A conversa com Augusto foi, de fato, esclarecedora em muitos aspectos. Acredito que, da mesma maneira que ele me contou sobre ter ficado com meu pai, provavelmente também revelou a meu pai que havia ficado comigo. Preferi não entrar no assunto — afinal, não havia nada que eu pudesse fazer para mudar o que já tinha acontecido. A verdade é que não senti remorso por ter ficado com Augusto e, consequentemente, ter traído Carlos. Senti-me traído primeiro, e como há dois capítulos narrei minha experiência de ser a pessoa traída e não a que trai, de certa forma quis "voltar ao que eu era". Reconheço que isso pode parecer uma desculpa esfarrapada para trair sem culpa, mas compreendam: eu tinha apenas 18 anos.
Eu amava Carlos, talvez da mesma maneira intensa e ingênua que disse amar Luke dois anos antes. Toda essa história é, fundamentalmente, sobre meu processo de amadurecimento — sobre as escolhas erradas que fiz no passado e que me moldaram até quem sou hoje. É sobre decisões equivocadas que, paradoxalmente, me fizeram crescer, como já deixei claro diversas vezes ao longo desta narrativa. Algumas pessoas questionaram as atitudes de Carlos: o fato de ele ter trocado telefone com Raul enquanto eu dormia, ter ficado com Raul naquele momento de vulnerabilidade, sua aparente mudança de personalidade. Mas compreendam algo fundamental: esta história se passa através da minha visão, filtrada pela minha percepção e limitada pela minha experiência.
Aquele Carlos que passou o fim de semana comigo nas serras, que me fez juras de amor, que disse e fez coisas lindas — tudo isso foi captado através das lentes da minha perspectiva. Tudo o que vocês sabem sobre Carlos é mediado pelo meu olhar, seja para destacar suas qualidades ou seus defeitos. E isso me leva a um ponto de reflexão que talvez transcenda esta história específica, mas que se aplica à nossa existência como um todo. Vocês devem estar se perguntando por que estou falando isso, mas quero chegar a um ponto que talvez não tenha nada a ver com a história em si, mas que é um momento de reflexão sobre nossa vida como um todo — e quando digo "nossa", refiro-me à minha vida, à sua como leitor, e à de outras pessoas de modo geral.
A vida das pessoas funciona como se fosse um pay-per-view — muitos não conseguem acompanhar as 24 horas completas de uma existência. As pessoas captam apenas fragmentos de nossas vidas: um story de 15 segundos, alguns momentos isolados, conversas esparsas. A verdade inconveniente é que nunca conheceremos uma pessoa 100% como ela realmente é. O filósofo francês Gabriel Marcel explorou profundamente esta questão em sua obra sobre o mistério do ser, distinguindo entre "problema" e "mistério": problemas podem ser resolvidos através da análise objetiva, mas mistérios — como a natureza profunda de uma pessoa — só podem ser aproximados, nunca completamente decifrados. O outro permanece sempre, em certa medida, um mistério para nós.
Tenho meu jeito particular de agir, falar e brincar quando estou com Carlos — um jeito completamente diferente de quando estou com Yan ou Matias, meus melhores amigos atualmente. Já minha maneira de ser com meus pais assume contornos totalmente distintos. Esta não é duplicidade ou falsidade; é a natural multiplicidade do ser humano. O sociólogo canadense Erving Goffman desenvolveu a teoria da apresentação do self, argumentando que todos desempenhamos diferentes papéis sociais dependendo do contexto e da audiência. Não se trata de mentira ou manipulação, mas da adaptação natural do ser humano aos diferentes ambientes sociais em que se encontra. Goffman utilizava a metáfora teatral para explicar este fenômeno: existe o "palco frontal", onde representamos para nossa audiência, e os "bastidores", onde podemos relaxar e ser mais autênticos. Mas até mesmo nos bastidores, nunca estamos completamente despidos de alguma forma de performance social.
Onde quero chegar é que cada um tem seu jeito, e não conhecemos ninguém por inteiro. Obviamente, quando estamos namorando, estamos conhecendo alguém — um processo gradativo que acontece pouco a pouco, camada por camada. Durante toda minha vida, Carlos esteve presente. Ele sempre foi meu melhor amigo, e eu conhecia partes e pedaços dele, talvez suas melhores características, aquelas que ele escolhia revelar ou que eu era capaz de enxergar naquele momento. O que estávamos vivendo era algo completamente novo, porque, como disse, hoje amo Carlos de uma forma que faz meu coração bater como nunca bateu antes. Mas isso não significa que eu o conhecia integralmente da noite para o dia.
Carl Gustav Jung nos ensinou sobre o conceito da "Sombra" — aqueles aspectos de nossa personalidade que reprimimos ou negamos, mas que continuam existindo em nosso inconsciente. Para Jung, nunca conseguimos eliminar completamente nossa sombra; no máximo, podemos integrá-la de forma mais consciente e saudável. O caso clássico de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, embora seja uma obra de ficção, ilustra perfeitamente esta dualidade humana. Stevenson não estava apenas criando uma história de horror; estava explorando a realidade psicológica de que todos carregamos potenciais sombrios dentro de nós.
O fato de Carlos ter trocado telefone com Raul, ter feito algo pelas minhas costas, ou simplesmente ter tomado a decisão de ficar com Raul — com ou sem mim — partiu completamente dele. Era um lado que eu não conhecia, uma faceta que ele ainda não tinha revelado ou que eu não havia conseguido enxergar. Talvez Carlos seja uma pessoa tóxica, talvez seja um péssimo namorado, mas a verdade é que não posso apontar seus defeitos sem reconhecer os meus. E aqui reside uma reflexão ainda mais profunda: será que estamos preparados para aceitar que as pessoas que amamos também têm sombras? Que elas podem nos decepcionar exatamente porque são humanas?
O filósofo Martin Buber distinguiu entre duas formas de relacionamento: "Eu-Isso" e "Eu-Tu". No relacionamento "Eu-Isso", tratamos o outro como objeto, algo a ser usado, manipulado ou julgado. No relacionamento "Eu-Tu", reconhecemos o outro como sujeito pleno, com sua própria complexidade, mistérios e contradições. Talvez muito do sofrimento em relacionamentos venha de nossa tendência a objetificar o parceiro, esperando que ele se comporte de acordo com nossas expectativas e nossa compreensão limitada de quem ele é.
Existe uma beleza melancólica nesta imperfeição, nesta impossibilidade de conhecimento total. O escritor Milan Kundera explorou como vivemos nossas vidas apenas uma vez, sem rascunho, sem possibilidade de ensaio. Tomamos decisões baseadas em informações incompletas sobre nós mesmos e sobre os outros, e é exatamente essa incerteza que torna a vida simultaneamente angustiante e preciosa. Minha traição com Augusto, as ações questionáveis de Carlos com Raul — tudo isso faz parte desta dança complexa de seres imperfeitos tentando se conectar, se compreender e se amar dentro de suas limitações.
Aos 18 anos, eu ainda estava aprendendo que amar alguém não significa conhecê-lo completamente. Significa aceitar que sempre haverá mistérios, sempre haverá surpresas — algumas agradáveis, outras dolorosas. Talvez a maturidade emocional resida não na capacidade de evitar machucados ou decepções, mas na habilidade de navegar por eles com mais sabedoria, compaixão e autoconhecimento. Esta história não é apenas sobre mim, Carlos, Augusto ou Raul. É sobre todos nós que tentamos nos conectar genuinamente com outros seres humanos, sabendo que essa conexão será sempre parcial, sempre imperfeita, mas nem por isso menos valiosa ou transformadora.
"Conhece-te a ti mesmo" — o antigo preceito délfico continua relevante não porque nos promete autoconhecimento completo, mas porque nos lembra que até mesmo nós somos mistérios para nós mesmos. Como então poderíamos exigir transparência total dos outros? Este capítulo é sobre aceitar que o amor verdadeiro talvez seja justamente isso: a coragem de amar o desconhecido, de abraçar o mistério do outro, mesmo sabendo que nunca o decifraremos completamenteEnquanto eu voltava para casa, no meu celular havia uma mensagem do Carlos me chamando para jantar. Estava me sentindo cansado pelo dia, pelo trabalho da faculdade, e pelo tempo que passei com o tio Augusto. Não estava evitando o Carlos, mas talvez estivesse precisando de um tempo para poder alinhar meus pensamentos. Optei por ligar para ele e marcamos um almoço para o outro dia, porque eu tinha uma lista de exercícios para fazer, o que não era mentira. Ele compreendeu e perguntou se estava tudo bem comigo. Disse que sim, que tinha apenas sido um dia corrido.
Quando cheguei em casa, meu irmão estava assistindo TV com dois amigos. Falei com ele e fui para meu quarto estudar. Deixei o celular de lado e o tempo passou sem que eu percebesse. Já havia anoitecido e meu pai havia chegado sem Camille, então meu irmão foi até meu quarto e me entregou uma caixa. Tinha chegado uma comida para mim com uma carta. Achei estranho porque não pedi nada, mas quando abri o bilhete era do Carlos:
"Um jantar especial pra você, já que você recusou meu convite. Estou te mandando, espero que goste, e obrigado por ser o namorado mais lindo desse mundo. Te amo."
Foi um gesto que me deixou com sorriso de orelha a orelha. Carlos tinha esse dom de me surpreender. Na caixa de comida tinha uma massa com camarão de um restaurante que eu adorava, e uma sobremesa. Carlos definitivamente era incrível em suas atitudes.
Depois que terminei de comer, estudei mais um pouco e fui passear com Thanos. Quando finalmente tomei banho e me deitei na cama, resolvi ligar para Carlos. Ele não atendeu, então quando ia mandar mensagem para ele, ele me escreve: "Tô com meus pais, não posso falar agora."
Obviamente achei estranho ele não poder falar naquele momento comigo, ainda mais estando com seus pais — afinal, eles já sabiam sobre nosso namoro. Então me questionei: será que eu estava me tornando uma pessoa ciumenta e desconfiada? Será que Carlos estava com Raul sem mim? Infelizmente nossa mente às vezes se torna nossa própria armadilha, e essa desconfiança era algo que iria me machucar muito, porque de certa forma eu não estava confiando 100% no Carlos. Mas como eu disse, só me restava aceitar, seja lá o que fosse. Ou seria melhor eu não procurar saber e viver minha vida, meu romance como estava sendo — que de certa forma estava sendo bom para mim? Enfim, eram muitas questões para uma jovem mente.
No outro dia, quando cheguei na faculdade, Raul estava sorridente, aos risos, e me olhou de um jeito estranho. Talvez eu estivesse criando coisas na minha cabeça? Sim, essa era a única resposta para isso. Minha sorte era que eu parecia compreender meus pensamentos e consequentemente não iria cometer nenhuma besteira, ou pelo menos iria tentar. Me juntei ao meu grupo de amigos — Haíssa, Raul e Matias — e entramos num papo. Raul vez ou outra me olhava e sorria. O fato era que toda aquela felicidade estava me incomodando de certa forma.
Quando as primeiras aulas acabaram e fomos para outra sala, Raul foi me acompanhando e puxou papo:
— E aí, como estão as coisas? Ontem nem tive tempo de falar com você. Tá tudo bem entre a gente? — falou Raul.
— Sim, sim, tudo em paz. Nada mudou — falei.
— Quando vamos repetir, eu, você e Carlos? — disse Raul baixinho.
— Raul, acho melhor não repetir.
— Você não gostou? Você não gosta mais de mim?
— Não é isso. Você sabe que você é gostoso — era minha vez de falar baixo —, mas eu tô com Carlos, eu gosto dele, e não quero que meu namoro se torne aberto e tenha outras pessoas envolvidas.
— Se Carlos ficasse comigo, você iria achar ruim?
— Claro, Carlos é meu namorado.
— Foi o que pensei. Você precisa ser mais moderno, Lucas. Esse seu pensamento antiquado já tá bem ultrapassado — disse Raul sorrindo.
— Não sou antiquado, Raul. Só quero preservar o que é meu e o que tô vivendo.
— Tudo bem, gatinho. Não tá mais aqui quem falou. Quando você me quiser, é só me chamar que sou todo seu — disse isso sussurrando no meu ouvido.
A conversa com Raul me deixou com um sentimento estranho no peito. Por um lado, havia algo lisonjeiro em saber que ele ainda me desejava, por outro, suas palavras carregavam uma provocação sutil que me incomodava profundamente. "Ser mais moderno"? "Pensamento antiquado"? Como se minha necessidade de exclusividade no relacionamento fosse algo retrógrado, ultrapassado.
Raul tinha essa capacidade de plantar sementes de dúvida com uma naturalidade desconcertante. Suas palavras ecoavam na minha cabeça enquanto eu tentava me concentrar nas aulas seguintes. Será que eu era mesmo antiquado? Será que a monogamia era realmente um conceito ultrapassado para nossa geração? Mas ao mesmo tempo, uma voz dentro de mim gritava que não havia nada de errado em querer exclusividade, em querer que meu namorado fosse só meu.
Durante o intervalo, observei Raul interagindo com outros colegas. Ele tinha essa aura magnética, essa capacidade de fazer todos se sentirem especiais ao seu lado. Era impossível negar que ele possuía um charme natural, uma sedução quase effortless que atraía olhares por onde passava. Talvez fosse isso que me incomodava: a facilidade com que ele navegava entre as pessoas, coletando admiração como quem coleta flores em um jardim.
Haíssa se aproximou de mim durante o lanche e, com sua habitual perspicácia, percebeu que algo estava me perturbando.
— Você tá meio estranho hoje. Aconteceu alguma coisa? — perguntou ela, mordiscando um sanduíche.
— Não, tá tudo normal — menti, mas ela me conhecia bem demais para acreditar.
— Lucas, você é péssimo mentindo. Fala logo o que tá acontecendo.
Hesitei por um momento. Parte de mim queria desabafar, contar sobre a confusão que estava sentindo, sobre os comentários de Raul, sobre minha crescente insegurança com relação a Carlos. Mas outra parte me alertava que talvez fosse melhor guardar aquilo para mim, pelo menos por enquanto.
— É que às vezes eu me pergunto se eu não estou me tornando ... tradicional demais — acabei confessando vagamente.
— Tradicional como?
— Sei lá, sobre relacionamentos, sobre querer que as coisas sejam só entre duas pessoas, eu sempre fui um pouco safado e nunca fui uma pessoa fiel, mas ultimamente as coisas andam estranhas.
Haíssa me olhou com uma expressão pensativa, mastigando devagar enquanto processava o que eu havia dito.
— Lucas, não existe certo ou errado nisso. Existem pessoas que se sentem confortáveis com relacionamentos abertos, outras que preferem exclusividade. O importante é que você seja honesto sobre o que funciona para você — disse ela, com sua sabedoria peculiar. — Não deixa ninguém te fazer sentir culpado por saber o que você quer.
Suas palavras foram como um bálsamo para minha alma confusa. Era exatamente isso que eu precisava ouvir: permissão para ser quem eu era, para querer o que eu queria, sem me sentir antiquado ou inadequado.
O resto do dia passou sem grandes eventos, mas a conversa com Raul continuou reverberando em minha mente como um eco persistente. À noite, quando finalmente me encontrei com Carlos para nosso almoço atrasado — que acabou se transformando em jantar —, eu estava determinado a não deixar que as inseguranças contaminassem nosso momento juntos.
Carlos estava radiante, contando sobre seu dia, sobre uma apresentação que havia corrido bem na faculdade, sobre os planos que tinha para o fim de semana. Sua animação era contagiante, e por alguns momentos consegui esquecer completamente das perturbações do dia. Era nesses momentos que eu me lembrava do porquê havia me apaixonado por ele: sua capacidade de fazer o mundo parecer mais brilhante simplesmente por estar presente.
— Você parece meio distante hoje — observou ele em determinado momento, interrompendo seu próprio monólogo.
— Não, eu tô aqui contigo — respondi, tentando soar convincente.
— Tá, mas sua cabeça tá em outro lugar. Aconteceu alguma coisa na faculdade?
A pergunta me pegou desprevenido. Parte de mim queria contar tudo: sobre Raul, sobre suas insinuações, sobre minhas inseguranças crescentes. Mas outra parte temia que isso pudesse abrir uma caixa de Pandora que eu não estava preparado para lidar.
— Só foi um dia meio corrido — acabei optando pela resposta segura.
Carlos me olhou por um longo momento, como se estivesse tentando decifrar algo em meu rosto. Então, suavemente, estendeu a mão sobre a mesa e entrelaçou seus dedos com os meus.
— Você sabe que pode falar comigo sobre qualquer coisa, né? — disse ele, sua voz carregada de sinceridade.
Naquele momento, olhando em seus olhos, senti uma onda de amor tão intensa que quase me tirou o fôlego. Sim, eu podia falar com ele sobre qualquer coisa. Mas será que deveria? Será que minhas inseguranças e paranóias mereciam contaminar aquela paz que estávamos construindo juntos?
— Eu sei — respondi, apertando sua mão. — E eu te amo por isso.
Ele sorriu, e por um momento todo o resto do mundo desapareceu. Éramos só nós dois, naquele restaurante simples, construindo algo belo e frágil que eu estava desesperado para proteger. Mesmo que isso significasse carregar sozinho o peso de minhas dúvidas e incertezas.
Mais tarde, quando nos despedimos com um beijo prolongado na porta de casa, eu me dei conta de algo importante: o amor não era apenas sobre compartilhar tudo, mas também sobre escolher cuidadosamente o que compartilhar e quando compartilhar. Era sobre proteger o que construíamos juntos, mesmo que isso significasse suportar sozinho alguns fardos.
Naquela noite, enquanto Thanos dormia aos pés da minha cama e eu fitava o teto no escuro, me perguntei se estava fazendo a coisa certa. Se guardar meus medos e inseguranças para mim mesmo era um ato de amor ou de covardia. A resposta não veio facilmente, e talvez essa incerteza fosse parte natural do processo de amadurecimento que eu estava vivendo.
O que eu sabia com certeza era que amava Carlos profundamente, e que faria o que fosse necessário para proteger o que tínhamos. Mesmo que isso significasse lutar batalhas silenciosas contra meus próprios demônios internos.