do hálito de Leonardo, levemente adocicado numa caninha caipira, tão perto que senti minha alma tremer, e da culpa que me consome por não ter empurrado ele com mais força, por não ter gritado, por não ter sido a Emilinha direita que mamãe criou.

Pior ainda, é a desconfiança que agora vejo nos olhos de Paulinho, um olhar que antes era só amor e agora carrega uma sombra perniciosa. Mas quem sou eu para culpa-lo? Fui em mesma que plantei essa má querência. Aliás, seu olhar eu imagino, porque ele não me procura mais, e isso me corta o coração como uma faca rombuda, lenta, que não mata de uma vez, mas faz sofrer. Tento me convencer de que é apenas um mal-entendido, que ele logo virá, com uma flor colhida no caminho ou uma poesia desajeitada que, mesmo sem graça, me faria sorrir. Mas os dias passam, e ele não vem.

No dia seguinte, Leonardo veio até mim, num momento em que meus pais faziam sala para seus amigos. O safado entrou em meu quarto e fechou a porta com uma cara que me fez temer pela minha honra. Mas rapidamente ele abriu um sorriso e puxou uma caixinha que trazia escondida atrás de si:

- Pra você, prima. É só um mimo. Espero que não repare...

Sem saber o que fazer, eu peguei a caixinha e a abri. Dentro havia uma correntinha e um pingente de coração, tudo dourado, lindo de doer. Fiquei atordoada olhando aquilo sem saber se aceitava ou devolvia:

- É de ouro... Eu mesmo que escolhi!

Olhei para ele, agora mais atordoada ainda, pois aquilo devia custar os olhos da cara e tentei falar alguma coisa, mas só gaguejei. Fui interrompida por ele:

- Posso colocar no seu pescoço?

- Pescoço?

- É, ué!? É uma correntinha de pescoço, não uma pulseira.

- Le-Leonardo... eu não posso...

- Ué!? E não pode por quê?

- Porque não é certo. Eu tenho namorado.

- Ah, qualé, prima!? Essa história de novo? É só um agrado, nada demais.

Ele pegou a caixinha de minha mão, tirou a correntinha de dentro e abriu o coraçãozinho, mostrando que havia uma foto minúscula dele dentro:

- Está vendo? Assim, sempre que você tiver um problema, poderá me ver e saber que estarei sempre com você.

- Leonardo...

- Deixa disso. Agora deixa eu colocar em você. Não me faz essa desfeita!

Não sei porquê, mas me rendi. Ele me levou até a frente da minha penteadeira e colocou a correntinha em meu pescoço. Depois, se abaixou e passou a alisar o meu pescoço de um jeito que eu nunca senti antes. Depois, colou a sua cabeça à minha, cochichando em meu ouvido:

- Você merece o melhor, Emilinha, a começar por eu não te chamar mais de prima, porque você é muito mais do que isso. Você é uma mulher linda, sensual e que merece muito mais do que o Paulinho pode te oferecer. Não me veja mais como o teu primo, me veja como... um pretendente.

No susto virei-me de lado para encará-lo e nossas bocas ficaram a menos de dedo de distância, dedo deitado. Minha respiração me traiu, demonstrando meu nervosismo, mas me recuperei a tempo:

- Não fala assim do... - Tive uma vergonhosa amnésia, mas rapidamente me corrigi: - Do meu namorado. Ele merece respeito.

- Não estou desrespeitando ele. Só estou entrando no páreo. - Disse ele antes de colar os lábios aos meus.

Eu já esperava um beijo como os anteriores, mas ele se afastou, dando um sorriso e uma piscadela, enquanto acariciava o meu rosto:

- Não vou te beijar mais a menos que você me peça. Eu quero muito, mas preciso te provar que sei te respeitar. Se me quiser, me procure, a qualquer hora e lugar, e eu me entregarei a você, do jeito que você quiser.

Então, se levantou e foi até a porta, abrindo-a com cuidado, se certificando de que não seria pego saindo do quarto de uma moça “direita” e antes de sair, disse:

- Pense no que eu te falei. Estou colocando o meu coração em suas mãos.

Ele saiu de vez, deixando um vazio e agora uma questão que me atormentaria por muito e muito tempo. Ele me queria e não era como prima, e isso me aterrorizava. Olhei-me no espelho e a correntinha reluzia, lembrando-me de que eu, a moça do interior, a sem graça de vestido de chita, agora tinha dois homens me disputando. Aliás, dois não, um, porque o outro parecia cada vez mais distante, talvez mais desinteressado.

Não tive coragem de sair do quarto com aquela correntinha à mostra e a coloquei por dentro do meu vestido. No jantar desse dia, com a família e amigos todos reunidos à mesa, mamãe não tirava os olhos de mim. Não que tivesse acontecido nada, foi um jantar normal, com conversas normais, olhares normais, mas ela não tirava os olhos de mim. Quando fomos lavar os pratos, eu soube o porquê assim que ela puxou o meu cabelo de lado:

- Beleza de correntinha, hein, Emilinha!?

Eu a olhei sem saber o que dizer e baixei a cabeça, fazendo um bico, prestes a chorar:

- De Leonardo, não é? - Ela insistiu.

Apenas balancei a cabeça afirmativamente e ela se apoiou na pia com um dos braços, me encarando em silêncio. Quando estava prestes a dizer algo, meu pai entrou, pedindo um copo de água. Assim que ele saiu, ela voltou, mas eu saí, envergonhada de mim mesma, trancando-me em meu quarto. Ela não insistiu. Dormi nesse dia com os olhos pregados no teto, encarando a aranhinha em seu trabalho solitário, mas, depois de um tempo, apaguei, dormindo pesado. A surpresa estava no que aconteceria ao acordar. Quando fui me levantar, senti uma umidade estranha entre as pernas. Já imaginei que minha regra tivesse descido, mas quando fui ver, era nada. Aliás, era, mas não a regra. Era um trem meio transparente, pegajoso, estranho mesmo. Fiquei confusa, mas logo me lembrei da mamãe explicando que mulher quando quer, muda e nossa “menininha” normalmente baba.

Evitei minha mãe de todo jeito e consegui. Após o almoço, Leonardo avisou, sem mais nem menos, que iriam embora ainda naquele dia. Na despedida, cochichou em meu ouvido uma única frase:

- Pense e mais do que isso, sinta o que conversamos.

Deu-me um beijo na bochecha e entrou no seu jipe empoeirado pela estradas de Passa-Vinte. Se foram, sumindo no pó que tentava encobrir ainda mais uma história que talvez nem devesse ter começado. Minha mãe tentou me cercar para uma conversa de todo jeito nesse dia, mas grudei no meu pai como carrapato, coisa que eu não fazia há tempos, e ela não conseguiu prosear comigo. Nesse dia eu dormi bem e acordei seca.

Já era o terceiro desde que vi Paulinho pela última vez, decidi que não podia mais esperar. Com o sol ainda tímido, o orvalho brilhando na grama como lágrimas que eu não ousava derramar, fui até a cozinha:

- Vou até Paulinho. A gente precisa se entender.

Mamãe, que mexia um tacho de doce de leite com sua colher de pau, me olhou com aqueles olhos que veem além do que mostro:

- Ocê ainda tá com a aquela mesma carinha de quem perdeu o rumo, Emilinha...

Tentei negar, mas minha voz me traiu, tremendo como folha no vento. Ela balançou a cabeça, como quem sabe que o coração de uma mulher é um mistério que nem ela mesma entende:

- Faz o que é acertado: vai atrás do Paulinho, filha! Se é ele que ocê quer, não deixa a dúvida falar mais alto do que o amor. - Aconselhou ela, com aquele tom que misturava carinho e advertência.

E assim fiz. Preparei um bolo de fubá com as mãos trêmulas, quase errei o ponto, mas mamãe me ajudou a corrigir. Depois, embrulhei num pano de prato com um bordado de flor que fiz em noites mais serenas, quando o futuro parecia claro como o céu de Passa-Vinte. Arrumei-me como se fosse dia de festa e caminhei até a casa de Paulinho, cada passo pesando como se carregasse o mundo nos ombros. Ao chegar, encontrei seu Ciro na varandinha, sentado num toco, com uma expressão que misturava cansaço e algo que temi ser desprezo, mas ele me recebeu com um meio sorriso e seus olhos, tão parecidos com os de Paulinho, pareciam saber mais do que diziam. Ele pediu licença e entrou. Não tardou muito e Paulinho surgiu.

Eu esperava que Paulinho viesse com aquele sorriso que sempre me alegrava o dia, mas ele não sorriu. Veio, é verdade, mas só; o cabelo estava bagunçado, a camisa amarrotada, certamente escolhida às pressas, e me olhava com uma ausência que doeu mais que qualquer palavra:

- Oi, Paulinho. Eu... Eu tava com saudade do’cê. - Falei, tentando soar leve, mas minha voz tremia, e tive medo de quebrar o bolo porque as mãos seguiam o exemplo da voz: - Pensei que ocê pudesse tá doente e trouxe bolo... de fubá. Fiz do jeitinho que ocê gosta...

Seu Ciro, logo ele, brincou rapidamente comigo e avisou que iria passar um café. Além disso, orientou que sentássemos e conversássemos, mas Paulinho parecia em outro mundo, talvez roçando o mato alto da dúvida a fim de tentar colher alguma verdade, algo que eu vinha negando reiteradamente a lhe dar. Antes de entrar, foi impossível não notar Paulinho encarar o pai com a cara fechada, empacada, mas Seu Ciro, com o tom de sempre, encerrou a discussão que sequer começara:

- Senta... e... conversa! - Mandou, voz seca, imponente.

Paulinho se sentou num toco ao meu lado, insistindo ainda em não me encarar:

- Gradecido. - Resmungou, seco, como se quisesse manter uma distância que antes não existia, enquanto pegava o prato de bolo das minhas mãos.

Dei meu jeitinho para que nossas mãos se tocassem, mas ele, com um suspiro, apenas pegou o prato de bolo todo bem embrulhado com o maior esmero que eu fizera e o repousou em seu colo. O cheirinho estava bom demais da conta e confesso que, por um instante, esperei que o aroma o trouxesse de volta, que quebrasse o muro que crescia entre nós. Mas ele permaneceu calado, os olhos fixos em algo que eu não via. Quando o cheiro do café começava a inundar o ambiente, tentei puxar conversa:

- Por que ocê não foi mais me ver? Tá bravo comigo? - Perguntei, com o coração na boca, com medo da resposta óbvia.

Ele suspirou profundamente, fechando os olhos, e, por um instante, pensei que fosse explodir, me acusar de algo que eu mesma não entendia. Mas ele apenas me olhou e vi que havia medo em seus olhos, um medo que guardava relação com o meu, como se ele soubesse de algo que eu temia confessar. Fiquei pensando se ele já não sabia de algo e por isso se afastara, mas não era possível, afinal, tudo o que aconteceu fora às escuras, a não ser o da varanda que... Não! Não é possível! Ele não estava lá. Não tínhamos combinado de nos encontrar e... foi tão rápido, tão... Ou será que não? Fato é que seu olhar denunciava que ele carregava uma dúvida que o corroía tanto quanto a minha me consumia.

Entramos para tomar o café, chamados por Seu Ciro, que, com sua conversa fácil, tentou aliviar o peso que pairava entre nós. Falei do bolo, do tempo, de qualquer coisa que pudesse trazer o Paulinho de volta. Brinquei, toquei nele, contei causos leves que corriam a boca pequena na pracinha de Passa-Vinte, mas ele parecia distante, como se não quisesse mais participar do meu mundo. Vencida, com o coração apertado, decidi que era hora de ir embora, mas avisei que voltaria novamente. Seu Ciro sugeriu que ele me acompanhasse, pois a noite já tomava os arredores e moça direita não pode andar sozinha. Ele o fez, em silêncio, como se cada passo fosse um esforço. Na escadinha que dá acesso à varanda da minha casa, sob o olhar atento de mamãe e papai, que espiavam da janela, ele finalmente falou algo:

- E Leonardo, já se foi? - Perguntou, olhando para a porta fechada, como se pudesse ver através dela.

- Foi inda ontem. Disse que não deve voltar tão cedo... - Respondi, tentando soar indiferente.

- Que pena... para você, né? - Retrucou ele, notando que minha indiferença era indiferente, falando com uma acidez que queimava como soda cáustica.

- Cê tá estranho, Paulinho. Cê quer falar algo? - Perguntei, com o coração batendo forte, temendo o que ele poderia dizer.

Querer, ele queria, estava na cara, mas não falou. Um silêncio dominou a conversa e ele decidiu ir embora. Quando o abracei, com uma força que nem eu sabia que tinha, senti ele hesitar, como se meu toque não mais o acalmasse. Mamãe e papai, da janela, pareciam testemunhas de um crime que eu não queria confessar. Nesse momento, ouvi minha mãe dizer para meu pai: “... falando procê que tá errado!” Corri para dentro, fugindo do olhar de Paulinho, que parecia carregar o peso de uma traição que eu sabia ter cometido, culposamente, entretanto.

Na manhã seguinte, o sol de Passa-Vinte brilhou claro, tentando apagar a escuridão que me habitava. Tentei me ocupar com as tarefas da casa, ajudando mamãe na cozinha, arrumando os pães de milho de uma encomenda, mas minha mente voltava à varanda, àquela noite com Leonardo. Às vezes, eu duvidava se o beijo havia acontecido de verdade ou se era coisa da minha imaginação, mas... foi tudo tão real, tão vívido, tão... Pelo sim ou pelo não, aceitei que aconteceu e digo, não sei como chegamos aquilo. Juro por Deus! Mas era certo que chegamos... E aquele beijo, aquele maldito beijo, me atormentava desde então.

Por um capricho do destino, encontrei Paulinho na venda do Seu Zé Formoso, enquanto comprava farinha para mamãe. Eu estava com o vestido leve, o cabelo preso num coque frouxo que Genoveva, a galinha atabalhoada, com seus olhos julgadores, pareceu ter desaprovado enquanto eu fazia, pois seu cacarejar destoava da rotina. Paulinho estava lá, comprando banha de porco, com uma cara de quem comeu e não gostou:

- Paulinho, tu tá com uma cara que parece que viu assombração! - Brinquei, tentando aliviar o clima.

- Tô de boa, Emilinha. - Mentiu ele, coçando a nuca, o gesto que sempre o traía.

- Então tá... - Disse eu, já me preparando para sair, pois senti que ele não queria conversar.

- Espera, Emilinha, eu... Cê não queria dar uma volta mais tarde? Sei lá, desanuviar um pouco...

Se concordei? Claro, sô! Eu não sabia como me aproximar dele, mas se ele me queria por perto, eu aproveitaria a chance, mesmo sem saber como e mesmo com medo do que poderia estar por vir. Será ele quem me confrontaria? Ou será que eu, covarde, fugiria da verdade? Passei o resto do dia com um peso no peito, dividida entre o desejo de esclarecer tudo e o temor de ouvir uma verdade que me destruiria.

Deitei para descansar um pouco minha cabeça pesada e cochilei, mais do que isso, sonhei. Sonhei com Paulinho, ele na varanda, me fazendo a corte, tímido, mas decidido, menos menino e mais homem, tomando-me em seus braços com uma virilidade que nunca ousou demonstrar antes. Só que, quando estávamos para nos beijar, quem me tinha nos braços era Leonardo, com o mesmo olhar intenso, provido de uma certeza que parecia faltar em Paulinho. E o beijo aconteceu... A mesma imagem na varanda, indo e voltando, voltando e indo, num círculo vicioso sem fim, as línguas se enroscando, o abraço se intensificando. Acordei sobressaltada já com o som se escondendo com vergonha de mim. Não tardaria para Paulinho chegar, então fui me arrumar.

Naquela noite, fomos até a ponte sobre o rio, como tantas vezes antes. A lua, ainda cheia, iluminava a água com um brilho que parecia mangar da minha inquietação. Eu brincava com um doce de abóbora que pegamos na venda, encostada no parapeito. Tentei falar do tempo, da roça, mas Paulinho estava diferente, mais sério, mais distante. Mas então, ele falou:

- Emilinha... Dias desses, à noite, eu passei pela tua casa e... Eu vi ocê e o Léo na varanda. Ele tava te segurando, te abraçando, te apertando contra a mureta... E vi ocês se... beijando... - Disse ele, a voz tremendo de raiva e decepção.

O doce caiu da minha mão, afundando no rio como se levasse consigo minha alma. Fiquei paralisada, os olhos arregalados, o coração batendo como uma zabumba:

- Tu tava me espiando, Paulinho? - Perguntei, com um tom que misturava surpresa e culpa, embora quisesse soar indignada: - Como tu pode pensar uma coisa dessas? O Léo é meu primo! A gente tava só conversando, abraçados, mas como família.

- Tá falando que eu me enganei, é isso? - Retrucou ele, a voz mais alta do que queria. - Eu vi, Emilinha! Vi ele te segurando, vi os rostos de vocês tão perto que... que... era um beijo. Eu vi! Fala a verdade, por favor. Cê tá com ele? Cê gosta dele? Cê quer ir embora com ele?

- Um beijo? Cê tá louco, Paulinho? - Respondi, a voz tremendo. - Cê acha que eu sou o quê? Uma qualquer que se joga nos braços do primeiro que aparece? O Léo tava me consolando, só isso. Eu tava triste, pensando na vida e ele, como primo, me abraçou. Não tinha nada de errado nisso!

- Consolando? - Insistiu ele, o ciúme queimando como brasa: - E por que cê precisava de consolo? Por que ele tava tão perto, te apertando contra a mureta? Por que a varanda tava no escuro, Emilinha?

- Tu não confia em mim, Paulinho? - Disse eu, quase sussurrando, dando um passo para trás, sentindo as lágrimas que não caíam: - Se tu acha que eu sou capaz de te trair com meu próprio primo, então talvez a gente não tenha mais nada pra conversar.

Virei as costas e fui embora, deixando-o na ponte, com o eco das minhas palavras e a culpa que eu carregava me matando por dentro, mesmo sem saber se a culpa era realmente minha. Era verdade o que eu disse? Era mentira?

Os dias que se seguiram foram um tormento ainda maior, onde cada detalhe parecia carregado de significado, mas nenhum oferecia resposta. Paulinho se afastou, mas não de todo, como se quisesse me punir, mas também me manter por perto. Eu o via na praça e ele me cumprimentava com um sorriso triste, que não alcançava os olhos. Às vezes, parecia que ele queria falar, mas algo o impedia.

Na venda do Seu Zé Formoso, ouvi um buchicho de que Leonardo prometera voltar só no próximo ano, mas sua ausência não trouxe paz. Pelo contrário, deixou um vazio maior, como se, sem ele por perto, eu não tivesse mais um inimigo claro para culpar. O inimigo agora era minha própria cabeça, que repetia, sem parar, a cena da varanda, agora em embate com as palavras que troquei com Paulinho na ponte.

Fui à mamãe, como sempre, em busca de consolo. Ela estava na cozinha, trançando a massa para fazer rosca recheadas de doce de leite. Não me olhou, mas eu sabia que ela sabia que eu estava ali, com aquele olhar que parecia enxergar além do que eu mostrava, e sabia que eu queria falar, mesmo não tendo aberto a boca:

- Desembucha, menina. - Falou de costas para mim.

- Ara, mamãe!

Ela se virou para mim, limpando as mãos num pano de prato e continuou:

- Num preciso olhar procê para saber que ocê não tá bem, e tudo começou quando o Léo veio pra cá. Maldito dia... - Disse, balançando negativamente a cabeça: - Fala! Alguma coisa cê quer falar que eu sei.

- Mamãe, é...Eu tenho uma amiga que tá passando uma situação meio esquisita.

Mamãe me encarou com mais profundidade, já sabendo quem é a tal amiga:

- Sei... E que tem essa amiga?

- Então... - Suspirei profundamente: - É possível... assim... uma mulher amar duas pessoas ao mesmo tempo?

- Uai!? Claro, sô! Eu mesmo, amo ocê, seu pai, seus avós, não muito a minha sogra, dela eu gosto só um pouco...

- Não! Né isso não, mamãe... Digo, uma mulher pode amar dois homens ao mesmo tempo?

- De fora da família? - Ela me perguntou, abrindo um pouco mais os olhos.

- É...

Ela se calou e me encarou com os olhos arregalados, mordendo os lábios com força e assim ficou um bom tempo:

- Ó só... Eu espero que não! Isso não é coisa de Deus não... Uma mulher direita não entrega seu coração e suas virtude para dois homens. Nu! De jeito nenhum! Eu... Isso sou eu, a Clara, tua mãe... Eu acho que o coração de uma mulher só deve ter um único dono, mas se ocê tem dúvida entre dois, é que talvez nunca tenha gostado de verdade de um deles.

- Será?

- Fia... - Ela me abraçou, apertando forte em seu peito: - Diz pra essa sua amiga aquietar o coração e não fazê besteira. Às vezes, o coração pode se enganá com palavras bonitas, mas nem tudo que sai da boca vem do coração. Fala pra ela tomá cuidado com as armadilha da vida e firmá o pé, lembrano onde ela tá e quem realmente ama ela.

As palavras dela caíram como um saco de batata em minha cabeça, mas não trouxeram paz alguma. Eu queria Paulinho, queria a certeza do seu amor, mas a dúvida que Leonardo plantara... Ou seria eu mesma quem a plantara? Bem, essa me fazia hesitar.

Então veio a fofoca, espalhada pelo menino Juca, com sua língua de sogra, solta comprida demais. Ele contava que Leonardo, antes de partir, me dera um colar de ouro com um pingente de coração, com uma foto dele dentro, e que eu o usava escondido sob o vestido. Meu coração parou. Como ele sabia? Quem lhe contara isso?

Naquela noite, Paulinho apareceu na varanda, com uma expressão que misturava raiva e medo. A lua, agora minguante, mal iluminava seu rosto, mas eu vi o brilho nos seus olhos, uma fogueira inquisidora. Assustei-me:

- Emilinha, que história é essa de que ocê tá usando um colar que o Léo te deu? - Perguntou, sem rodeios, a voz tremendo.

- Quem te contou isso!? - Perguntei, com um tom mais defensivo do que curioso, enquanto minhas mãos instintivamente tocaram o decote, onde o cordão fino, com o pingente em forma de coração, repousava, ocultado por minhas vestes.

- Não importa. É verdade?

- Ele me deu antes de ir embora. - Confessei, puxando o cordão para fora, o pingente brilhando como uma acusação: - Falou que era pra me lembrar da família, de como a gente era unido quando criança. Não é nada demais, Paulinho.

- Nada demais!? - Gritou ele, a voz como um trovão. - Então por que ocê esconde? Por que ocê não me contou? Por que tem uma foto dele aí? E por que, Emilinha, por que ele te abraçou daquele jeito na varanda, no escuro, como se... como se fosse... como se fosse o teu namorado?

- Essa história de novo, Paulinho? Ocê tá vendo chifre em cabeça de cavalo! - Retruquei, a voz tremendo: - Eu já te disse, a gente tava conversando, só isso. O colar é só um presente, e o abraço... o abraço... era só um abraço! Cê quer é me transformar numa criminosa por causa da tua cabeça doente!

- Minha cabeça doente!? - Gritou ele, incapaz de se conter: - Eu vi, Emilinha! Vi ele te apertando contra a mureta, vi os rostos do’cês colados, tão perto que só podia ser um beijo! Não minta pra mim!

- Cê tá louco, Paulinho... - Disse eu, quase sussurrando, o rosto pálido, os olhos fixos nos dele: - E tá me perdendo por causa disso.

Mamãe, atraída pelos gritos, apareceu na porta. Olhou para mim, cúmplice de um segredo que eu ocultava, ciente de que a culpa daquela situação também era minha, talvez só minha. Eu, com um gesto, disse que estava tudo bem, embora não estivesse. Ela nos encarou em silêncio por alguns instantes e entrei em casa. De dentro, ouvi ela conversar com Paulinho e uma frase em especial me marcou:

- Cuidado, Paulinho, que nem tudo que a gente vê é verdade, mas nem tudo que a gente não vê é mentira. - Disse ela, com um tom que parecia um aviso.

Não conversei com Paulinho no dia seguinte, nem nos próximos, nem na próxima semana, nem um mês depois. Os dias se arrastaram como um suspense sem fim, como um filme onde o vilão é a própria mente. Paulinho e eu não terminamos, mas também não estávamos mais juntos.

Um mês depois, não aguentei mais. Fui até ele na roça com uma marmita de bolo e café. Esperei pacientemente ele parar uma lida no café e vir até mim. Ele parecia surpreso ao me ver. Sinceramente? Eu também estava. Disse que precisava conversar com ele e, dado o horário, ele juntou suas coisas e saímos, lado a lado. Paramos sob a sombra de uma mangueira e lhe servi o bolo com café, que ele aceitou. Também me servi também:

- Então, ocês estavam mesmo abraçados? - Perguntou ele, os olhos cheios de desconfiança.

- Sim.

- Abraço de namorado? - Insistiu ele.

- Não era pra mim, mas a minha mãe disse que também não parecia coisa de primo. - Respondi, hesitante.

- Sua mãe!?

- É. Ela disse que já vinha notando um olhar enviesado do Léo pra cima de mim e ela tava com medo de que ele tivesse tentando fazer a gente se estranhar.

- Conseguiu. - Ele respondeu com um semblante bem chateado.

- É. Parece que sim...

- E o beijo?

Essa era a pergunta que eu temia ter que enfrentar e naturalmente não consegui responde-la de imediato. Fiquei olhando para ele e pensando como falar do beijo, mas me lembrei das palavras de mamãe: “Nem pensar! Paulinho é calmo, mas é honrando, é um Sandoval Silva, filha. Se ocê contar que Leonardo roubou um beijo seu sem seu querer, é bem capaz dele vir aqui e fazer besteira.” Então fiz a pior das escolhas, menti:

- Eu não sei se ele me beijou, Paulinho. Cê pode não acreditar, mas eu não me lembro direito do que aconteceu naquela noite. A gente estava conversando, bem próximo mesmo, abraçados... Então me deu um branco. Quando voltei a mim, a gente estava conversando de novo, bem de perto. Depois, um dos amigos dele o chamou, e ele entrou. É isso. - Falei, com lágrimas nos olhos.

- Emilinha, cê jura, pela tua mãe, pelo teu pai, que nunca aconteceu nada entre ocê e o Léo? - Insistiu, segurando minha mão com força.

- Paulinho, o amor é um trem danado de complicado. - Disse eu, com a voz embargada: - Eu te amo, amo mais do que eu mesma imaginava. Cê não sabe como sofri esses dias longe do’cê. Mas cê precisa decidir se isso é suficiente, porque eu não posso viver com um homem que não confia em mim.

Ele não respondeu, mas seus olhos, cheios de dor e amor, diziam tudo. Notei que ele olhou para meu pescoço e o fato de não ver o colar ali pareceu aliviar, ainda que pouco, o peso que carregava. Pena que o alívio não era completo porque o mar existente em meu coração continuava revolto e uma tempestade ainda maior estava por começar.

OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO SÃO FICTÍCIOS, E OS FATOS MENCIONADOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL SÃO MERA COINCIDÊNCIA.

FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DOS AUTORES, SOB AS PENAS DA LEI.

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Foto de perfil de Mark da NandaMark da NandaContos: 303Seguidores: 685Seguindo: 28Mensagem Apenas alguém fascinado pela arte literária e apaixonado pela vida, suas possibilidades e surpresas. Liberal ou não, seja bem vindo. Comentários? Tragam! Mas o respeito deverá pautar sempre a conduta de todos, leitores, autores, comentaristas e visitantes. Forte abraço.

Comentários

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A ingenuidade da Emilinha cada vez mais se perdendo num mar de mentiras, manipulação, deslumbramento, perda total de empatia pelo Paulinho, tá difícil falar alguma coisa positiva neste capítulo, até o príncipe dentro da cabeça dela, se assustou, deu no pé e deixou só o desejo sombrio por coisas que ela mesmo não tem idéia, ou melhor ela tem idéia sim, e tá deixando a luxúria tomar conta dos pensamentos e atitudes dela, tá no cio. Kkkkkkkkkkkkkk tá pensando com a bucetinha kkkkkkkkkkkkkkkkkk

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Pô Mark!!! Assim me Quebra!!!

Se forma minhas teorias de que o Culpado de tudo era Leonardo!!! kkkk

Pelo relatado "nesse capítulo" ela assumiu "todos os riscos"!!!

Não foi por ingenuidade que ela "entrou nessa"!!!

Ela entrou nessa por não acreditar no amor verdadeiro de Paulinho e desconsiderou os ensinamentos da mãe e se atirou em "busca de aventuras"

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Segue muito bem escrito. Prende a atenção mesmo com o desfecho já revelado. Triste desfecho!

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Escolhas tem consequências - Acho q essa máxima define muito bem essa história.

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Podem tenta aliviar pro lado dela o quanto quiserem, mais essa Emilinha e esse suposto "amor" q ela sente pelo Paulinho, nunca q vai me descer!! Ela já mentiu diversas vezes pra ele, e pior ainda fala de um jeito cm se ele fosse o vilão da história kkk

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Isso é verdade, ela é uma personagem bem covarde. Mentir e acusa o Paulinho pra fugir da culpa que tá corroendo ela

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Nada do q seja escrito vai aliviar o q ela fez, nem mesmo se ela tenha sofrido abuso físico ou psicológico em b.h, afinal tudo q aconteceu foi por escolha dela, iludida? Talvez.....mas está em sã consciência quando fez a escolha de abandonar o Paulinho,mentir para os pais e ir atrás do Leonardo, tudo depois disso foram somente consequências por seus atos

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Foto de perfil genérica

Essa ideia de mostrar a história pelo ponto de vista da Emilinha tem se mostrado genial, é muito bom ver tudo de outra perspectiva. Curioso para saber o que vai leva-la a mentir pros pais e ir para BH e como foi a infeliz jornada dela por lá. Vimos o Coronelzinho ganhando forma e o Paulinho virando homem, acho que veremos a Emilinha se perdendo ou se quebrando, imagino.

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Foto de perfil de Velhaco

A mente humana é mesmo um mistério e o coração então nem se fala, o bicho besta e fácil de ser enganado, vê encanto na onde só tem espinhos, Emilinha mesmo depois de ser avisada por sua mãe, obedeceu ao mais tolo de todos os sentimentos (o amor), mas será mesmo q ela amava Leonardo, ou foi traída por sua curiosidade pelo q não conhecia?

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