✧ Transmutação Instável ✧
(Tiago)
O caminho do Salão dos Ecos Celestiais até meus aposentos pareceu durar uma eternidade. Cada passo de Lucas à minha frente era firme e decidido, enquanto os meus eram uma sucessão desajeitada de tropeços contidos. Ele não disse uma palavra, mas eu não precisava. Através do Vínculo, sua impaciência era uma broca perfurando minha mente, sua raiva um calor febril sob minha pele. Meus aposentos, que sempre foram meu santuário — um ninho de pergaminhos, livros e o cheiro reconfortante de poeira e papel antigo — agora pareciam uma jaula. Lucas parou no meio do quarto, seus braços cruzados sobre o peito de aço, e seus olhos varreram a desordem organizada com desprezo. “Arrume uma mochila”, ele disse, a voz cortante como obsidiana. “Leve apenas o essencial. Partiremos em vinte minutos.”
(Lucas)
Eu o observei se mover pelo quarto. Era como ver um urso tentando fazer um bordado. Cada movimento era desengonçado, ineficiente. Ele ofegava com o esforço mínimo de se curvar para pegar uma mochila de couro surrada de debaixo da cama. A poeira que subiu me fez querer espirrar. O Vínculo transmitia sua ansiedade em ondas nauseantes, um pânico de baixa frequência que se misturava ao meu próprio pulso, irritando-me como um mosquito zumbindo incessantemente perto do meu ouvido. Ele olhava para suas pilhas de livros como se estivesse escolhendo qual dos seus filhos abandonar. Patético. Nosso inimigo era Malakor, uma entidade de pura destruição, e este garoto achava que um tomo sobre a genealogia dos reis-elfos seria a nossa salvação.
(Tiago)
“Essencial”. O que era essencial? Minha mente estava em branco. Eu olhei para minhas roupas de aprendiz, finas e inadequadas. Peguei algumas túnicas mais resistentes, o tecido grosso e áspero em minhas mãos suadas. Meu corpo, grande e pouco acostumado a esforços, já reclamava, e o olhar de Lucas era um peso físico em minhas costas. Eu queria provar que não era completamente inútil. Lembrei-me das pequenas poções que eu mesmo havia preparado, seguindo receitas antigas. Poções de purificação de água, um unguento de cura simples, um catalisador de fogo… Sim, isso seria útil. Fui até minha pequena bancada de alquimia, meus dedos trêmulos passando pelos frascos de vidro. Peguei três, tentando equilibrá-los em uma mão enquanto com a outra abria um bolso da mochila.
(Lucas)
Eu o vi se aproximar de uma prateleira cheia de frascos coloridos e mal rotulados. Um alarme silencioso soou em minha mente. A magia de um estudioso é teórica, não prática. É a diferença entre saber como uma espada é forjada e saber como empunhá-la em combate. Senti, através da nossa conexão maldita, um pico de sua determinação nervosa, uma tentativa tola de se mostrar competente. Ele pegou três frascos, e eu vi o desastre se desenhando em câmera lenta. Suas mãos eram muito grandes e desajeitadas para os recipientes delicados. Sua palma estava úmida de suor. Um dos frascos, um líquido amarelo leitoso e instável, escorregou.
(Tiago)
O vidro pareceu escapar dos meus dedos como se estivesse coberto de óleo. Meu grito de susto ficou preso na garganta quando o frasco caiu no chão e se espatifou sobre a pilha de roupas que eu havia acabado de separar. Não houve uma explosão de fogo ou de força, mas sim um clarão suave e amarelado, seguido por uma nuvem de fumaça que cheirava estranhamente… familiar. O cheiro era acre, forte, como o da despensa da cozinha do castelo. Quando a fumaça se dissipou, eu olhei para baixo, incrédulo. Minhas túnicas de viagem, minha única calça resistente e até as minhas meias de lã não estavam mais lá. Em seu lugar havia uma massa amarelada, porosa e com um aspecto gorduroso. Elas haviam se transformado em queijo.
(Lucas)
O cheiro de queijo rançoso encheu a sala, um fedor tão absurdo que por um momento quebrou minha concentração. Eu olhei para a pilha de laticínios onde antes havia roupas e depois para o rosto horrorizado de Tiago. O Vínculo me atingiu com a onda de sua humilhação, uma maré de pura vergonha e pavor tão intensa que quase me fez dar um passo para trás. Era uma Poção de Transmutação Orgânica Instável, uma invenção de aprendiz usada para transformar matéria vegetal em rações de longa duração. Ele era tão incompetente que não conseguiu nem estabilizar um feitiço de preservação de alimentos, e o resultado de sua tentativa de ser útil foi transformar suas roupas em um banquete para ratos.
(Tiago)
“E-eu… eu não sei como…”, gaguejei, as palavras morrendo em minha boca. O calor subiu pelo meu pescoço até minhas orelhas. Eu me sentia um idiota monumental, uma criança que tinha acabado de quebrar o vaso mais precioso da família. Olhei para Lucas, esperando o grito, a punição, qualquer coisa. Mas o que eu vi em seu rosto era pior do que qualquer fúria. Era um vazio, um desprezo tão profundo e calmo que parecia ter apagado qualquer outra emoção. Ele não estava com raiva. Ele estava simplesmente… confirmando suas piores expectativas.
(Lucas)
Eu me aproximei lentamente, meu olhar fixo na catástrofe fedorenta. Eu não levantei minha voz. A raiva era uma emoção quente e útil; o que eu sentia era gelo puro. “Você não apenas falhou em uma tarefa simples”, comecei, minha voz um sussurro baixo e perigoso que cortava o ar. “Você conseguiu transformar nosso único recurso — o tempo — em desperdício. Você transformou equipamento essencial em lixo. Cada segundo que passamos aqui é um segundo a mais para Malakor se fortalecer.” Parei bem na sua frente, forçando-o a encontrar meu olhar. “Você não é um mago. Você é uma criança brincando com fogo, e agora todos nós corremos o risco de nos queimar.”
(Tiago)
Cada palavra era um golpe. Através do Vínculo, eu não apenas ouvia seu desprezo, eu o sentia. Sentia a verdade em sua avaliação, a certeza absoluta que ele tinha da minha inutilidade. Era uma sensação de afogamento, de ser esmagado por dentro pela opinião do homem que eu um dia admirei. As lágrimas arderam em meus olhos, mas eu as engoli com força. Chorar na frente dele seria como sangrar perto de um tubarão. Tudo o que pude fazer foi assentir, um movimento minúsculo e patético da minha cabeça, enquanto o cheiro nauseante do meu fracasso pairava ao meu redor.
(Lucas)
Virei-me para trás e fui até minha própria mochila, que eu havia teletransportado perto da porta. Abri-a e tirei uma túnica simples de linho e um par de calças rústicas, as mesmas que eu usava para treinar. Joguei-as no peito dele. O tecido áspero contrastava comicamente com a suavidade de suas mãos de estudioso. “Vista isso”, ordenei. “Não temos mais tempo para suas experiências. De agora em diante, você não toca em nada, não fala com ninguém e não tenta ‘ajudar’. Você vai apenas andar, comer o que eu lhe der e seguir minhas ordens sem questionar. Entendeu?” Ele assentiu novamente, e pela nossa conexão, senti o nó de desespero em sua garganta. Ótimo. Talvez o medo o mantivesse na linha. Era a única ferramenta que eu tinha para trabalhar com ele, e eu a usaria até o limite.
Continua…