A porta se abre devagar.
E então ela entra.
Rebecca.
Desmontada.
Os cabelos estão colados no rosto, bagunçados, molhados de suor seco. O vestido preto, amarrotado, o salto na mão. Caminha descalça, com passos lentos, como quem carregou peso demais. Os olhos dela estão vermelhos, mas não de choro. De intensidade.
De excesso.
Quando me vê, não sorri de imediato. Fecha a porta atrás de si, encosta as costas nela, e respira fundo. O corpo ainda trêmulo. As coxas marcadas de roxo. As unhas lascadas. Os joelhos sujos do chão da academia. O batom já foi. O perfume também.
Agora é só ela. Crua. Espalhada.
— Amor... — diz, com a voz rouca, falhada, quase engasgada.
Eu a olho. Só isso. Ela caminha até mim. Larga os sapatos no caminho. Senta no meu colo como um animal cansado que volta pra casa. Me abraça. A cabeça no meu ombro.
Ficamos em silêncio por um tempo.
E então ela fala. Baixo. Quase em lágrimas.
— Eu fui estraçalhada.
Pausa.
— Ele me virou do avesso. Me usou no chão da academia. Me fodeu com raiva, com fome. Me puxou pelos cabelos, me bateu na bunda, me fez implorar. Me chamou de tudo. E eu deixei. Eu queria. Eu pedi.
Ela encosta o rosto mais forte no meu pescoço.
— Era disso que eu tava precisando. Do Vinícius. Do bruto. Do peso.
Beijo o topo da cabeça dela, o cabelo molhado de tudo o que ela viveu.
— Eu sei.
Ela respira fundo de novo. O corpo ainda pulsa sobre o meu.
— Eu dei tudo pra ele hoje. Tudo. E foi bom.
— Você tá linda — digo, com a mão acariciando sua coxa nua, marcada.
Ela sorri. Fraco. Verdadeiro.
— Eu sou sua, né?
— Sempre.
E naquele abraço, ela adormece. Exausta. Desfeita. Sagrada.
E eu fico ali.
Guardando os pedaços dela com o meu silêncio.
Rebecca vive entre dois homens, além de mim.
Não por indecisão. Não por capricho. Mas porque ela é vasta demais para caber em um só modo de ser desejada.
Com João, ela é templo.
Ele a olha como se ela fosse sagrada.
Se aproxima com cuidado, com reverência.
Fala baixo, toca com hesitação, pergunta antes.
Com ele, Rebecca é guia, é mãe, é estrela.
Ele vem até ela com a fome de quem ainda não sabe o que quer, mas sabe que é ali.
E ela o acolhe. Com doçura. Com paciência. Com ternura molhada.
Faz ele gozar no abraço. Faz ele chorar depois.
Ela gosta desse papel. Gosta de educar, de moldar, de ensinar prazer com palavras e silêncios.
Com João, ela é carinho que arde devagar.
Com Vinícius, ela é território.
Ele não pede. Toma.
Puxa os cabelos, a joga contra a parede, a fode no chão da academia.
Não fala muito. Rosna. Exige.
Com ele, Rebecca é vadia, é animal, é posse.
Ela geme de cara no tatame, com o vestido rasgado, sentindo o cheiro do suor no colchão e o gosto do sangue na gengiva.
Com ele, ela desliga o cérebro e abre o corpo.
Deixa ser usada. Estraçalhada.
E volta marcada, tremendo, com o gozo escorrendo pelas pernas.
Com Vinícius, ela é entrega violenta. Gozo sem nome.
Ela ama o João no afeto.
E deseja o Vinícius no instinto.
Mas no fim... Rebecca é um eixo que gira entre os dois.
Ela é equilíbrio entre o que acolhe e o que rasga.
Entre o colo e a coleira.
Entre o menino que a chama de musa e o macho que a chama de vadia.
E eu?
Eu sou quem vê tudo.
Quem escuta tudo.
Quem guarda tudo.
Sou o homem que a ama por inteiro.
E por isso, a deixo ser dividida.
Porque sei que só sendo partida é que ela se sente completa.
É noite. A casa está em silêncio.
A luz do quarto está apagada, só a penumbra da rua entra pela janela.
Rebecca está sentada na beira da cama, só de camiseta, as pernas nuas balançando levemente. O cabelo ainda úmido do banho. Ela não olha pra mim. Está com o celular na mão, olhando para a tela, mas sem de fato enxergar.
Eu me aproximo devagar.
— Tá tudo bem?
Ela suspira fundo, irritada. Larga o celular com força na cômoda.
— Não. Não tá tudo bem.
Fico em pé, esperando. Ela levanta o olhar com dureza.
— Você quer saber o que tá acontecendo? Eu tô cansada, porra.
— Cansada de quê?
— De tudo. Do João, do Vinícius, de mim mesma tentando ser duas pessoas o tempo inteiro. Eu fico com o João e tenho que ser a versão doce, paciente, que conduz. Com o Vinícius eu viro puta, sou tomada, arregaçada... E no meio disso tudo, eu tenho que fingir que não tô me esgotando?
— Você não precisa fingir nada pra mim — digo, calmo.
Ela ri, amarga.
— Não? Porque às vezes até seu silêncio parece julgamento. Parece que você tá esperando eu desmoronar pra depois me consolar com aquele teu olhar de “eu sabia”.
— Rebecca...
— Não. Me escuta. Só por um segundo. Eu amo o João, de um jeito estranho, sim. Eu desejo o Vinícius, como se fosse um vício, sim. E eu sei que isso é confuso, que parece demais. Mas eu não pedi um roteiro. Eu só tô tentando sobreviver à intensidade que eu mesma criei.
Ela se levanta, anda pelo quarto.
— Eu acordo com mensagens doces do João, me chamando de musa. E à noite, tô com a cara no chão da academia, com o Vinícius me chamando de vadia enquanto me fode até eu gozar chorando.
Para de andar. Me encara.
— E aí você me olha com esse carinho... como se eu fosse alguma coisa acima disso tudo. Mas eu não sou. Eu tô quebrada. Tô dividida. Tô... puta. E o pior? Eu ainda gosto.
Silêncio.
Ela se aproxima, me encara de perto.
— Você ainda me quer?
— Sempre — respondo, firme.
Ela fecha os olhos, encosta a testa no meu peito. A respiração dela ainda está tensa.
— Então me segura. Mas não tenta consertar nada hoje.
— Nunca tentei consertar você. Só amar cada pedaço, mesmo os partidos.
Ela morde o lábio. O corpo dela ainda está em guerra. Mas aos poucos... se encosta em mim.
— Eu só... preciso que ninguém me exija agora. Nem você. Nem eles. Nem eu.
— Tudo bem.
E no escuro, ela chora. Em silêncio. Não por fraqueza. Mas por ter sido forte demais.
Ficamos em silêncio.
Então ela se levanta. Devagar. Anda até minha escrivaninha. Abre a primeira gaveta. Mexe ali por um tempo. Encontra algo.
Um envelope branco.
Volta até mim, segura o envelope por alguns segundos. Olha nos meus olhos.
— Eu escrevi isso pra você. Umas semanas atrás.
— Posso ver?
Ela balança a cabeça.
— Não.
E então... sem dizer mais nada, rasga o envelope ao meio, com a carta dentro. Rasga de novo. Em quatro pedaços. Depois caminha até a lixeira, joga tudo ali. Fecha com calma. Volta, senta na beira da cama, ao meu lado.
Silêncio.
Eu não consigo segurar:
— O que tinha ali?
Ela respira fundo. Não me olha.
— Era uma carta pra quando eu decidisse ir embora.
Fico imóvel. O estômago afunda.
— Você ia embora?
— Eu pensei. Algumas noites. Quando voltava dele... e me sentia suja demais pra deitar com você. Ou quando vinha do João e achava que nunca mais ia conseguir sentir tesão de verdade. Eu pensei, Rafael. Juro que pensei.
Pausa. A voz embarga.
— Mas depois de hoje... não quero mais pensar. Não agora. Por isso rasguei.
— E por que me contou?
Ela olha nos meus olhos. E agora tem lágrima ali. E crueldade também.
— Porque eu precisava que você soubesse o quanto eu quase fugi. E o quanto ficar... também é uma escolha difícil pra mim.
Silêncio.
— E porque eu queria ver o que isso faria com você.
Ali está o gesto.
Não o rasgar do papel.
Mas o ato de contar.
De ferir.
De pedir acolhimento e punição ao mesmo tempo.
De dizer: “Eu quase desisti de nós. Mas estou aqui. E agora é sua vez de decidir se aguenta.”
E eu?
Eu fico ali. Sentado. Ouvindo meu próprio coração bater com força.
Porque dessa vez, ela não me mostrou o corpo de outro.
Ela me mostrou o ponto exato onde eu quase fui deixado pra trás.
E isso... isso dói muito mai
Eu a olho dormindo.
Rebecca.
Encolhida do meu lado, cabelos bagunçados no travesseiro, a respiração calma. Ela parece em paz. Mas por dentro, sei... ela está exausta. Fragmentada. Dando mais do que tem. Recebendo de dois homens o que só ela consegue transformar em algo coerente.
E eu?
Eu estou acordado. E em pedaços.
Não foi assim que começou.
No início era um jogo. Um tesão cúmplice. A fantasia de ver minha mulher desejada por outro. Um menino, um amante, tanto faz — contanto que fosse com os olhos voltados pra mim no final. Contanto que ela voltasse pro meu abraço. Pro meu cheiro. Pro meu centro.
Mas o que eu não vi vindo foi isso:
Eles ficaram.
João ficou com o carinho. Com a doçura. Com o colo que era meu.
Vinícius ficou com a posse. Com os gritos. Com o domínio que um dia eu pensei que era meu por direito.
E ela... ela os ama em partes.
E eu?
Eu amo o todo.
Mas e quando o todo começa a me excluir?
E quando ela geme com um e chora com outro?
Quando goza com um e confessa a alma pro outro?
Quando me olha com gratidão — mas não com urgência?
Esse é o meu conflito.
Sou homem o bastante pra deixá-la viver.
Mas até quando?
Até quando vou suportar vê-la voltando do João com olhos marejados de doçura, dizendo que ele a faz sentir jovem?
Até quando vou suportar vê-la voltando do Vinícius com as pernas bambas, dizendo que ele a fez esquecer o próprio nome?
E quando, ao invés de assistir, eu quiser... sumir?
Ou pior: quando eu quiser ela só pra mim de novo — e souber que isso já não existe mais?
A verdade que me dilacera é essa:
O jogo virou vínculo.
A fantasia virou vínculo.
Ela sobe neles. Se deita neles. Chora neles.
E volta pra mim... como quem volta pra casa.
Mas uma casa também pode se tornar cemitério.
Eu a amo. Mais do que tudo.
Mas estou começando a odiar esse amor.
E a pergunta começa a bater na porta do meu peito com força:
Será que existe um limite para amar alguém livre?
Ou...
ser corno de verdade é também perder-se a si mesmo — enquanto ela floresce em outros braços?
Quando tudo começou, era tesão.
Ver outros homens tomando o que eu chamava de “meu” — e ela oferecendo como se fosse dádiva.
Me excitava o cheiro dela ao voltar, o silêncio tenso, os sorrisos culpados, os olhos queimando.
Eu queria ver, saber, participar.
Sentia um prazer doentio em imaginá-la usada.
Era isso. Um vício. Um abismo. Um culto.
Mas agora… agora é diferente.
João, com aquele olhar devoto, a voz mansa, os gestos apaixonados...
Vinícius, o oposto absoluto, que a domina sem pedir licença, como um deus pagão exigindo oferenda.
E eu...
Eu ainda aqui.
Mas cada vez mais fora.
O que me enlouquece não é o sexo deles.
É o vínculo.
O toque no cabelo depois. A troca de olhares cúmplices.
O modo como ela sorri ao falar deles.
O que antes era apenas meu prazer, agora virou o mundo dela.
E por mais que me excite vê-la sendo devorada por Vinícius, por mais que me comova vê-la protegendo João, há algo em mim que está se partindo.
Porque ser corno por escolha é uma coisa.
Ser substituído aos poucos… é outra.
E eu me pergunto: até onde posso ir?
Até quando posso gozar e sofrer ao mesmo tempo?
Até quando posso chamá-la de minha, se ela já pertence a dois?
A casa que agora é três
Tem dias em que ela acorda e me dá bom dia com beijo na testa.
Outros, acorda no celular com João, rindo baixinho — aquele riso que já não era mais meu.
E quando Vinícius vem...
Bem, nesses dias ela quase não fala.
Fica estranha, tensa, elétrica.
Como se soubesse que vai se dissolver nele — e já estivesse se despedindo de si mesma.
A casa ainda é nossa.
Mas as dinâmicas já mudaram.
Ela cozinha com João.
Ela trepa com Vinícius.
Ela divide a vida comigo.
No papel, sou o marido.
Na prática... sou o eixo.
A âncora.
Ou talvez o álibi.
E a coisa mais louca é que eu ainda gozo.
Gozo quando ela volta marcada, quando me conta.
Gozo quando vejo os olhos do João cheios dela.
Gozo porque sei que ela está viva, livre, potente.
Mas ao mesmo tempo... me apago.
Ela é uma mulher com três homens.
E eu sou o que assiste.
O que ela sente é real — por nós três.
Não é promiscuidade.
É outra coisa.
Algo para o qual talvez nem exista nome.
Mas eu sei que, aos poucos, estou deixando de ser centro.
Estou virando borda.
E o mais estranho...
é que parte de mim quer ir embora.
E outra parte quer ficar, ver até onde ela vai.
Ver se algum dia ela volta pra mim — inteira.
Ou se vai me manter nesse altar de honra enquanto se oferece viva aos seus homens.