Paulinho era uma certeza em minha vida e eu via que ele se desdobrava. Via de verdade! Ele me trazia flores, ajudava meu pai na roça quando não estava ele mesmo trabalhando na lida, arriscava romance em versos que me faziam rir... Mas agora havia algo no seu olhar, uma desconfiança que me feria, como se ele visse em mim uma Capitu que eu não era. Ou era? Não sei. Só sei que, em Passa-Vinte, onde o tempo é lento, meu coração corria rápido demais, e eu, Emilinha, ainda não sabia para onde ele queria ir.
[CONTINUANDO]
Os dias que se seguiram após a partida do Léo... Não sei por que o chamava assim? Deveria ser Leonardo... Le-o-nar-do! E chama-lo assim, sem intimidade, principalmente, depois do que fez a mim. Mas enfim, depois que ele partiu, foram como o gotejar lento de uma torneira que ninguém se dava ao trabalho de consertar: cada gota, um pensamento; cada pensamento, uma dúvida; e cada dúvida, uma incerteza que se acumulava, fazendo meu bem querer pelo Paulinho ficar mais incerto.
Passa-Vinte, com seus morros verdes que pareciam abraçar a gente, seguia seu ritmo de sempre, lento, quase parando, como se nada pudesse abalar sua calma preguiçosa. Mas eu, Emilinha, a moça prendada, a toda perfeitinha, a filha de Clara doceira e Zé Maria, já não me sentia mais tão prendada assim, perfeita então, nem pensar... Tinha uma confusão dentro de mim que me fazia acordar no meio da noite, respirando pesado, fazendo a aranha que tecia no teto do meu quarto a minha companheira pela madrugada adentro, eu e ela tentando entender o que eu sentia, o que eu queria, e, principalmente, quem eu queria. Eu tentava ser a mesma de sempre: a menina-moça que agora, com dezoito anos, já era mulher pronta, mas nada muito diferente daquela que corria pelas ruas de terra, que jogava e ganhava nas bolinhas de gude, e que dividia pão de queijo e frutas com Paulinho na merenda da escola.
Ah, e ele, o meu Paulinho... Eu tentava ter somente a ele em minha mente, me esforçava para esquecer o Léo... Leonardo, Emilinha, LE-O-NAR-DO! Farei esforço redobrado. Eu me esforçava para esquecer o Le-o-nar-do, tentando imaginar meu futuro com o Paulinho e ele parecia sentir que algo me agoniava. Juro que me esforçava. Eu sorria pro Paulinho, segurava a mão dele nos passeios pelo coreto, ria das poesias desajeitadas que ele escrevia e olha que ele estava pegando o jeito, tanto que um dia me assustou:
“De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”
Devo ter ficado com cara de pamonha, pois ele me encarava como se visse a Nossa Senhora de Fátima em sua terceira aparição. Só depois de um tempo e depois dele repetir o soneto para mim outras duas vezes, confuso, achando que eu não gostara, falei:
- Pa, Pa-Pa, Pa-Pa-Pa, Paulinho!? Ara, sô! Nu! Que... Que belezura! Trem bonito demais, sô! Tô nem acreditano que ocê escreveu isso!
Ele deu uma risada com aquele jeito tímido que às vezes me fazia rir por dentro e outras tantas vezes por fora, e disse:
- E num fui! Li num periódico e achei muito da bonita, e quis trazer pro’cê. O que achou?
- Nu! Linda demais... - Falei, já não conseguindo conter um tom de frustração por saber não ser dele o escrito, muito menos eu a musa inspiradora daquele soneto.
- É de um tal Vicente... - Ele respondeu, timidamente, talvez imaginando que eu desaprovava sua conduta: - Não! Vinicius... Vinicius de Moraes, conhece?
Lógico que não conhecia. No fundo, até gostei dele fazer aquilo, querer me agradar. Fato é que eu me esforçava e ele também! Mas, tinha algo diferente agora, uma sombra que pairava entre nós, como a neblina que subia do rio nas manhãs frias de Passa-Vinte. Era nos silêncios que eu deixava escapar, nos olhares que eu desviava quando ele me encarava, que eu via a desconfiança crescer nos olhos dele. E, Deus me perdoe, quanto mais ele tentava buscar respostas à tona das dúvidas que inundavam o meu coração, mais eu me afogava nelas, debatendo-me feito uma tola.
Leonardo... Até que enfim acertei! Leonardo tinha ido embora com seu jipe empoeirado e suas histórias da capital, mas cravara uma bandeira em meu peito quando me roubara aquele beijo maldito. Agora, cada risada que eu dera pras coisas que ele contou, cada dança que ele me tomara, cada toque casual que parecera tão leve e ao mesmo tempo tão íntimo, voltava na minha cabeça como um filme que eu não conseguia parar de assistir. Será que eu, criada com a sabedoria de mamãe e a firmeza de papai, tinha me deixado levar por aquele primo de fala mansa como diversas vezes insinuara Paulinho? Ou seria só uma saudade boba de alguém que eu pouco, quase nada conhecia, mas que marcara mais do que devia? Eu não sabia e essa incerteza me consumia sem queimar de vez, como se fosse um fogo baixo que ia esquentando até cozer o prato em sua plenitude.
Aliás, o beijo que Leonardo me roubara naquela tarde na área de serviço, guardava lugar cativo em minha memória, esquentando meu corpo sempre que eu o revisitava. Não que eu quisesse, nem o beijo, nem a memória! Deus me livre! Eu empurrara ele, dera um tabefe que fizera a Genoveva, a minha melhor amiga de penas, gritar horrorizada e ficar traumatizada, agora renegando meu colo onde tantas vezes viera se aprochegar. Mas, confesso, com o coração tremendo e temendo o julgamento de quem me lê, que uma parte de mim, lá no fundo, beeeem lá no fundinho, insistia em pensar e repensar aquele momento, aquele beijo, aquela linguona... Afff! Não, não, não! Não era amor, não senhor! Era... sei lá, uma faísca, um “e se” que me fazia imaginar como seria a vida além dos morros de Passa-Vinte, num mundo cheio de luzes, festas e histórias que eu só conhecia por ouvir falar. E esse “e se” era o que me atormentava, porque, se eu fosse honesta, com Paulinho ou comigo mesma, talvez tivesse que admitir que não sabia o que queria. Paulinho era a certeza, o menino que crescera comigo, que me conhecia quase tão bem quanto eu mesma, que me olhava com um amor que às vezes parecia grande demais pra mim. Mas Leonardo... esse danado era o desconhecido, o sonho, o talvez, e isso me deixava desnorteadinha.
Interessante como os fatos, mesmos os ignorados, os desconhecidos, os ocultos, nos mudam mesmo sem querer, porque eu via Paulinho mudando. Ele ainda me olhava com aqueles olhos ansiosos, cheios de um amor que me aquecia e ao mesmo tempo me sufocava, mas agora tinha algo mais, uma desconfiança que eu podia sentir mesmo sem ele dizer nada e uma confiança em algo que eu não entendia direito.
Naquela noite do forró, quando dançamos sob as bandeirinhas, com o som do acordeão do Seu Alaor enchendo a praça, sentira ele me segurando com uma força que não era só carinho. Era como se ele quisesse me prender, me segurar pra não me perder, e eu, covarde como sempre, sorria, dançava, fingia que nada tinha mudado. Mas mudara, sim. O beijo do Leonardo, a confusão que ele trouxera, o vazio que suas histórias de cidade grande tinham deixado em mim, tudo isso estava ali, entre nós, como uma pedra no meio do caminho.
A vida seguiu seu curso e agora Passa-Vinte se preparava pra festa de Nossa Senhora do Carmo, padroeira da cidade. A praça da igrejinha estava um alvoroço: as mulheres trançavam fitas pros enfeites, novas bandeirinhas eram penduras aqui e ali, os homens carregavam lenha pra fazer uma fogueira ainda maior que ao do ano passado e as crianças corriam, gritando, como se o mundo fosse só alegria. Eu estava no meio disso tudo, ajudando mamãe na organização da barraca da quermesse, lambendo os dedos cheios de doce de leite e o vestido de chita balançando enquanto eu tentava arrumar os pães de milho numa cesta. Mamãe, com seus olhos agudos, me observava de canto, como se soubesse do nó que apertava meu peito:
- Emilinha, ocê ainda parece que tá com a cabeça nas nuvens... - Disse em certo momento, com aquele tom que misturava carinho e curiosidade de algo que ela já sabia, mas eu não.
- Ara, mamãe, é só o calor da cozinha. Só isso. Não inventa moda não! - respondi, forçando um sorriso.
Como esperado, ela não se deixou enganar:
- Sei... Mulher não fica assim por causa de calor não. Até fica, mas o calor aí é outro, e perigoso ainda. – Piscou para mim, me fazendo corar: - O que que tá deixano ocê assim, filha? É o Paulinho? Ele te fez algo? Ou é o Léo, aquele primo teu, que veio bagunçar o que era certo?
De corada fiquei quase roxa, mas que o doce de batata doce. Era como se ela tivesse lido minha alma. Mamãe era assim, via o que a gente escondia até de nós mesmos. Baixei os olhos, mexendo mais rápido ainda nos pães, bagunçando, na verdade, até que murmurei:
- É nada, mamãe. Só tô pensando na vida mesmo. Fica tranquila.
- Pensando, é? - Ela riu aquele riso baixo, maternal: - Pois então pensa direito, Emilinha. Paulinho é gente da gente, filho de nosso amigo de anos, família boa, honesta, digna... Não deixa uma palavra bonita, botá sentimento estranho onde já há sentimento bom criando morada.
As palavras dela eram bem intencionadas, o meu coração é que não sabia ouvi-las. Tivesse ouvido, nada de mal teria acontecido. O que eu queria? Paulinho, com seu jeito simples, honrado, que me trazia flores e trabalhava duro, igual homem feito? Ou Leonardo, com suas histórias de um mundo que eu só imaginava? Eu não sabia e essa incerteza me fazia sentir como se estivesse pisando num chão que podia ceder a qualquer momento.
Paulinho, parecendo pressentir a tempestade em meu peito, apareceu do nada, com aquele jeito desengonçado que sempre me fazia rir fácil. Veio com a desculpa de ajudar com a cesta de pães, mas eu sabia que era pra ficar perto de mim, pra me fazer sentir protegida talvez. Tentei aliviar o peso que sentia nos olhos dele, brincando:
- Uai, Paulinho, tu tá virando ajudante de quermesse agora? - Dei um sorriso que parou nas bochechas, não chegando aos olhos.
- Ara! Só tô tentando te ajudar, Emilinha, posso não? - Respondeu, forçando um sorriso também: - E, ó, se precisar de alguém pra provar esses doces, eu me sacrifico.
Eu ri, mas o riso não era inteiro. Mamãe nos olhava e juro que vi um aviso nos olhos dela, como se dissesse: “Cuidado, menina! O amor é frágil como vidro e se quebrar, mesmo que cole, não volta a ser como antes.” Fiquei quieta, arrumando os pães, com medo de dizer algo que revelasse demais. Paulinho ficou ali, me ajudando, mas seus olhos pareciam insistentemente buscar algo em mim, uma verdade que eu não sabia dar. Acho que se mamãe não tivesse ali, ele teria me perguntado e aí então... Ai, ai, ai!
Aí, veio a notícia que caiu como um trem na minha cabeça: Leonardo estava voltando. Dizia que vinha pra festa com uns amigos de Beagá. Papai que nos informou, avisado pelo Seu Zé Formoso de um telefonema recebido lá na venda. Meu coração sofredor começou a bater mais alto, covardemente mais alto, e não sabia dizer se era de medo, ou de saudade, ou de algo que eu não queria reconhecer.
O menino Juca, com aquela língua solta, espalhou aos quatro cantos que Leonardo tinha ligado, dando a “boa nova” a todos. “Boa” só não sabia para quem...
Não tardou nadinha para Paulinho saber e tardou menos ainda para ele vir ter comigo para me perguntar. Logrou de ser um dia em que eu estava na varanda com mamãe, descascando milho verde para preparar mais quitutes. Sua voz tremia de ansiedade, talvez de medo, medo que talvez eu tivesse lhe passado:
- Emilinha, eu soube que o tal Léo tá voltando? – Perguntou, já sabendo a resposta, tentando soar casual, mas com uma ansiedade que pisoteava as palavras.
Eu não parei de descascar o milho, mas minhas mãos ficaram lentas, quase pararam. Mamãe, do meu lado, continuou o trabalho, mas notei que seus olhos estavam atentos, os ouvidos então... Parecia esperar minha resposta:
- Soube sim, Paulinho... - Respondi, tentando parecer calma ao falar de algo sem importância: - Ele disse que gostou tanto de Passa-Vinte que queria voltar e perguntou se podia trazer uns amigos pra conhecer. Sei lá... Coisa de gente da cidade grande, sabe?
- E tu acha isso bom? - Ele perguntou e juro que ouvi um tremor na sua voz, mamãe então deve ter ouvido até seu coração.
Na mosca! Mamãe levantou os olhos, com a cabeça inclinada pras espigas, mas nos olhando, um e outro, curiosa. Eu olhei pro Paulinho, tentando esconder o aperto no peito, e forcei um sorriso:
- Ara, Paulinho, que mal tem? Ele é meu primo, oras. - Respondi, com um tom que queria ser firme, mas que saiu hesitante.
Mamãe me lançou um olhar repreensivo e bufou discretamente, mas não para mim que a conhecia bem demais. Ainda assim eu parecia ouvir novo conselho mesmo sem as palavras serem ditas: “Cuidado, menina! Ocê tá esticando demais a corda. Cuida, senão arrebenta!” Paulinho não insistiu, mas vi nos olhos dele que minhas palavras não acalmaram o seu coração. Ele se despediu e foi embora, e eu fiquei ali, com o milho nas mãos, o olhar da minha mãe e o pior, seu silêncio, só sentindo o peso daquele não disse mas disse demais.
A noite principal da festa de Nossa Senhora do Carmo chegou, trazendo com ela, o Leonardo. Eu estava na barraca dos doces, com meu vestido xadrez, tranças no cabelo e um batom vermelho que mamãe insistira que eu passasse. “Não é porque é moça direita que tem que esconder a belezura. Só cuida de manter a postura de respeito, Emilinha”, dissera ela, e eu obedeci, embora me sentisse mais exposta do que de costume.
A praça estava cheia. Cheia de gente e cheia do cheirinho das diversas delícias da festa que todo mundo ajudou a preparar. Aliás, música boa para bailar também não faltava, pois Seu Alaor, além do seu acordeão, trouxe também Valtinho, um violeiro bem famoso naquelas banda. Eles faziam a gente balançar mesmo sem a gente querer tamanha a desenvoltura. Leonardo aparecera com dois amigos que também pareciam saídos de um filme, com camisas bem passadas e cabelos brilhando de gel. Eu já sabia que ele havia chegado, mas consegui evitá-lo bravamente, arrumando mais serviço do que precisava. Ainda assim, quisera o destino que a gente se encontrasse, ou ele a mim:
- Prima! Tô de volta! - Ele gritara, me abraçando com aquele calor que me fazia corar.
- Ara! Eu sei, Léo, cê tá dormindo em casa, primo. - Retruquei, rindo, mas já me lamentando por não tê-lo chamado de Leonardo.
- É, né!? Mas você nem para lá pra gente conversar. Até achei que já tivesse casado com o Paulinho e me abandonado. - Ele riu e apontou para os outros dois: - Trouxe uns amigos pra conhecer o melhor de Passa-Vinte: tu e os doces da tia Clara!
Fui então apresentada ao Gustavo e ao Felipe, dando três beijinhos em cada um “pra casar”, como era costume por aqui. Leonardo fizera uma piada qualquer e eu ri, mais para não fazer desfeita do que pela graça em si, porque eu sentia os olhos de Paulinho, cravados em mim como duas espadas. Aliás, ele se aproximou, vindo sei lá de onde e ficou de espreita até ser notado pelo Leonardo, que não perdoou:
- E aí, Paulinho? Nem vi você aí... - Dissera Leonardo, com aquele tom que misturava simpatia e provocação, esticando a mão e vendo Paulinho apertá-la com força, praticamente o convite a uma peleja tal qual tapa de luva de pelica, praticamente aceitando a contenda.
Leonardo então o apresentara aos amigos e fizera uma piada qualquer sobre o forró que já começava a ganhar audível volume para desespero de Padre Cláudio. Paulinho não se fizera de rogado e retrucara em alto e bom som:
- Se for pra dançar com a Emilinha, tô mais que preparado. E, ó, melhor ocês irem ajeitando umas moças por aí, senão vão tudo ficar morgando nas beirada.
Leonardo riu, mas um riso frio, sem graça, como se a resposta dele fosse uma piada a ser ignorada. Eu tocara o braço de Paulinho, pedindo calma, mas meus olhos, traiçoeiros, davam um jeito de fugir pros do Leonardo, e eu me odiava por isso. Durante a noite, dançara só com o Paulinho, forró, catira, girando na quadrilha, sempre sentindo o calor da fogueira e o peso do olhar dele que parecia querer ler minha alma. Leonardo dançava com outras moças, sempre na minha frente, parecia fazer questão de exibir que ele podia com quem ele quisesse. Eu via ele sussurrando histórias para elas, talvez as mesmas que tivesse feito para mim, e também contava para os outros, em voz alta, fazendo a praça rir. Mas, vez ou outra, muito mais do que eu queria, nossos olhos se cruzavam, e eu já não sabia se era ele que me procurava ou se era eu que, mesmo sem querer, o procurava.
Depois da quadrilha, quando a fogueira já estava baixa, Paulinho me puxou pra um canto, perto da igrejinha, onde as sombras nos escondiam dos olhares curiosos:
- Emilinha, eu quero falar co’cê e tem que ser já! - Pigarreou, controlou a emoção que ameaçava transbordar e então falou: - Eu... Eu preciso saber... Tu e o tal Léo... tem algo entre vocês?
Arregalei os olhos, abri a boca e devo ter ficado branca, pois senti o coração parar. Paulinho estava ali, me olhando, pedindo uma verdade que eu não sabia como dar. Até sabia, mas tinha um medo que me obstava:
- Não minta pra mim, por favor. - Ele insistiu, o olhar sério, machucado: - Eu vejo o jeito que ele te olha, o jeito que tu olha pra ele, como ocê ri das coisa que ele fala... Eu tô ficando louco, Emilinha. Fala, fala pra mim!
Eu quis rir, dizer que era coisa da cabeça dele, mas os olhos dele, tão cheios de dor, me calaram. Minha voz saiu baixa, tremendo:
- Paulinho... tu é importante demais da conta pra mim. Sempre foi. Mas...
Não sei de onde saiu, mas a palavrinha “mas” caiu como uma pedra sobre o já combalido Paulinho. Vi o semblante dele desmoronar, como se eu tivesse arrancado a certeza que o mantinha de pé:
- Mas o quê, Emilinha? Fala logo, pelo amor de Deus! - Ele pediu, praticamente implorando, com a voz apertada, quase gemendo.
Eu hesitei, com os olhos brilhando de lágrimas que não caíam:
- O Léo... ele é diferente. Ele fala de coisas que eu nunca vi, de um mundo que eu só imagino. Não é que eu não goste do’cê, Paulinho, mas às vezes eu penso... e se eu estiver perdendo algo? E se o mundo lá fora for mais do que Passa-Vinte pode me dar?
Um tapa na cara de um homem honrado como ele não o machucaria mais do que minhas palavras insensíveis. Tinha ciência disso, mas quando vi, já tinha falado e o dito não poderia mais ser desdito. Não era uma confissão de traição, do beijo roubado na surdina, mas era quase pior: era a confissão de uma dúvida, de um desejo que talvez ele, com seus pés fincados em Passa-Vinte, nunca pudesse satisfazer:
- Então tu tá dizendo que gosta dele? - Ele perguntou, a voz embargada: - Que ele é melhor que eu?
- Não, Paulinho, não é isso! - Eu segurara as mãos dele, com força, como se quisesse impedir que ele fugisse, quase colando a minha boca a dele: - Eu não sei o que sinto. O Léo é meu primo, mas ele... ele me faz pensar, me faz querer mais. Só que às vezes eu...
Eu me calei novamente, covardemente, mas agora com uma boa intenção, o medo de o magoar ainda mais. Talvez não fosse falta de coragem, mas sim falta de verdade mesmo, de palavras verdadeiras que pudessem entregar o meu verdadeiro sentimento. Ele não disse mais nada, só me levou pra casa e o abraço que me deu na despedida parecera um adeus. Fiquei olhando ele se afastar, com o coração apertado, pensando se eu tinha perdido ele pra sempre por causa de um “mas” que nem eu entendia o significado ainda.
Sabia que tinha errado com Paulinho e precisava fazer algo a respeito. Mamãe, sempre acordava cedo, antes de todos na casa, antes até mesmo da galinha Genoveva, e era bom porque eu precisava de aconselhamento. No dia seguinte, ao ouvir os primeiros passos, levantei-me e fui ter com ela. Naturalmente, ela se surpreendeu ao me ver de pé e já intuiu coisa ruim:
- Fala, Emilinha. Que qui conteceu?
- Mamãe, eu... - Minha pergunta morreu antes mesmo de nascer e me calei, apenas fazendo um bico na tentativa de conter as lágrimas.
- Não foi Paulinho? - Ela perguntou, com a calma dos anjos e eu apenas neguei com um balançar de cabeça: - Leonardo, então?
Tentei negar, mas meu pescoço travou mais duro do que quando tive um torcicolo e tiveram que me levar num doutor médico de Monte Verde de Cima. Estranho era que consegui tombar a cabeça de lado e levantar levemente os ombros. Para ela foi o suficiente:
- Tendi... Vou falar para o teu pai despachar o Leonardo e os outros dois. Ele não tá te fazeno bem.
- Ma-Ma-Mas, mamãe?
- Para, Emilinha! Ou ocê me fala o que tá aconteceno, ou eu decido o que aconteceu? É, ó, que eu tenho uma imaginação boa demais da conta: quase nunca erro!
Contei. Nem sabia como consegui, mas contei. Tudo. Tudinho mesmo. Eu parecia uma matraca desembestada falando sem parar, nem para respirar eu parei. Mamãe ouvia tudo, atenta, séria, concentrada e só quando tive uma falta de ar, ela se mexeu para me pegar um copo d’água. Então, fiquei quieta, esperando a surra das surras, a coça com vara verde ou de marmelo, uma que ela nunca me dera, mas eu estava mais que merecendo:
- Nossinhora!...
A palavra que ela disse não me assustou, mas o silêncio que se seguiu, sim. Durou uma eternidade até que ela:
- Leonardo precisa ir e é pra ontem! - Ela me olhava atenta, talvez esperando uma negativa minha que não dei: - E para nunca mais voltar! E, ocê, Emilinha, precisa aquietá o seu coração e decidir o que quer. Paulinho não merece uma desfeita dessa. Então, ou ocê firma o pé, noiva e casa, ou libera o rapaz para ele encontrá alguém que o queira sem dúvidas.
- Eu... Eu... amo o Paulinho... - Resmunguei, entristecida com a dura realidade e até me surpreendi com o meu próprio sentimento.
- Então, mocinha, diz isso pra ele! Se não puder ser com palavras, porque a língua às vezes trava, diz em gestos, carinhos, proximidade, bem querer... – Colocou a sua mão sobre a minha, um sorriso doce, mas triste nos lábios: - Mas diz, filha, com o coração. Ele é um moço bom, não merece passar por uma tristeza dessas.
- Eu sei, mamãe, eu sei... Mas e o beijo? O que faço? Conto pro Paulinho ou...
- Nem pensar! - Mamãe me interrompeu: - Paulinho é calmo, mas é honrando, é um Sandoval Silva, filha. Se ocê contar que Leonardo roubou um beijo seu sem seu querer, é bem capaz dele vir aqui e fazer besteira. Não quero que ele manche as mãos e estrague a própria vida, ou mesmo a do teu primo, tamo entendida?
Concordei com um simples movimento de cabeça e logo ouvimos mais sons vindo dos quartos. Voltei correndo para o meu, pois não queria encontrar mais ninguém, mesmo que, naquele horário, só pudesse ser o papai, e para ele eu não contaria, pois, o conhecendo, ele expulsaria Leonardo a pontapés de casa.
Decidi seguir à risca o conselho de mamãe. Passei a agir como se nada tivesse mudado, sorrindo mais pro Paulinho, procurando-o sempre, levando marmita ou um agrado qualquer para o café durante o seu trabalho, fazendo tudo o que podia para ele entender que eu era dele, de mais ninguém. Mas ele estava diferente, mais calado, mais distante. Leonardo e os amigos ficaram mais uns dias, sinal de que mamãe também não contara nada a papai, evitando um desentendimento na família. Coincidência ou não, ouvi umas fofocas estranhas até, sobre o Felipe e a Isaurinha, que teriam sido pegos no rio, pelados. Não sabia se era verdade, mas mentira também não parecia ser, porque Isaurinha sumiu por bom tempo e quando voltou parecia outra, mudada mesmo...
Paulinho evitava vir à minha casa a todo custo, talvez para não encontrar o Leonardo, e foi bom, porque assim eu podia ficar com ele sem o risco de me desgastar ainda mais. Havia um... medo do que Leonardo podia despertar em mim, mas, ao mesmo tempo, uma curiosidade. É estranho, mas sentia eu que Leonardo sempre estava à espreita, como uma sombra que não explicava se era ameaça ou promessa.
Numa noite estranhamente abafada, pois era inverno, tinha geado até uns dias antes, uma lua cheia surgira intencionada a iluminar até os mais profundos segredos da alma de uma certa mineirinha. Eu estava na varanda, sozinha, tinha passado o dia todo com Paulinho na roça, ele trabalhando e eu velando a uma marmita de pão de milho, bolo de fubá e café que fizera questão de fazer e levar com todo o carinho. Enfim, olhava eu pro céu, perdida em pensamentos, dúvidas, medos... Mamãe e papai tinham ido na igreja resolver algo com Padre Cláudio e a casa estava quieta, só se ouvia o canto dos grilos. Eu já me preparava para entrar, quando Leonardo chegou com seus amigos vindo de sei lá onde, sem aviso, como ele sempre fazia. Os amigos entraram, ele não:
- Prima, você está pensativa demais... – Disse, com aquele sorriso que misturava charme e perigo.
Eu ri, tentando parecer leve e já me dirigindo para dentro, querendo me trancar em meu quarto até ele entender que eu queria distância. Então, respondi, tentando menosprezar sua preocupação:
- Ara, Léo, é só... É nada! Coisa de mulher...
Entretanto, ele se aproximou e antes que eu pudesse recuar, avançar ou fugir e pior, ele me prensou na mureta da varanda e me abraçou, e não era um abraço de primo não: era algo mais... mais íntimo, intenso e trazia um calor que só podia vir do inferno, de tantos pecados culposos acontecidos. A mureta de madeira rangiu e então ele sussurrou algo no meu ouvido que eu, nervosa, não entendi. Juro! Talvez uma brincadeira sobre as estrelas, talvez sobre sentimentos não correspondidos, talvez sobre nada, mas sua voz estava tão perto, tão, tão, que meu coração disparou. Por um instante, nossos rostos ficaram próximos que era possível sentir o calor do seu hálito. E eu sabia que ele sentira o meu também, não tinha como não. E sem que eu quisesse, mas também sem que não quisesse, nos beijamos novamente. Dessa vez, a minha língua também ousando entrar em sua boca, aquele calor pecaminoso me invadindo, me tomando, quase me entregando de vez a ele. Não sei se o abracei, acho que sim. Mas se beijei, abraçar era o de menos. E não sabia quanto tempo durou, mas fora mais do que eu queria, por isso o empurrei, totalmente perdida numa casa que eu conhecia como a palma da minha mão:
- Léo, para! Já falei que sou moça direita! Cê sabe que eu namoro e é pra casá! - Falei, com a voz alta, a mão em seu peito, mas tremendo inteira como bambu verde no vento.
Ele riu, como se fosse só uma brincadeira, e se dirigiu para entrar em casa, falando alto pra despistar:
- Tudo bem, prima, foi só... sem querer! Mas que sem querer mais gostoso, hein? - Disse, já com o pé já pra dentro de casa.
Fiquei ali, tentando me acalmar, um medo dele voltar e eu não conseguir mais resistir a algo que nem eu mesma sabia se queria ou não. Olhei pro céu, com o coração batendo igual zabumba e pra lua, balançando negativamente minha cabeça, esperando que ela não tivesse testemunhado o meu descaminho. “Ainda bem que Paulinho tá lá em casa, senão...”, pensei. Eu não queria trair Paulinho, não queria ser a Capitu que ele talvez visse em mim, mas, por que eu não conseguia manter o Léo longe da minha cabeça? LE-O-NAR-DO, Emilinha, Le-o-nar-do! Era amor? Curiosidade? Medo de ficar em Passa-Vinte? Não sabia. E acho que ninguém saberia...
Na manhã seguinte, mamãe me encontrou sentada num banquinho da varanda, com olheiras fundas de quem não conseguira pregar os olhos. Ela não perguntou nada, só me deu um café quente e disse:
- Emilinha, olha a xícara. - Olhei sem entender nada e ela continuou: - Mulher é como café: tem que tratar, tem que cuidar, colher, secar... Precisa de tempo e jeito pra ficar bão, e se não tomar cuidado, o café perde a bebida, e aí não tem quem conserte.
Eu a olhei, ainda sem entender, mas imaginando onde ela queria chegar, e ela sorriu:
- Será que o cê tá dando o seu café para a pessoa certa cuidar?
Eu não respondi. Apenas abaixei minha cabeça. As palavras dela ecoaram em mim, mas não trouxeram paz alguma. Só me fizeram pensar no Paulinho, no Leonardo, e até na Emilinha que um dia eu fora e que queria voltar a ser. Tinha saudades da minha infância, quando tudo era tão mais simples...
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