O mesmo modo de me chamar (capítulo 2)

Um conto erótico de Nicholas
Categoria: Homossexual
Contém 1960 palavras
Data: 26/08/2025 20:27:56

O bolo caiu primeiro, espalhando-se pelo chão e liberando o cheiro doce da baunilha pelo ar como uma ironia cruel. Em seguida, caiu ele — Zeca — como se o peso de um verão inteiro o tivesse derrubado.

— Zeca! — Joca gritou, desesperado, agachando-se ao lado do irmão. — Amor, ajuda ele!

Meus pés enraizaram no chão. Eu era médico, minha mente conhecia cada protocolo, cada ação a ser tomada, mas minhas mãos hesitaram. E quando finalmente toquei a pele dele, um choque me percorreu como descarga de lembrança, não de eletricidade.

O presente se abriu em fendas. A sala desapareceu.

FLASHBACK

Barcelona. A água fria escorrendo num box estreito depois de uma noite inteira dançando em Las Ramblas. Eu atrás dele, roçando em seu quadril, o riso abafado quando roço a barba em sua nuca, Zeca tomando o sabonete da minha mão. Seu cheiro fresco de hortelã impregnava minha pele e ao mesmo tempo que acalmava, paradoxalmente, incendiava.

PRESENTE

Voltei à realidade com dificuldade, respirando fundo, arfando como quem volta de um longo mergulho, tentando segurar o fio do agora. O corpo dele estava quente, o pulso firme. Não era nada grave. Apenas o susto.

No mesmo instante, quis me punir. Quis voltar no tempo e arrancar de Joca, à força, ao menos uma fotografia do irmão — toda vez que ele dizia que logo eu o conheceria. Ou, quem sabe, ter exigido que ele postasse logo uma foto nossa, sem esse romantismo de guardar o anúncio para depois que eu fosse apresentado seu irmão e cunhada.

De um jeito ou de outro, o destino teria sido traído.

Um de nós teria sabido.

E talvez nada disso estivesse me atingindo agora com a violência de um soco no estômago, enquanto eu tocava o corpo que já conhecia como a palma da mão e tinha que fingir desconhecer.

— Ele vai ficar bem, bebê — disse a Joca, minha voz mais firme do que meu peito.

Zeca abriu os olhos devagar. Encontrou os meus. Por um instante, a Europa brilhou inteira dentro deles. Mas ele desviou, rápido, como quem fecha a janela para não deixar o vento entrar, trazendo consigo o passado.

Joca me puxou pelo corredor, ainda agitado, e abriu a porta de um quarto que até então eu não conhecia.

Era o espaço dele. Transpirava João Lucas. As paredes traziam quadros de jogos de futebol, uma estante com alguns troféus e livros de capa gasta. Sobre a cômoda, fotos antigas: Joca e Zeca ainda crianças, com os joelhos ralados e sorrisos sem dentes; outra, mais recente, com os dois de terno, orgulhosos diante da fachada da transportadora da família.

Senti um aperto no peito. Ali estava, em molduras banais, a história que os ligava — a história que agora me atravessava.

— Vamos tomar um banho, doutor — disse Joca, forçando um sorriso. — Preciso me livrar do peso desse susto.

Assenti, e o segui até o banheiro integrado ao quarto. O chuveiro espalhou água morna sobre nós, dissolvendo o silêncio. Ele ficou na ponta dos pés e encostou a testa na minha, deixando escapar um riso leve. Passei a mão por seus cabelos molhados, escorrendo a água pelo rosto dele, e Joca fechou os olhos, confiando em mim, com a pureza de quem entrega o coração sem limites.

Era carinho puro. Não havia pressa, não havia desejo bruto. Apenas ternura. Lavei suas costas devagar, e ele, suspirando, fez o mesmo comigo. Ficamos assim, dois corpos se cuidando como se o amor fosse mais feito de mãos do que de palavras.

Mas minha mente, ingrata, me traiu.

FLASHBACK

Roma.

Um hotel charmoso perto do Coliseu, água morna correndo sobre nós depois de longas caminhadas. Zeca de frente para mim murmurando “Você lava mal, doutor”, antes de me esfregar inteiro, como quem gravava na pele um segredo impossível de apagar.

PRESENTE

Fechei os olhos com força, afastando o fantasma. À minha frente estava Joca — o homem que me fazia rir com nada, que me olhava sem reservas, que era meu presente. Segurei o rosto dele com ambas as mãos e o beijei na testa, tentando devolver pureza àquele instante.

Saímos do banho ainda rindo, enrolados em toalhas. Joca se jogou na cama de lençóis azuis, os cabelos pingando no travesseiro, e me puxou para perto.

— Amor… o que será que aconteceu com o Zeca? — perguntou, agora mais sério. — Ele nunca desmaiou assim.

Meu peito se fechou, mas minha voz saiu firme:

— Foi uma vasovagal, amor. Com o calor que estava na sala, é normal. O corpo às vezes reage desse jeito.

Ele aceitou a explicação, aliviado, e se aconchegou em mim. Afaguei seus cabelos até que o sono o vencesse.

Eu, porém, fiquei desperto. Não pelo medo da síncope. Mas porque o passado insistia em reviver no vapor do presente.

À noite, Martina preparou um jantar para espantar o silêncio que ainda pairava sobre a casa. A mesa estava bonita, simples, mas carregada de cuidado: louça bonita, vinho na taça, comida servida como quem tenta colar os cacos de um prato quebrado.

Sentei diante de Zeca. Era como estar frente a frente com um retrato que eu mesmo havia enterrado.

Ele manteve a compostura, como se a vida inteira tivesse treinado para aquele momento.

— Então, Nicholas… — a voz grave saiu calma demais, ensaiada. — Você é médico, certo?

Assenti, disfarçando a ansiedade no sorriso.

— Ginecologista, trabalho com fertilização.

FLASHBACK

Lisboa.

Nossa primeira noite. Uma mesa pequena, vinho português enchendo as taças. Ele ouvira minha resposta, arqueou a sobrancelha e soltou a provocação: “Eu transporto mercadorias, você transporta embriões.” Rimos como se fosse a frase mais poética do mundo, brindando a diferença que nos unia.

PRESENTE

O copo voltou aos meus lábios no presente, o vinho queimando minha garganta. Por fora, éramos dois cunhados trocando formalidades. Por dentro, estávamos de volta àquela noite em Lisboa, quando tudo começara.

A casa adormeceu devagar, como um palco após o espetáculo. Algumas poucas luzes iluminavam os cômodos em silêncio quando me fechei no quarto de Joca. Deitei, mas o corpo não obedecia. A mente girava em círculos, prisioneira de dois olhos azuis que eu tinha jurado nunca mais encarar.

Do outro lado da parede, ouvi a risada de Joca — clara, leve, apaixonada. Depois, a resposta grave de Zeca. E, no rastro daquela voz, um nó fechou minha garganta.

Cerrei os olhos. Para eles, era apenas a cumplicidade natural de irmãos. Para mim, era um eco que eu tentava enterrar.

FLASHBACK

Praga.

A ponte iluminada refletida no Vltava, nós dois encostados no parapeito em silêncio. Eu sabia que era a última noite. Ele também sabia. Não havia necessidade de palavras. Apenas seu cheiro fresco de hortelã e a cidade inteira segurando a respiração junto conosco.

PRESENTE

Abri os olhos no escuro. O teto branco não devolveu respostas.

Eu havia prometido a mim mesmo — e a ele — que aquilo ficaria enterrado na Europa. Mas o destino, cruel, escavara o passado e o plantara no meio da sala da minha vida.

O sono não veio. Apenas a insônia, implacável e silenciosa.

A manhã trouxe cheiro de café e o barulho metálico de talheres. Martina já estava à mesa, sorridente, servindo pães e frutas. Joca falava alto, entusiasmado, planejando passeios pela cidade.

Zeca chegou por último. Camisa clara, cabelo ainda úmido do banho. Cumprimentou a todos com naturalidade, até mesmo a mim, com um aceno breve e contido.

Nada fora do lugar. Nenhum olhar prolongado. Nenhum sinal que despertasse dúvida.

Ele pegou a jarra de suco de abacaxi e, no automático, encheu dois copos. Um para ele. O outro, empurrou na minha direção sem pensar.

Fiquei paralisado por um segundo no momento que vi nossa história se materializar em um gesto banal.

— Como é que você sabe que o suco preferido dele é abacaxi? — perguntou Joca, rindo, curioso.

O olhar de Zeca encontrou o meu por um instante. Rápido, ele se recompôs.

— Não sabia… só quis ser gentil.

Meu namorado bateu no ombro do irmão.

— Você é o melhor irmão do mundo.

Zeca manteve o sorriso, mas vi nos olhos dele a fissura que aquela frase abriu. Um rastro de dor que ninguém mais percebeu.

Levei o copo aos lábios. O gosto doce e ácido do abacaxi queimou como lembrança.

Saímos em quatro. A cidade era deles — de Joca e Zeca —, e eu a conhecia agora pelos olhos dos dois irmãos que ali tinham crescido.

— Aqui era onde jogávamos bola até o pôr do sol — disse Joca, apontando para uma praça sombreada por árvores antigas.

Zeca sorriu de leve, completando:

— E foi aqui também que você quebrou o braço, lembra?

Joca riu alto, teatral, virando-se para mim:

— Não acredite nele, doutor. Ele sempre exagera nas histórias.

A palavra bateu fundo. “Doutor”. Vinda de Joca, soava como brincadeira terna. Mas, ao meu lado, vi Zeca se balançar por um instante — mínimo, quase imperceptível. Para ele, aquela palavra era memória: era Roma, era Paris, eram todas as noites em que me pedira, murmurando contra meu ouvido: “Dorme, doutor.”

Martina observava a troca divertida, balançando a cabeça como quem já ouvira aquela lembrança mais de uma vez. Eu os acompanhava em silêncio, sentindo a intimidade natural que só irmãos carregam — um idioma feito de recordações que não precisam de tradução.

Caminhamos pelas ruas, e a cada esquina havia uma lembrança disputada: quem correra mais rápido, quem brigara melhor, quem aprendera a subir em árvores mais rápido. Tudo em tom leve, colorido e cheio de afeto.

Zeca caminhava ao meu lado, discreto. Mas, no meio do riso, seu ombro às vezes roçava o meu, e bastava isso para reacender o verão inteiro dentro de mim.

FLASHBACK

Roma outra vez, na travessia apressada de uma rua caótica. “Calma, doutor, deixa que eu cuido”, ele dissera, segurando firme minha cintura.

PRESENTE

Agora, naquele passeio banal, um passo ao lado dele bastava para fazer o passado pulsar inteiro. E no ar, outra vez, o frescor de hortelã que eu sabia emanar dele.

Joca apontou para a esquina seguinte.

— É aqui que vendem o melhor pastel da cidade. Você vai provar, amor, não tem como escapar.

E sorriu, com aquele jeito que me fazia amá-lo sem reservas.

Eu sorri de volta, inteiro dele.

Mas, ao lado, outro sorriso ainda vivia guardado dentro de mim.

Mais tarde, paramos num café. Joca falava sem parar sobre o cardápio, pedindo para que eu provasse um pouco de tudo. Martina ria, debochando de sua gula.

Foi nesse intervalo que Zeca ergueu os olhos e encontrou os meus. Não havia hostilidade. Havia ternura. Saudade. Como se ele também tivesse guardado aquele verão em algum cofre escondido.

Desviei primeiro, antes que Joca percebesse. Não por medo — mas porque o peso do olhar era doce demais para suportar em público.

No fim da tarde, Martina quis visitar uma loja. Joca a acompanhou, animado. Fiquei para trás, encostado numa pilastra, quando percebi que Zeca também não tinha entrado. O silêncio nos cercou como um muro.

Ele não disse nada. Eu também não. Apenas ficamos lado a lado, olhando a rua movimentada.

O vento soprou trazendo de novo seu cheiro de hortelã — fresco, vibrante — intacto, como na primeira vez. O peito apertou como se reconhecesse a memória antes mesmo que a mente a chamasse.

Ele pigarreou, baixinho, quase imperceptível, e falou apenas:

— Faz tempo.

E foi tudo. Uma frase curta, sem acusação, sem cobrança. Apenas constatação nua de que passados como o nosso nunca morrem por completo.

Assenti, incapaz de mais.

— Faz.

Naquele instante, não éramos cunhados. Não éramos homens divididos por promessas quebradas.

Éramos apenas dois amantes antigos, respirando um silêncio que ainda sabia o gosto do verão.

E então, como se nada tivesse acontecido, Joca surgiu da loja, sorridente, puxando nossas mãos para seguir. Zeca e eu fomos, obedientes, vestindo de novo nossos papéis.

Mas dentro de mim, o segredo tinha voltado a arder.

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Comentários

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Será que teremos um comeback do amantes europeus?

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Zeca ainda pensa no doutro com remorso ou saudades dos dois juntos na Europa? Haverá uma troca de irmãos ou a inclusão do outro no casal? Tribal familiar... adorando acompanhar o conto ,nota mil.

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