Ao chegar em casa me deparei com a minha família em peso. Não parecia que vivíamos um momento tenso da pandemia e sim que estávamos em uma reunião familiar.
Eu tenho consciência que merecia todo chapisco do mundo, contudo, não era momento para isso. Eu havia acabado de passar por um episódio traumático e só queria descansar em paz.
Mas também entendo o lado deles, nós somos muito unidos e a preocupação as vezes se manifesta de formas não tão agradáveis.
Depois que nos cumprimentamos e eu os acalmei afirmando que estava bem, percebi que meus pais e meus irmãos estavam furiosos, eles estavam insinuando algo como negligenciar os sinais que meu corpo estava dando pela compulsão do meu trabalho.
Eu estava sem cabeça para ouvir mais do mesmo, então resolvi focar em um ponto específico na parede e deixá-los desabafar suas angústias.
Em certo momento, senti a mão de Júlia afagar meu cabelo e olhei diretamente nos olhos dela. Não precisei dizer nada, ela deu um jeito.
— Gente, eu acho melhor a gente ter essa conversa depois, Lore precisa descansar um pouquinho — Juh comunicou, interrompendo-os.
Nós temos um acordo silencioso em que eu chamo a atenção da minha família e ela chama atenção dela, quando necessário. E a gente só inverte em casos extremos, onde a outra realmente precisa, isso evita muita confusão.
Acho que nesse dia foi a primeira vez que Juh fez uma intervenção e se saiu muito bem porque todos a compreenderam.
Saí da sala e fui direto para o banho. Eu só queria esfriar a cabeça e encontrar aconchego na minha muié e nos meus filhos para poder passar por aquela difícil fase temporária.
Deitei e fiquei aguardando Júlia, que demorou um pouco, porém chegou toda carinhosa me abraçando.
— Eu fiz um chá de maracujá para todo mundo se acalmar — Ela disse, após dar um cheiro gostoso no meu pescoço.
— Eles estão precisando mesmo... Você é incrível... — Falei e dei alguns beijinhos no rosto dela.
— Depois trago para você também, deve fazer bem, não é? — Juh perguntou e eu assenti.
— E Kaique e Milena? — Estou com saudade e ainda não os vi — Observei.
— Então... Eu acho que você não vai gostar do que eu fiz, mas pedi para eles ficarem mais dois dias lá em Loren, eles estão cuidando dos gêmeos nesse exato momento — Juh me respondeu.
— Poxa, eu queria tanto você e eles aqui — Disse, apertando o abraço.
— Eu sei, eu só pedi isso porque quero que eles te vejam bem, já conseguindo seguir uma rotina e possam oferecer todo o amor que sabemos que eles têm da maneira correta — Júlia falou, da maneira mais serena possível.
E ela tinha toda razão.
— Tudo bem, amor — Respondi e dei um selinho nela.
— Tem outra coisa, o pai de Mih te ligou bastante, mas seu celular passou muito tempo descarregado. Na correria, acabei esquecendo de ligar... Já deu a data que vocês estipularam dela ir ficar com ele, que ligou para minha sogra e perguntou se pode pegá-la na segunda — Ela me informou.
Nós já estávamos em julho e Milena iria ficar com ele até novembro, caso a pandemia se entendesse ou o colégio determinasse que as aulas onlines seguiriam até o fim do ano letivo... Ou seja, um grande desafio para os corações que convivem com ela a maior parte do dia.
Por conta do COVID-19, nós espassamos bastante o regime de convivência, enquanto ela estava com a gente foi moleza, porém imagina-la tão longe e por tanto tempo, doía bem lá no fundo, principalmente porque meu coração ansiava também pela presença dela.
Como a minha comunicação com o pai dela é básica e devido aos últimos acontecimentos, decaiu drasticamente. Eu sabia que não seria fácil convencê-lo a ceder mais alguns dias.
Evito falar detalhes sobre o dito cujo, mas ele é da Polícia Federal, advogado e a família é muito influente na política baiana. Acredito que assim vocês possam entender que o meu medo relacionado ao que ele pode fazer em relação a nossa filha e o domínio que possui sobre a mídia e a justiça não é nada exagerado.
Minha mãe explicou o que ocorreu comigo e ele aceitou adiar para a segunda-feira, porque era o dia que ele retornava para a Bahia, se estivesse tudo bem, e também pediu que eu ligasse para passar informações adicionais caso precisasse.
Quando liguei, quem atendeu foi o pai dele e me contou que o filho havia sido baleado na perna, mas já estava muito bem. Nem ousei pedir nada, só alertei que ficassem atentos ao tempo de tela e ao horário de dormir de Milena.
— Mih já sabe que vai, amor? — Perguntei.
— Já e dessa vez não está muito contente... — Juh me respondeu.
— Quando ela vier aqui eu converso direitinho, ela é inteligente e vai me entender — Falei.
Com os ânimos mais acalmados, meus pais subiram.
Nunca detalhei minha relação com eles aqui, e é a melhor possível. Nasci em um lar humilde e liberal. Sou a primogênita e vivi coisas que, graças a Deus, meus irmãos não viveram. D. Vera e Sr. Paulo me deram o melhor que podiam dentro de seus limites.
Sempre fui muito atenta, então logo comecei a ajudar como podia, em casa e nas empresas, e acredito que por isso eles me enxergam como uma pessoa confiável, responsável e com um espírito único de liderança.
Portanto, de certa forma, é sempre "decepcionante" a minha negligência com minha saúde.
— Ô, minha filha, você precisa se cuidar... — Meu pai disse, ao senta-se na cadeira ao lado da cama.
— Eu sei, foi um deslize... Não vai mais acontecer — Garanti.
— Por favor, não dá esse susto na gente de novo, foi terrível imaginar um mundo sem você — Minha mãe falou.
As palavras dela mexeram comigo, deu um belo saculejo na alma. A dor de perder um filho é uma das piores possíveis.
— Vai ficar tudo bem, ainda vou perturbar muito vocês — Brinquei e eles riram.
Depois de muito abraço e melação, eles foram para casa de Loren ver como Milena e Kaique estavam se saindo de babás e meus irmãos deram o ar da graça.
A minha relação com eles é bem escancarada para quem nos observe por pelo menos cinco minutos, a gente implica e zoa com tudo que o outro faz, mas há uma amor indescritível que nos move. Quem acompanha de perto, sabe que neles, existe uma admiração por mim que beira a idolatria. Eu sou a primeira pessoa que eles acionam quando dá merda ou quando uma coisa maravilhosa acontece. E eu tenho muito orgulho deles, principalmente de quem se tornaram.
Eles chegaram mansinhos e não disseram nada inicialmente, só deitaram, cada um do meu lado, e ficaram em silêncio por um bom tempo.
— Parece que eu morri e voltei de novo, gente — Falei, para quebrar o clima.
— Você não tem o mínimo de noção do quanto é importante para a gente — Loren disse.
— Não tem um pingo de noção mesmo — Completou Lorenzo.
É engraçado pensar por esse lado, porque eu sempre prezei pela vida deles, desde que nasceram. Eu fiz, deliberadamente e com prazer, coisas que não eram parte das minhas obrigações só para que eles tivessem uma experiência diferente no mundo. Lerene e Lorenzo são pessoas que eu gosto de manter envoltas pelo meu zelo, mesmo que não seja mais tão necessário assim.
Eu tenho facilidade em estipular e expressar a relevância das pessoas na minha vida, mas chega a ser cômico quando percebo o contrário.
— Eu estou e vou ficar bem, vocês não precisam se preocupar — Falei, acariciando-os, enquanto eles faziam o mesmo.
— Prometa... — Loren pediu, com a voz embargada.
— Promeeeto, claro que prometo — Falei, balançando as bochechas dele com as mãos é isso dispersou o clima ruim.
— Como estão os guris? Estou com saudade... — Perguntei.
— Eles também estão, e são tão amorosos e prestativos com Alice e Tiago... Queria que eles convivessem mais — Minha irmã desabafou.
— Essa droga de pandemia está atrapalhando tudo — Meu irmão disse, irritado.
— Menina, você perdeu Lorenzo querendo pular os muros da clínica, sendo carregado pelos seguranças, xingando Deus e o mundo... Foi babado — Loren disse, rindo.
E eu gargalhei.
— Culpa desse seu protocolo, eu quase bati em Davi da raiva que eu estava e ele repetindo: "acalme-se, senhor, no momento, as visitas estão suspensas devido aos protocolos de segurança" — Meu irmão falou, imitando Davi com um expressão facial engraçada.
E eu continuava rindo.
— Poxa, não abriram excessão para meu irmãozinho — Brinquei, agarrando-o.
— Não! E mande mudar isso — Ele respondeu, rindo.
— É temporário, rapaz e no caso, é necessário. Dói, mas é... — Disse-lhe.
Nós ficamos conversando um pouco mais, descontraindo e nem vimos o tempo passar. Somente quando Juh se juntou a nós, trazendo um cafezinho.
Eles foram embora e eu fiquei cheirando o cangote mais gostoso do universo. Acho que deveriam ter me recitado isso e não um remédio que promete tirar boa parte da minha felicidade.
Recebi ligação dos meus sogros e cunhados que foram bem carinhosos. D. Jacira disse que todos rezaram bastante por minha recuperação e que assim que pudessem, fariam uma visita. Eu agradeci todo o carinho e mandei um beijão.
~ Minha família é incrível ❤️
— Amor, estou feliz porque você está visivelmente bem, consigo ver no seu olhar... Por favor, vamos fazer tudo certinho, qualquer coisa você precisar, pode me pedir que eu te ajudo — Ela disse, fazendo carinho em mim.
— Huuuuuuuuuuuuum, qualquer coisa? — Brinquei, apertando o bumbum dela e beijando o pescoço.
Juh começou a rir e eu também.
— Você me entendeu, engraçadinha — Júlia falou e me deu um selinho.
— Entendi, vou me esforçar para fazer tudo direitinho e todos vocês pararem de agir como se eu fosse uma inconsequente — Disse-lhe em tom bem humorado.
— Você foi — Ela falou, convencida.
— Um pouquinho só — Respondi, roubando um beijinho.
— Toma, é o único chá que eu vou te dar hoje — Juh brincou, pegando a xícara na mesinha de cabeceira e rindo.
— Eu merecia o outro também... — Falei dramaticamente e tomando um golinho.
Só aí eu entendi porque chegou todo mundo baqueado, estava super forte e docinho. Derrubou geral!
Na manhã seguinte, bem cedinho liguei não só para o Psiquilord, mas também para toda a coordenação.
Ele foi um lord, como sempre, me escutou e entendeu perfeitamente. Disse que eu nem precisava comunicá-lo sobre, mas eu fiz questão de ser clara sobre o episódio em questão. Ele é um homem com status elevado é de grande influência, eu não queria de maneira alguma, manchar a filial e se a minha saída fosse necessária, na visão dele, eu estava disposta a aceitar a decisão. Mas pelo contrário, ele tinha todos os novos dados em mãos e fazia questão de ressalta-los o tempo inteiro, propôs que quando eu voltasse, comparecesse apenas dois dias na semana ou para solucionar questões pontuais. Eu agradeci e disse que pensaria, confiava em toda a minha equipe, mas tenho um estilo de gestão, onde gosto de estar presente para ajudar de perto, era improvável aceitar a sugestão do meu chefinho.
Não parece, mas sempre dei autonomia aos coordenadores que trabalhavam comigo. Inclusive, desde a formação da equipe da filial, fiz questão de que cada um assumisse seu setor com liberdade para tomar decisões dentro dos parâmetros que construímos juntos. Sempre acreditei que o protagonismo profissional só floresce quando a gente se sente responsável por algo, e não apenas executando ordens.
A diferença é que, mesmo com toda essa autonomia, eu gostava de estar por perto. Estar presente, acompanhar, observar os detalhes, ouvir a equipe fora das reuniões formais… Esse era o meu jeito de liderar. Gosto de saber das entrelinhas, das "besteirinhas" que não chegam por e-mail. Eu me envolvo, me importo e às vezes, exagero. E nesse momento eu estava sendo obrigada a repensar os meus limites
Decidi que faria do meu jeito com minha equipe. Sem intermediários, sem áudios, sem mensagens genéricas. Um por um. Liguei para cada coordenador e tive a mesma conversa, com as adaptações as necessárias. Era o mínimo que eu podia fazer por quem segurava a clínica comigo todos os dias.
Expliquei que ficaria afastada por quinze dias, que seria uma pausa real. Sem reuniões, sem participação de bastidores e sem atualizações diárias. Falei sobre a agenda das próximas semanas já estava previamente estruturada, todos os atendimentos supervisionados confirmados, plantonistas organizados, protocolos atualizados. Os fluxos administrativos e clínicos estavam andando sozinhos e eu confiava nisso.
Para garantir a tranquilidade de todos, informei que, em caso de qualquer crise mais delicada, especialmente aquelas que envolvessem questões éticas, jurídicas ou emocionais graves, havia uma pessoa responsável direta indicada por mim para esse período, mas deixei claro que a prioridade era resolver entre eles mesmos sempre que possível, como já estavam mais do que aptos a fazer.
Assim que desliguei, Júlia pulou da cama em cima de mim e eu agarrei forte, rindo da animação dela.
— Você conseguiu!!!! — Ela vibrou.
— Seu maior sonho aí, eu vagabundando 24h por dia — Brinquei.
— Não fala assimmmmmm! Você vai fazer várias coisinhas — Juh disse, rindo.
— Eu te amo, sabia? — Falei, deitando nossos corpos na cama.
— Eu também te amo! — Júlia exclamou e nos beijamos.
Quando Milena e Kaique finalmente puderam voltar, eu me senti 100%. Eles são meus coração fora do peito e vieram desesperados em busca do meu colinho. Eu os agarrei bem forte e a gente não parava de falar sobre a saudade que estávamos.
— Mamãe, não quero ir com o papai, quero cuidar da senhora. Estou com saudade dele, mas quero ajudar aqui — Mih pediu.
— Mãe, por favor, deixa Mih ficar, depois ela vai e eu juro que não vou ficar chato — Kaká completou.
— Vocês sabem que não funciona assim, que não depende somente de mim... Por mim, meus fiótes não saiam debaixo da minha asa — Comecei explicando.
— Por favor... — Milena choramingou.
— Olha, seu papai também está dodói... Eu tenho dois filhos, aí você vai dar todas as recomendações a Kaká para ele cuidar de mim direitinho e vai cuidar do seu papai que só tem você. Pode ser? — Perguntei e ela ficou pensativa.
— Tá bom... — Aceitou, sem parecer muito satisfeita.
— Kaká, ajuda a mamãe a fazer cafezinho forte todo dia e trás na cama, joga um pouco com a mãe Lore... — Ela ia dizendo, mas parou abruptamente — Mãe, deixa ele ganhar umas porque ele é meio ruinzinho — Mih falou e me fez gargalhar.
— Ei!!!! — Kaique exclamou bravo, e, imediatamente, ela pulou em cima dele, o abraçando.
— Foi só para nossa mãe rir, calma — Milena disse e o convenceu.
~ Acho que não foi brincadeira 🤣
— Não esquece de rezar com nossos anjinhos para ela ficar bem todos os dias, mesmo quando estiver com sono — Ela continuou.
— Eu posso te ligar para a gente rezar junto? — Kaká perguntou e Mih confirmou.
— E se alguém ligar, primeiro você passa para a mamãe porque se for do trabalho, ela desliga — Milena disse, convencida.
— Ei agora digo eu, que história é essa? — Perguntei, rindo da audácia.
— Essa regra a mamãe que criou e eu amei — Ela falou, rindo também.
— Eu também gostei, chega de trabalho — Kaká disse.
— Não tenho um pingo de moral, mas quando é para mamãe comer as frutinhas dela, vocês passam um pano lerdo — Falei, fingindo indignação.
— Oxe, mas é porque as frutinhas dão para comer, mãe — Kaique falou, rindo.
— A gente não tem como comer reunião no meet e papel, caso contrário te ajudaríamos — Milena completou.
— Queria saber com quem vocês aprenderam a engambelar assim... — Falei, estreitando os olhos.
— Com a senhora!!! — Eles exclamaram juntos e nós rimos.
Eu gostaria muito de dizer que foram quinze dias tranquilos e que eu não tive problemas em lidar com a minhas decisões e recomendações do meus médicos, mas não ocorreu assim tão facilmente.
Lá para o quarto dia eu juro que comecei a pensar: "puta que pariu, esses filhos da puta realmente vão me deixar descansar", enquanto me pegava olhando o celular por reflexo, tentando ouvir barulhos de notificação que não vinham.
Recostei no sofa, sem paciência e Juh veio distraída no celular e se acomodou no meu colo.
— Amor, vamos fazer isso no seu cabelo? — Ela me perguntou, mostrando um vídeo do Instagram.
Era uma mulher deixando o cabelo no tom moreno iluminado.
Continua... 😓