✧ O Milagre das Trutas ✧
(Lucas)
Eu enfiei o mapa inútil na minha mochila com um gesto de pura frustração, ignorando o olhar magoado que Zephyr me lançou. Não tínhamos tempo para enigmas e lições de moral. Malakor não esperaria que nós aprendêssemos a dar as mãos e cantar em harmonia. Saí da cabana sem me despedir, mergulhando de volta na trilha com uma raiva que me aquecia por dentro. Tiago me seguia como uma sombra culpada, seu silêncio quase mais irritante que suas gaguejadas. O Vínculo transmitia ondas de sua miséria e eu as rebatia com meu próprio desprezo. Caminhamos por talvez uma hora, o terreno se tornando mais rochoso e acidentado. A floresta parecia prender a respiração ao nosso redor, e foi então que um instinto primitivo, afiado por anos de patrulha na fronteira, se acendeu em minha nuca. Parei abruptamente, a mão pairando sobre o cabo da minha espada. O único som era o farfalhar das folhas. Silencioso demais.
(Tiago)
Cada passo atrás de Lucas era uma tortura. A rejeição dele, amplificada pelo mapa em branco, era um peso físico em meus ombros. Eu me sentia inútil, um fardo, exatamente como ele me via. Quando ele parou de repente, eu quase trombei em suas costas largas. Uma tensão diferente da nossa preencheu o ar, algo selvagem e faminto. Eu podia sentir através do Vínculo a mudança em Lucas; sua raiva se solidificou em uma concentração letal, como água se transformando em gelo. Meus olhos percorreram as sombras entre as árvores e rochas, e foi quando eu vi. Um par de olhos amarelos e maliciosos. Depois outro, e mais outro. Eram como vaga-lumes doentios piscando na penumbra, e o meu sangue gelou nas veias. O silêncio foi quebrado por um rosnado gutural que ecoou por toda a ravina.
(Lucas)
Eles saíram das sombras como baratas, dezenas deles. Goblins. Criaturas pequenas, de pele verde-acinzentada, armados com facas de osso e porretes improvisados. Sozinhos eram covardes, mas em bando, a fome os tornava perigosos. “Fique atrás de mim”, ordenei a Tiago, a voz um rosnado baixo, enquanto desembainhava a espada. A lâmina de aço polido pareceu cantar ao encontrar o ar. O primeiro goblin saltou, gritando, e eu o encontrei com um arco fluido da minha lâmina que o partiu em dois. Era um balé mortal e familiar. Aparar, estocar, girar. O metal encontrava a carne, e o sangue escuro manchava as folhas do chão. Eles eram muitos, no entanto. Para cada um que caía, dois mais pareciam tomar seu lugar, me cercando, tentando flanquear e alcançar o alvo mais fácil atrás de mim.
(Tiago)
Eu estava paralisado pelo terror. Lucas se movia como uma força da natureza, uma tempestade de aço e fúria. Ele era incrível, letal e estava completamente cercado. Puxei a pequena adaga que o Guardião havia me dado, a mão tremendo tanto que mal conseguia segurá-la. Era um palito de dente contra uma matilha de lobos. Um goblin, menor que os outros mas com uma expressão particularmente cruel, se esgueirou pela lateral e correu na minha direção. Levantei a adaga instintivamente, fechando os olhos, esperando o impacto. Mas ele nunca veio. Ouvi um silvo e um baque surdo. Abri os olhos e vi Lucas com o braço estendido; uma faca de arremesso estava cravada no crânio do goblin que agora jazia aos meus pés. Ele não olhou para mim, já estava engajado com outros dois, mas a mensagem foi clara: eu era uma distração que ele não podia se permitir.
(Lucas)
Um corte lacerante abriu meu antebraço. Um porrete atingiu minhas costas, o impacto amortecido pelo couro, mas ainda assim me desequilibrou por um segundo. Eles estavam me desgastando. A fadiga começava a pesar em meus ombros. Eu via a movimentação deles, a tática bruta de me sobrecarregar com números. Um goblin maior, provavelmente o líder do bando, brandia um machado de pedra enferrujado, esperando por uma abertura. Eu sabia que não conseguiria manter aquele ritmo por muito mais tempo. Uma onda de desespero e raiva percorreu meu corpo. Era aqui que eu morreria? Ao lado de um garoto inútil, por causa de um mapa que exigia “harmonia”? A ironia era amarga como fel.
(Tiago)
Eu vi o momento exato em que a maré começou a virar. Lucas estava mais lento, sua respiração mais pesada. O líder goblin se preparava para um golpe fatal. Pânico, puro e absoluto, subiu pela minha garganta. Eu tinha que fazer alguma coisa. Qualquer coisa! Fechei os olhos com força, não pensando em um feitiço específico, mas no desejo avassalador de ajudar, de criar uma distração, de parar aquilo tudo. Eu imaginei água, uma torrente para empurrá-los, para tornar o chão escorregadio e dar a Lucas uma chance. Senti a magia se acumulando dentro de mim, uma energia fria e caótica que se descontrolou e explodiu para o céu.
Uma sombra repentina cobriu a clareira e o ar ficou pesado, carregado com um cheiro inexplicável de ozônio e maresia. Então, começou. Não era chuva. A primeira coisa que caiu do céu e me atingiu no ombro era fria, escamosa e se contorceu antes de cair no chão com um baque molhado. Um peixe. Uma truta esverdeada, para ser mais exato. E então vieram mais. Dezenas, centenas de peixes de todos os tipos e tamanhos começaram a despencar do céu, criando um pandemônio de ruídos úmidos e nojentos. Eles caíam sobre os goblins, que guinchavam de surpresa e nojo. Caíam sobre a terra, tornando o chão uma massa escorregadia de escamas e lodo. Minha torrente de água tinha se manifestado da forma mais literal e ridícula possível.
(Lucas)
Eu estava prestes a aparar o golpe do machado quando um peixe-gato gordo e bigodudo me atingiu na parte de trás da cabeça. Cambaleei, mais por pura incredulidade do que pelo impacto. Olhei para cima e vi um dilúvio de vida marinha caindo do céu. O chão, já manchado de sangue, agora estava coberto por uma camada de peixes que se debatiam. O líder goblin foi atingido por um salmão particularmente grande e caiu de bunda, o machado voando de sua mão. Um de seus comparsas escorregou em uma enguia e deslizou de cara na lama. A fúria da batalha foi substituída por um caos tão absurdo que por um instante ninguém soube o que fazer. O ar cheirava a rio e a morte. E então eu entendi. Não era uma vitória, mas era uma oportunidade.
(Tiago)
Em meio ao caos de nadadeiras e guinchos, senti uma mão de ferro agarrar meu braço. “Agora!”, Lucas gritou, a voz rouca por cima da cacofonia aquática. Ele me puxou com uma força que quase deslocou meu ombro, e nós corremos. Nossos pés escorregavam na bagunça de peixes, e eu caí de joelhos uma vez, as mãos afundando na imundície fria. Lucas me ergueu sem diminuir o passo. Corremos desesperadamente, deixando para trás um campo de batalha bizarro, onde goblins atordoados tentavam lutar contra um ataque vindo dos céus enquanto escorregavam em seus alvos. O som de seus gritos frustrados foi se tornando cada vez mais distante, abafado pela floresta que nos engolia novamente.
(Lucas)
Só paramos quando meus pulmões queimavam e o som dos goblins havia desaparecido completamente. Apoiei-me em uma árvore, tentando recuperar o fôlego, o corpo dolorido e coberto de uma mistura de sangue, suor e vísceras de peixe. Tiago estava esparramado no chão a alguns metros de distância, parecendo um náufrago. Olhei para ele, para o mago patético cuja primeira grande demonstração de poder foi conjurar uma pescaria do apocalipse. A raiva que eu sentia antes havia se transformado em uma exaustão tão profunda que beirava o cômico. Um filete de sangue escorria do meu braço, misturando-se com o lodo de uma sardinha que ainda estava presa no meu ombro. “Chuva de peixes”, falei, a voz desprovida de qualquer emoção. “Dos infinitos milagres que o Escolhido poderia conjurar, foi uma chuva de peixes. Esplêndido.”
Continua…