✧ O Mapa Sussurrante ✧
(Tiago)
Eu acordei com uma sensação de calor estranha e deslocada. O frio úmido da madrugada se infiltrava pela lona da tenda, mas uma parte do meu corpo, meu braço e minha mão, estava confortavelmente aquecida. Abri os olhos lentamente, a mente ainda turva de um sono profundo e exaustivo. A primeira coisa que foquei na penumbra foi o perfil adormecido de Lucas, a mandíbula relaxada de uma forma que eu nunca tinha visto. E então o horror me percorreu como um raio. Minha mão estava espalmada sobre o peitoral largo dele, meus dedos roçando a gola de sua túnica. O calor vinha dele. Eu não me lembrava de ter me movido, mas o Vínculo me trouxe sua consciência ascendendo do sono, e com ela, uma onda de repulsa tão pura e violenta que me fez engasgar. Antes que eu pudesse sequer pensar em recuar, a realidade me atingiu com a força de um tapa.
(Lucas)
Um peso. Um calor. Foi isso que me puxou do sono leve e vigilante que a estrada me forçava a ter. Meu primeiro instinto foi de ataque, minha mão indo para a adaga na minha cintura, mas algo me deteve. Não era uma ameaça, era apenas… um toque. Abri os olhos e vi a mão de Tiago sobre meu peito, os dedos pálidos de aprendiz contrastando com o tecido escuro da minha túnica. Por um instante, fiquei congelado, mas então a repulsa me inundou. Era uma invasão, mais uma violação do meu espaço já inexistente. Agarrei o pulso dele com mais força do que o necessário e o arranquei do meu peito como se fosse uma sanguessuga. “O que diabos você pensa que está fazendo?”, sibilei, a voz baixa e carregada de veneno para não acordar o mundo inteiro.
(Tiago)
Meu rosto queimava de vergonha, o coração martelando contra minhas costelas. “Eu… eu não sei… eu estava dormindo”, gaguejei, a voz um fio trêmulo. A expressão no rosto de Lucas era de puro nojo. Ele não disse mais nada, apenas se arrastou para fora da tenda, deixando-me no espaço apertado com minha própria humilhação. O resto da manhã passou em um silêncio hostil e cortante. Desmontamos o acampamento sem trocar uma única palavra. Cada movimento meu parecia desajeitado sob seu olhar julgador. O Vínculo era um canal aberto de sua irritação e meu constrangimento, uma cacofonia silenciosa que tornava o ar pesado e difícil de respirar. Eu só queria poder me enfiar em um buraco, mas a única opção era seguir em frente, um passo de cada vez, atrás do homem que claramente me desprezava.
(Lucas)
Eu marchei na frente, abrindo caminho pelo terreno com passadas duras e furiosas. A sensação fantasma de sua mão ainda formigava na minha pele. Não era o toque em si, mas o que ele representava: a proximidade inescapável, a intimidade forçada desta maldita missão. Ele era uma constante em meus sentidos — seu cheiro, seus sons, e agora, seu toque. O Vínculo era uma corrente, e ele era a âncora que me arrastava para o fundo. Para me distrair da raiva que fervia em meu estômago, foquei no objetivo do dia: encontrar o Místico Zephyr. Um velho eremita que vivia no meio da Floresta das Sombras, um aliado da corte que, segundo o Rei, nos forneceria nosso primeiro auxílio mágico. Eu esperava que fosse uma espada que lutasse sozinha, porque os deuses sabiam que meu companheiro era inútil.
(Tiago)
Após algumas horas, a paisagem mudou. A estrada de terra deu lugar a uma trilha sinuosa que adentrava a floresta de árvores antigas, cujos galhos se entrelaçavam no alto, formando um teto verde que filtrava a luz do sol em feixes dourados. O ar ficou mais fresco, com cheiro de musgo e terra molhada. A hostilidade de Lucas parecia diminuir um pouco, substituída por uma vigilância aguçada. Em uma clareira banhada por uma luz suave, encontramos uma pequena cabana que parecia ter brotado do próprio chão, coberta de trepadeiras e musgo. Um homem velho, enrugado como a casca de uma árvore, mas com olhos surpreendentemente claros e jovens, estava sentado em um banco de madeira, como se nos esperasse. “A estrada foi dura com vocês”, disse ele, a voz calma como o farfalhar das folhas. “Ou foram vocês que foram duros com a estrada?”
(Lucas)
Zephyr. Ele não havia mudado nada nos dez anos desde a última vez que o vi. Seus olhos tinham a capacidade irritante de ver através de qualquer fachada. Eu apenas acenei com a cabeça, sem vontade de participar de seus jogos de palavras. “Místico Zephyr. O Rei nos enviou.” Ele sorriu, um sorriso que enrugou ainda mais seu rosto. “Eu sei, meu jovem Guardião. A magia de sua chegada cantou para as árvores há horas. Uma canção bem dissonante, devo acrescentar.” Ele nos convidou a entrar. A cabana era pequena, cheia do cheiro de ervas secas e livros antigos. Ele nos serviu um chá de sabor estranho e terroso e então colocou sobre a mesa um rolo de pergaminho amarelado, selado com cera verde. “O primeiro presente da Coroa para sua jornada.”
(Tiago)
Eu me inclinei para frente, movido pela curiosidade e por um pingo de esperança. Talvez aquilo pudesse nos ajudar, nos unir de alguma forma. O Místico quebrou o selo com um polegar nodosso e desenrolou o pergaminho. Estava completamente em branco. Minha esperança murchou instantaneamente. “É um mapa”, explicou ele, com a paciência de quem ensina uma criança. “O Mapa Sussurrante. Ele não mostra o caminho todo de uma vez, apenas o próximo passo da sua jornada. Mas ele é… seletivo.” Ele olhou de mim para Lucas, e de volta para mim. “Ele não responde a comandos ou a poder bruto. Ele desperta com a harmonia.”
(Lucas)
“Harmonia”. A palavra saiu da boca de Zephyr e pairou no ar como uma piada de mau gosto. Senti um riso amargo e seco subir pela minha garganta, mas o sufoquei. Harmonia. Entre mim e o desastre ambulante ao meu lado? O homem que não conseguia nem segurar uma espada ou manter as mãos para si enquanto dormia? Olhei para o pergaminho em branco, e ele pareceu zombar de mim. Era um teste, eu percebi. Um dos enigmas estúpidos que os magos da corte adoravam. Não era um presente, era um obstáculo. Mais um fardo colocado sobre meus ombros. O velho eremita sabia exatamente o que estava fazendo.
(Tiago)
“Como… como o fazemos funcionar?”, perguntei, a voz pouco mais que um sussurro. O ancião sorriu gentilmente. “O mapa precisa sentir a ressonância entre o Escolhido e seu Guardião. Não precisa ser amizade, ainda. Apenas um alinhamento de propósito. Uma trégua no conflito interior de vocês, que reverbera através do Vínculo.” Ele fez um gesto em direção ao mapa. “Toquem-no. Juntos. Concentrem-se no objetivo que os une: a segurança do reino.” Hesitante, estendi minha mão. Lucas olhou para mim com desprezo explícito, mas após um momento tenso, ele estendeu a dele também. Nossos dedos se aproximaram sobre a superfície em branco. Quando minha pele roçou a dele, o Vínculo chiou com o ruído branco de minha ansiedade e seu total e absoluto desprezo.
(Lucas)
No instante em que nossas mãos tocaram o pergaminho, eu soube que seria inútil. Eu me concentrei na missão, na ameaça de Malakor, na ordem da Rei, mas por baixo de tudo, a única coisa que eu sentia era a irritação pulsante da presença de Tiago. O mapa permaneceu inalterado. Vazio. Mudo. A ausência de qualquer reação era uma condenação mais eloquente que qualquer palavra. O Místico suspirou, um som suave de desapontamento. Retirei minha mão abruptamente e enrolei o mapa com um movimento seco e irritado. “Excelente começo, Escolhido”, eu disse, a voz pingando um sarcasmo gelado enquanto eu me virava para Tiago. “Parece que nossa grande jornada terminará aqui, porque o mapa exige a única coisa que você é incapaz de inspirar: cooperação. Vamos. Temos um longo caminho de volta para lugar nenhum.”
Continua…