✧ A Ponte da Frustração ✧
(Tiago)
O sarcasmo de Lucas pingava de cada palavra, mais cortante que qualquer lâmina de goblin. Eu me encolhi no chão, a humilhação queimando meu rosto e se espalhando como uma queimadura em minha pele. “Chuva de peixes”. Era a mais pura, e ridícula, verdade. Na minha hora de maior desespero, a minha magia, o grande poder que me designava como o Escolhido, se manifestou como uma piada cósmica, um escárnio divino. O cheiro acre de rio e entranhas de peixe grudava em minhas roupas, em meu cabelo, em cada poro da minha pele, e eu tinha a certeza assustadora de que aquele odor nauseabundo seria meu companheiro eterno. Tentei balbuciar um pedido de desculpas, uma explicação esfarrapada, qualquer coisa que pudesse diminuir o abismo que se abria entre nós, mas as palavras morreram na minha garganta como peixes fora d'água, sufocadas sob o peso do seu olhar gélido. Ele não disse mais nada. Apenas limpou, com a ponta da lâmina, o lodo da sardinha que teimava em se agarrar ao seu ombro, limpou a espada nas calças já manchadas e gesticulou com a cabeça, um comando mudo para que eu me levantasse. A caminhada que se seguiu foi em um silêncio ainda mais pesado e opressor do que antes, um silêncio preenchido apenas pelo eco do meu fracasso.
(Lucas)
Eu podia sentir a autocomiseração dele vazando pelo Vínculo, uma maré pegajosa e irritante que se chocava contra a minha própria exaustão. Peixes. Por todos os deuses, era isso mesmo, era peixe. A magia dele não era poderosa, era caótica e estúpida, um truque de circo que nos salvou por pura sorte, um golpe de aleatoriedade divina e não por mérito ou habilidade. Não havia controle, não havia foco, apenas uma explosão desordenada de vida aquática. Era completamente inútil em um combate real, um espetáculo patético para qualquer um que realmente soubesse o que era poder. Enquanto marchávamos, eu reavaliava a situação sombria em que nos encontrávamos. Estávamos perdidos, feridos, fedendo como a doca de um porto em dia de tempestade, e sendo guiados por um mapa em branco e um mago que fazia chover trutas. Cada passo meu era pesado, alimentado por uma frustração tão profunda que se tornara uma brasa constante em meu peito, queimando a cada respiração. Eu o empurrava para frente, ignorando seus tropeços desajeitados e o peso do seu desespero, com um único pensamento martelando em minha mente: seguir em frente, não importando o obstáculo, não importa o quão patético fosse o meu guia.
(Tiago)
A floresta, que até então parecia um labirinto sombrio e implacável, finalmente se abriu, mas não para um prado ensolarado ou um caminho mais fácil. Abriu-se para o nada, um vazio aterrador. Um desfiladeiro imenso cortava a terra diante de nós, uma ferida profunda e escura cujas profundezas se perdiam na sombra, engolindo qualquer raio de luz. O vento assobiava por ele, um lamento fantasmagórico, um sopro gélido que parecia me puxar irresistivelmente para a beirada do precipício. E atravessando o abismo, como um fio de aranha ridiculamente frágil, estava uma ponte de corda. Suas tábuas de madeira eram desiguais, tortas e pareciam apodrecidas, com a textura de casca de árvore velha e úmida. As cordas que a sustentavam, grossas e sujas, estavam desfiadas em vários pontos, como cabelos grisalhos em um corpo moribundo. Meu estômago deu um nó violento, revirando-se em agonia. Vi Lucas se aproximar da borda com uma calma perturbadora, sem um pingo de hesitação, testando a corda principal com um puxão firme, completamente indiferente ao vazio vertiginoso que se abria sob seus pés, um convite ao esquecimento.
(Lucas)
Um desfiladeiro. Típico. Pelo menos era um obstáculo honesto, um desafio claro de força e coragem, não um enigma idiota ou uma chuva de salmões. A ponte era velha, sim, mas as cordas principais ainda eram grossas e firmes, seguras o suficiente para suportar o peso de muitos homens. O balanço seria desconfortável, até desagradável, mas nada que eu não tivesse enfrentado antes em minhas jornadas. Coloquei o pé na primeira tábua, que gemeu em protesto sob meu peso, um som agudo e lamentável. Distribui meu peso uniformemente, mantendo o centro de gravidade baixo e as mãos levemente afastadas, como asas de um pássaro cauteloso, para me equilibrar. Atravessei com passos firmes e rítmicos, sem olhar para baixo, sentindo o balanço da estrutura e me movendo com ela, uma dança perigosa sobre o abismo. Era quase meditativo, uma concentração de mente e corpo que me permitiu ignorar o perigo iminente. Em menos de um minuto, meus pés tocaram a rocha sólida do outro lado. Virei-me, a impaciência já crescendo dentro de mim, esperando ver Tiago logo atrás, os olhos fixos em sua figura hesitante.
(Tiago)
Ele fez parecer tão fácil, tão trivial, como se atravessar aquele abismo fosse uma brincadeira de criança. Mas eu estava colado ao chão, meus pés enraizados na terra como se tivessem se tornado pedra, presos por um terror primordial. Minhas mãos estavam suadas e frias, meu coração batia descontroladamente contra as minhas costelas, como um pássaro preso em uma gaiola, e uma vertigem terrível girava o mundo ao meu redor, distorcendo a paisagem em um borrão nauseante. O desfiladeiro não era apenas um buraco no chão; era um monstro faminto, um poço sem fundo, e a ponte era sua língua estendida, perigosamente convidativa, me chamando para ser devorado. Eu podia sentir o olhar de Lucas queimando em mim do outro lado, sua crescente irritação fluindo através do Vínculo como veneno quente, mas minhas pernas simplesmente se recusavam a obedecer, traidoras, paralisadas pelo medo absoluto. Eu estava petrificado.
(Lucas)
Ele não estava se movendo. Estava parado lá, na beirada do abismo, pálido como um fantasma pálido pela própria mortalidade. A princípio, pensei que fosse apenas a exaustão depois da luta com os goblins, mas então reconheci a rigidez em sua postura, o terror absoluto estampado em seu rosto. A raiva subiu pela minha garganta, quente e amarga, uma fúria descontrolada pela sua fraqueza. Goblins, um mapas inútil, peixes voadores, e agora isso? Estávamos perdendo um tempo precioso, um tempo que poderia nos custar a vida ou o destino do reino. “O que você está esperando? Um convite dos deuses?”, gritei por cima do vento que uivava, a voz ríspida e sem paciência, a frustração explodindo em cada sílaba. “Mexa-se! Malakor não vai fazer uma pausa para o chá enquanto você admira a paisagem!” Cada segundo que ele ficava parado era um insulto, uma prova gritante de sua inutilidade, um lembrete constante de que eu estava preso a um fardo inútil.
(Tiago)
A voz dele, carregada de desprezo e impaciência, me atingiu como um tapa na cara. A vergonha foi tão intensa que quase me fez vomitar ali mesmo, no topo do desfiladeiro. Eu queria gritar de volta, queria poder simplesmente jogar meu corpo na ponte e atravessá-la com a velocidade de um raio, provar que ele estava errado, que eu não era um covarde. Mas o medo era uma coisa física, uma muralha de gelo intransponível que se erguia dentro de mim, me prendendo em seu abraço gélido. Forcei um pé para frente, com um esforço hercúleo, tocando a primeira tábua com a ponta da bota. A ponte balançou violentamente sob o meu peso mínimo, um movimento brusco e assustador, e eu cambaleei para trás com um grito estrangulado, caindo de joelhos, o corpo tremendo incontrolavelmente. “Eu… eu não consigo!”, consegui gritar, a voz falhando, patética, ecoando no vazio. “Tenho medo de altura!” A confissão saiu como um veneno, expondo mais uma de minhas fraquezas para o homem que já me desprezava e me julgava a cada instante.
(Lucas)
“Medo de altura”. As palavras ecoaram no meu cérebro como um trovão, e por um momento eu fiquei mudo, incredulidade paralisando meus pensamentos. Depois de tudo que tínhamos passado, depois de enfrentar goblins e uma chuva de peixes, o grande Escolhido, o mago que deveria salvar o mundo, tinha medo de atravessar uma maldita ponte de corda. A humilhação me atingiu com força total, um golpe baixo e certeiro. Não a humilhação dele, a minha. Ter que parar a nossa missão vital, ter que arriscar tudo, porque meu companheiro era um covarde patético. Soltei uma série de palavrões baixos e viscerais que foram levados pelo vento, cada um deles uma explosão de raiva e frustração. Então, com uma fúria controlada que fazia meus músculos tremerem, eu me virei. Marchando de volta pela ponte, meus passos eram pesados e furiosos, fazendo a estrutura inteira protestar, rangendo e balançando perigosamente. Eu teria que buscá-lo. Como uma maldita babá, como um guarda de prisão.
(Tiago)
Eu o vi voltando, e seu rosto era uma máscara de trovão, os olhos faiscando com uma fúria contida. Cada passo dele na ponte rangente era uma acusação, um julgamento implacável. Eu desejei que a terra se abrisse e me engolisse, que o abismo me levasse para longe, para longe de seu olhar. Era pior do que enfrentar os goblins, pior do que o mapa em branco. Este era o meu fracasso mais pessoal e humilhante, a prova concreta da minha incompetência. Ele parou na minha frente, sua sombra imponente me cobrindo completamente, me fazendo sentir ainda menor e mais insignificante. Eu não conseguia encontrar seus olhos, presos à terra em um misto de vergonha e resignação. Então, uma mão de ferro, fria e forte, agarrou meu braço, me forçando a ficar de pé, meus joelhos ainda fracos e trêmulos. “Olhe para mim”, ele rosnou, a voz baixa e perigosa, carregada de uma ameaça velada. Eu levantei a cabeça lentamente, tremendo incontrolavelmente, o medo me dominando. “Você vai olhar apenas para mim. Não vai olhar para os lados e, pelos deuses, não olhe para baixo. Entendeu?”
(Lucas)
Arrastei-o para a ponte. O terror dele era uma coisa palpável, uma onda gelada que me atingia através do Vínculo, misturando-se com a minha própria humilhação fervente, criando um coquetel tóxico de fraqueza e ressentimento. Cada passo que ele dava era hesitante, trêmulo, e a cada vez que a ponte balançava, ele se agarrava em mim com a força de um homem se afogando, os dedos apertando meu braço com uma dor aguda. Eu mantive meu aperto em seu braço, guiando-o um passo de cada vez, o rosto impassível, uma máscara de controle, enquanto por dentro eu gritava de raiva, de frustração, de desgosto. Isto não era uma missão para salvar o reino, não era uma aventura épica. Era uma farsa, uma piada cruel. E enquanto o vento uivava ao nosso redor, naquele balanço precário sobre o abismo, eu nunca me senti tão longe de ser um herói e tão perto de ser um carcereiro, aprisionado pela incompetência do Escolhido.
Continua…