✧ A Brecha na Muralha ✧
(Lucas)
A primeira luz da manhã era uma lâmina fria e cinzenta, infiltrando-se pelas costuras da lona para julgar impiedosamente os destroços da noite anterior. Eu estava de pé há horas, um sentinela assombrado pela própria memória, pois o sono se recusara a me acolher. Cada vez que minhas pálpebras se fechavam, a humilhação me engolia de novo: o tremor incontrolável, a vulnerabilidade nua e, pior que tudo, o abraço. O calor de Tiago. O contato que me ancorou no olho do furacão de minha mente e que agora me queimava com uma vergonha lancinante, como um ferro em brasa na alma.
Dobrei meu saco de dormir com uma precisão mecânica, quase militar, limpei e arrumei minhas armas, fiz qualquer coisa para manter as mãos ocupadas e os olhos distantes da forma encolhida do outro lado da tenda. O Vínculo entre nós, antes um fio tênue e irritante, agora pulsava com uma familiaridade invasiva. Eu sentia sua respiração regular, o ritmo tranquilo de seu sono, e cada pulso era um eco da noite anterior, um lembrete do que ele havia testemunhado. A fortaleza que eu levara uma vida inteira para erguer ao redor de mim não apenas rachara; ele a atravessara sem pedir licença e vira a criança patética e apavorada que eu mantinha acorrentada na masmorra mais funda.
(Tiago)
Despertei do abismo de um sono pesado, arrastado à superfície por uma dor de cabeça que latejava como um tambor de guerra. Meus ossos pesavam, protestando contra o gasto colossal de energia da noite anterior, mas minha mente, pela primeira vez em muito tempo, estava estranhamente límpida. A primeira imagem que meus olhos focaram foi a silhueta de Lucas, de costas para mim. Seus movimentos eram rígidos, controlados, cada gesto um grito silencioso que dizia: “não se aproxime”. O silêncio na tenda era uma pressão física, denso o suficiente para sufocar. O antigo Tiago teria se encolhido sob o peso daquela raiva contida, aterrorizado. Mas eu não era mais ele. Eu estivera dentro daquele caos, sentira sua dor como se fosse a minha própria pele em chamas. Deixá-lo se fechar novamente, trancando-se atrás daquelas muralhas, parecia a mais profunda das traições. Sentei-me, o corpo um emaranhado de dores.
“Lucas”, minha voz saiu como um arranhar de pedras, rouca pelo desuso e pelo sono. Ele congelou, um predador que ouve um galho se quebrar. Mas não se virou. “Não faça isso.”
(Lucas)
“Fazer o quê?”, retruquei, a voz um açoite, mais ríspida do que eu pretendia.
Virei-me lentamente, forjando no rosto uma máscara de indiferença gélida que me custava cada grama de energia.
“Estou arrumando nossas coisas. Precisamos partir.”
Ele me encarava, e o que vi em seus olhos me desarmou. Não era medo. Era uma espécie de desapontamento sereno que me atingiu como um soco no estômago.
“Não finja que nada aconteceu”, disse ele, a voz ganhando uma firmeza que eu nunca ouvira antes. “O que fizemos ontem… salvou você. Foi importante. Você não estava sozinho, Lucas. E eu também não.”
A sinceridade em suas palavras era uma arma contra a qual minha fúria não tinha defesa. Minha armadura de sarcasmo e desprezo parecia frágil, inútil. Um grito subiu pela minha garganta — um comando para que ele cuidasse da própria vida, que me deixasse em paz — mas a memória de seu abraço, daquela empatia inabalável, sufocou o som. Desviei o olhar, rangendo os dentes.
“O que você quer, Tiago?”
A pergunta saiu exausta, um suspiro de rendição.
Ele respirou fundo, como um homem que se prepara para um mergulho.
“Eu não quero ser seu fardo, ou o ‘verme’ que você precisa proteger. E não quero que você seja apenas meu Guardião. Depois de ontem… acho que podemos ser… aliados. Talvez até amigos.”
A palavra “amigos” pairou no ar, estranha, frágil e perigosa. Mas “aliados”… isso eu podia entender. Era um pacto. Um reconhecimento funcional de interdependência. Era tático. Eu assenti, uma única e curta inclinação de cabeça. Por ora, aquilo teria que bastar.
(Tiago)
Aquele simples aceno foi como o sol rompendo uma tempestade. A pressão na tenda não desapareceu, mas aliviou, permitindo-me respirar de novo. Uma hora depois, com o acampamento desmontado e guardado, estávamos debruçados sobre o Mapa Sussurrante. Até então, o pergaminho permanecera teimosamente em branco. Agora, como se despertado pelo nosso novo entendimento, ele se iluminou. Linhas de luz prateada se espalharam por sua superfície como veias, desenhando uma geografia complexa e antes oculta. Um ponto específico começou a brilhar com uma intensidade dourada, aninhado entre uma cordilheira que parecia uma espinha dorsal de pedra e um rio sinuoso como uma serpente de prata.
“Olhe”, disse Lucas, sua voz neutra, mas com um traço de urgência.
Olhei para o nome gravado em runas antigas ao lado do ponto brilhante: “Santuário das Fontes Espelhadas”. Li o nome em voz alta, e as palavras ressoaram com uma musicalidade poética, uma promessa. Talvez fosse um lugar de purificação. Um lugar para lavar as memórias imundas que Malakor havia cuspido em minha alma.
(Lucas)
Retomamos a marcha. O terceiro dia de viagem foi envolto em um silêncio cauteloso, um armistício frágil. A floresta ao nosso redor era densa e primordial, o ar pesado com o cheiro de terra úmida, musgo e o ciclo eterno de decomposição das folhas. Eu caminhava na frente, como sempre, mas minha percepção estava alterada. Não ouvia mais apenas o som desajeitado dos pés de Tiago se arrastando atrás de mim. Eu sentia, através do Vínculo, sua determinação teimosa, sua exaustão física e uma corrente subterrânea de algo que parecia… admiração. Inquietava-me profundamente. Ele não era mais apenas o Escolhido, um pacote a ser entregue. Ele era o garoto que invadira meu inferno pessoal desarmado e, em vez de fugir, me puxara para fora. A noção de que eu devia minha sanidade a ele era um peso desconfortável, uma dívida que eu não sabia como pagar. Mas era também uma âncora. Eu não estava mais apenas cumprindo um dever. Estava protegendo um aliado.
(Tiago)
No quarto dia, o gelo começou a trincar. A comunicação ressurgiu em fragmentos utilitários: “cuidado com essa raiz”, “precisamos encontrar água”. Aos poucos, a barreira entre nós se erodia. Naquela tarde, enquanto descansávamos junto ao murmúrio de um riacho, a coragem que vinha se acumulando em meu peito finalmente transbordou.
“Você tem que me ensinar”, disparei, as palavras saindo mais abruptas do que eu planejara.
Lucas, que bebia água de seu odre, ergueu uma sobrancelha.
“Ensinar o quê? A tropeçar com mais eficiência?”
Ignorei a farpa, um hábito que estava se tornando mais fácil.
“Magia. Feitiços básicos. Qualquer coisa. Eu não posso continuar sendo inútil. Se Malakor nos atacar de novo, eu preciso saber como me defender. Como… lutar ao seu lado.”
Eu esperava escárnio, uma zombaria cortante. Em vez disso, ele me observou por um longo momento, seus olhos azuis avaliando-me com uma intensidade fria. Então, para meu completo espanto, ele deu de ombros.
“Certo. Termine de se hidratar. A aula começa agora.”
(Lucas)
Eu o levei a uma pequena clareira banhada pelo sol e cruzei os braços, a impaciência já fervendo sob a pele.
“O feitiço mais elementar. Um ‘Igniculus’. Uma pequena chama.”
Demonstrei, murmurando a palavra com um gesto rápido dos dedos. Uma bolha de luz morna e avermelhada dançou em minha palma por um instante antes de se extinguir.
“É uma questão de foco e vontade. Canalize a energia ao seu redor, dê a ela uma forma e um propósito. Sua vez.”
A primeira tentativa dele foi patética. Gaguejou a palavra, agitou as mãos como se espantasse um enxame de moscas invisíveis e conseguiu produzir apenas uma nuvem de fumaça esverdeada que fedia a ovos podres e pântano.
“Pelo amor dos deuses, Tiago!”, rosnei, abanando o ar fétido para longe do meu rosto. “Concentre-se! Você não está tentando criar um perfume para gambás!”
(Tiago)
Meu rosto ardeu, uma mistura de vergonha e frustração. Tentei de novo, focando com toda a minha força. Desta vez, uma única faísca saltou de meus dedos e pousou em uma folha seca próxima, que começou a soltar uma fumaça fina e acre. Entrei em pânico. Comecei a pisar nela freneticamente, com a coordenação de um filhote de urso, levantando terra e cinzas que sujaram minhas calças. Eu podia sentir a frustração de Lucas através do Vínculo, uma onda de calor irritado que ameaçava transbordar. Eu estava provando que ele estava certo o tempo todo. Eu era um desastre, um peso morto. O desespero e a humilhação me inundaram, e eu me encolhi, preparando-me para a explosão verbal que certamente viria.
(Lucas)
E então, algo se partiu. Não nele. Em mim. Observando aquela figura desajeitada, coberta de fuligem, agitando os braços e tropeçando nos próprios pés para apagar uma brasa minúscula, eu ri. Não foi um sorriso de escárnio ou um bufo de desprezo. Foi uma risada genuína, alta e livre, que ecoou pela clareira, assustando um pássaro em uma árvore próxima. O som me surpreendeu tanto quanto a ele. A cena era tão absurdamente ridícula, tão comicamente distante da tensão mortal de nossas vidas, que quebrou uma represa de gelo que existia dentro de mim há anos. Tiago parou, boquiaberto, me olhando como se eu tivesse acabado de criar uma segunda cabeça. Limpando uma lágrima do canto do olho, minha risada diminuiu para um sorriso cansado.
“Você está pensando demais”, eu disse, a voz surpreendentemente suave. “Você não é um soldado arrombando o portão de um castelo. Pare de tentar empurrar a magia. Lembre-se de ontem à noite. Você não me forçou. Você… se conectou.”
(Tiago)
As palavras dele me atingiram com a força de uma revelação. Conecte-se. Fechei os olhos, ignorando a folha fumegante e o olhar atônito de Lucas. Respirei fundo, não o ar da floresta, mas a energia que pulsava sob ele. Procurei aquela sensação novamente, a de alcançar algo com minha mente, não com meus músculos. Visualizei o Vínculo entre nós, aquele fio de luz e sentimento. Então, em vez de arrancar uma faísca do mundo, imaginei uma pequena porção daquela mesma luz se desprendendo suavemente, se aninhando em minha mão. Eu não a forcei. Apenas a convidei. Sussurrei a palavra, “Igniculus”, e abri os olhos. Flutuando silenciosamente acima da minha palma, havia uma esfera de luz verde-esmeralda, estável e pulsante, que banhava meu rosto com seu brilho suave e não emitia calor, apenas calma. Olhei para Lucas. Ele não estava mais sorrindo. Estava me encarando, os lábios ligeiramente entreabertos, e em seus olhos, pela primeira vez, vi algo que eu nunca pensei que veria direcionado a mim: um assombro absoluto.
Continua…