O som das vozes ainda ecoava na minha cabeça quando me afastei do corredor. As palavras do Francisco estavam cheias de dor — uma dor que ele segurou tempo demais e que agora vinha à tona como um rio depois da barragem estourada.
Fui até a cozinha tentando disfarçar o nó no estômago. Minha mãe e Bárbara estavam sentadas no balcão, tomando café e dividindo um pedaço de bolo de fubá, como se o mundo não estivesse desmoronando a alguns metros dali.
— Bom dia — murmurei, puxando um banco e me sentando ao lado delas.
— Bom dia, filho — minha mãe respondeu com um sorriso leve, os olhos atentos demais pro meu gosto. Ela sempre sabia quando tinha algo fora do lugar, mesmo que eu me achasse discreto.
— Tá tenso lá, né? — Bárbara comentou, mexendo a colher dentro da xícara.
Assenti devagar.
— Escutei parte da conversa… o tom. Eu tô preocupado — falei, tentando soar neutro, mas o aperto no peito denunciava.
Bárbara me olhou com aquele sorrisinho malicioso dela, apoiando o cotovelo no balcão.
— Preocupado com o tom... ou com o sentimento do meu irmão?
Minha mãe riu baixinho, como quem finge não se meter, mas não perdeu o foco da pergunta. Os olhos dela saltaram entre mim e Bárbara como se esperasse minha reação com bisturi em mãos.
Eu virei a xícara, bebi o café e soltei um suspiro, tentando manter a compostura.
— Eu tô preocupado com os dois. O Francisco e o pai. É um assunto pesado. E mal resolvido.
— Hm — Bárbara murmurou, mas não insistiu. Só me lançou um olhar de quem ainda ia cutucar aquele ponto mais tarde.
Antes que qualquer outra pergunta surgisse, o som dos passos pesados do Antônio invadiu a cozinha. Ele entrou com uma expressão mais serena do que eu esperava. Cumprimentou a todos com um aceno discreto.
— Bom dia pra vocês.
— Bom dia — respondemos em uníssono, quase em coro.
— Você está bem, meu amor? — minha mãe perguntou a ele.
— Foi uma conversa dura — ele disse, se aproximando da cafeteira. — Mas às vezes, o que está guardado precisa sair. Doeu, mas a gente conseguiu se entender... do nosso jeito.
Olhei pra ele e por um segundo achei que vi uma sombra de arrependimento no fundo dos olhos. Aquilo me tocou de um jeito estranho.
Antônio se serviu de café e puxou uma cadeira.
— Francisco resolveu ficar mais um tempo por aqui. O que é ótimo — comentou, como quem dá uma notícia qualquer. — Diz que é por um assunto pessoal. Mas eu conheço aquele olhar... certeza que tem mulher no meio — completou, rindo baixo e levando a xícara à boca.
Na mesma hora, engasguei com meu café. Um gole mal engolido que fez arder até o nariz. Bárbara soltou uma gargalhada alta, dessas que não dá pra conter nem disfarçar.
— Que foi, menina? — Antônio perguntou, franzindo o cenho. — Sabe de alguma coisa?
— Nada, pai — ela respondeu rápido demais, ainda se abanando com a mão. — É que o Francisco é tão fechado que, se estiver mesmo apaixonado, deve ser um amor daqueles... De ó, perder o rumo.
Ela me lançou um olhar rápido, como quem cutuca sem tocar.
Fiz que não vi. Fingi naturalidade.
— Acho que vou aproveitar que o sol resolveu dar as caras e passar um tempo na piscina — anunciei, me levantando com a xícara ainda pela metade.
Minha mãe Helena me seguiu com os olhos, mas não disse nada.
Fui até o quarto, vesti uma sunga escura e joguei o roupão por cima.
Lá fora, o dia tinha aquele tipo de calor que vinha em rajadas, como se o inverno estivesse com febre. O céu azul, sem nuvem nenhuma, e o cheiro de cloro da piscina se misturava ao da grama cortada há pouco tempo.
Bárbara havia convidado uma amiga para passar o dia com ela e, enquanto me trocava eu escutava algumas vozes pelo corredor, foi se espalhando até eu escutar pela janela que dava vista pra piscina.
Desci, depois de ficar uns bons minutos no quarto, deitei numa espreguiçadeira ao lado da Bárbara e da Sarah, que ria de qualquer coisa que não me interessava. Me concentrei no sol na pele, no barulho da água, no tempo passando devagar. Pelo menos por fora.
Foi aí que Lucas chegou de surpresa. Ele estava lindo.
— Trouxe suco de uva e pão de queijo — disse, todo sorridente, segurando uma sacola.
Bárbara levantou na mesma hora e o chamou pra perto.
— Entra, Lucas. Aproveita e fica com a gente. O dia tá lindo.
— Ainda bem que com esse sol forte, eu vim preparado pra ser convidado a experimentar essa piscina — disse Lucas, rindo com aquela leveza que sempre me desmontava um pouco.
O jeito como ele falou arrancou um sorriso bobo de mim e gargalhadas das meninas.
Sem cerimônia, tirou a camiseta e o short e mergulhou de cabeça, espalhando água pra todo lado. Sarah reclamou, Bárbara riu e ele voltou à superfície como se tivesse nascido ali. Lucas tinha esse dom de pertencer aos lugares.
Eles começaram a jogar uma bola na piscina. Um jogo bobo, cheio de risos e empurrões. Fiquei só olhando por alguns minutos, sentindo o calor do sol bater nas minhas pernas esticadas, tentando me convencer de que aquele momento simples era suficiente pra afastar qualquer pensamento turbulento.
Lucas nadou até a borda e estendeu a mão pra mim.
— Anda, Samuel, sai desse sol todo! Vem se refrescar — disse, me puxando pela mão.
Tentei resistir, mas ele me levantou como se eu não pesasse nada. Me jogou na água e rimos juntos, como duas crianças fugindo das responsabilidades. Estávamos ali, boiando sob o céu azul, cercados pelas risadas das meninas e pelo som da água se movendo, como se o inverno tivesse tirado férias e levado o peso dos últimos dias com ele.
Foi quando ouvi o silêncio.
Um silêncio diferente.
Levantei os olhos e vi a sombra pairando sobre mim.
Francisco.
Parado à beira da piscina, com os braços cruzados, o maxilar tenso e o olhar cravado em mim — ou talvez em nós.
O ciúme estava ali, estampado, escorrendo pelos olhos como suor de febre.
— Francisco! — Bárbara chamou, com aquele tom irônico de quem aposta que vai ouvir um “não”. — Vai ficar só olhando ou vai cair aqui com a gente?
Ele não respondeu. Em vez disso, se aproximou devagar e, sem desviar os olhos de mim, disse:
— Posso falar com você, Samuel?
Tentei não tremer.
— Depois — respondi, tentando manter o tom leve. — Quero aproveitar o sol. A não ser que queira entrar na piscina.
Ele deu uma leve risada. Sem dizer nada. Virou as costas e sumiu dentro de casa.
Mas voltou. E voltou como uma tempestade silenciosa.
Sem camisa, usando um short acima do joelho que moldava o corpo que eu conhecia tão bem, o cabelo bagunçado, o peito largo, os ombros queimados de sol — e o olhar fixo em mim.
Por um segundo, esqueci onde estava. Esqueci Lucas, esqueci a água, o riso, a brincadeira. Só conseguia acompanhar cada passo dele.
Francisco se jogou na piscina de forma precisa, o corpo cortando a água com naturalidade impecável. Era como se tivesse sido moldado pra aquilo — a força bruta suavizada pelo domínio do próprio corpo. Nadou até a borda oposta e ficou ali, apoiado com os braços, observando o movimento.
Sarah se aproximou de Bárbara, rindo baixo, mas o suficiente para que eu ouvisse.
— Teu irmão é um gostoso, viu? Se um dia ele quiser, eu me derreto todinha em cima dele — sussurrou, achando graça da própria ousadia.
Senti meu rosto travar. A expressão se fechou no reflexo da água. Não consegui evitar. Virei o rosto pro outro lado, fingindo que não me importava, mas me importava. E muito.
Francisco parecia não ter ouvido. Ou fingia. Mas os olhos dele me encontraram ali, no meio da piscina, e houve algo naquele olhar — um recado mudo, carregado de intenção. Ele não tirava os olhos de mim. Nem quando Lucas começou a nadar em volta, provocando o ambiente como sempre fazia.
— Ô, Francisco — Lucas disse, parando do lado dele — tu não acha que nadar de sunga é melhor? Short assim encharcado pesa, não?
Francisco arqueou uma sobrancelha, o canto da boca puxando um sorriso irônico.
— Lá na roça eu nado pelado. Quer ver?
A risada das meninas foi automática. Sarah bateu palmas.
— Eu quero!
O clima esquentou ainda mais. Mas não era só o sol que estava fazendo tudo arder.
Saí da piscina sem dizer nada. Fui até a espreguiçadeira e me deitei de barriga pra cima, o corpo ainda escorrendo água, tentando disfarçar a raiva que começava a borbulhar debaixo da pele.
Francisco saiu da piscina logo em seguida. Em vez de escolher uma das várias espreguiçadeiras vazias, puxou uma e arrastou até encostar na minha. O barulho do alumínio riscando o chão me fez virar o rosto.
— Sol tá bom demais, né? — ele disse, fingindo normalidade enquanto se deitava ao meu lado, o corpo ainda molhado, brilhando sob a luz.
— Tem lugar de sobra aqui — murmurei.
— Mas eu gosto de estar perto de você.
Não respondi. Só fechei os olhos, tentando ignorar o cheiro bom que vinha dele, a respiração calma, o som da água pingando do cabelo, o calor que o corpo dele exalava tão perto do meu.
Ficamos ali, lado a lado, em silêncio, enquanto o som das risadas e da bola batendo na água preenchia o quintal. Mas, dentro de mim, havia uma bagunça difícil de explicar. E eu sabia, pelo jeito que ele se mexia na espreguiçadeira, que Francisco estava pronto pra começar a provocar — e eu, por mais que fingisse, já estava pronto pra ceder.
***
O sol já estava mais alto no céu, dourando a pele de todos ao redor da piscina. As risadas das meninas continuavam, mas o clima entre Lucas e Francisco começava a se adensar como uma nuvem carregada prestes a romper. Ainda que nenhum dos dois tivesse dito claramente o que estavam fazendo, era evidente: estavam disputando. Disputando olhares, atenção, espaço.
Lucas saiu da piscina, parou de frente pra gente e sacudiu o cabelo, espirrando água em todo mundo. Fingiu que foi sem querer, mas o jato pegou em cheio no peito do Francisco, que continuava deitado, de olhos fechados.
— Foi mal, cara — Lucas disse, sorrindo de canto.
Francisco abriu os olhos devagar, os músculos do maxilar se contraindo sutilmente.
Lucas sentou-se na ponta da minha espreguiçadeira e se inclinou pra falar comigo, perto demais, propositalmente.
— Tá se divertindo, Samuca?
Francisco abriu os olhos e respondeu por mim:
— Tá sim. Só não sei se com as piadas ou com a palhaçada.
— Eu sou bom em ambos — Lucas retrucou, com um sorriso debochado. — Mas não se preocupa, cowboy, eu não mordo... a não ser que me peçam com jeitinho — passou a mão na minha perna.
O silêncio durou um segundo inteiro, antes que Sarah soltasse um “eita” abafado.
Francisco sentou-se devagar, apoiando os cotovelos nos joelhos, os olhos fixos em Lucas.
— Engraçado. Você fala como quem tá acostumado a não ser levado a sério.
— E você fala como quem tá acostumado a ser sério até demais. Deve ser exaustivo.
Me levantei da espreguiçadeira, rindo e balançando a cabeça, como quem tenta amenizar a tensão.
— Vocês dois vão acabar se agarrando se continuarem assim — brinquei, pegando minha toalha.
— Eu passo — disse Francisco, seco.
— Nem por um milhão — completou Lucas, sorrindo de lado.
O clima ficou suspenso por alguns segundos, mas aos poucos a conversa retomou o ritmo. Bárbara puxou assunto sobre uma viagem antiga, Sarah inventou um jogo de adivinhação bobo, e os dois — Francisco e Lucas — pareceram recuar. Mas a troca de olhares entre eles continuava, disfarçada, tensa, como uma dança de passos silenciosos em volta de mim.
E, por mais que tentasse fingir indiferença, eu sentia. Sentia o olhar do Francisco me acompanhando, cada vez que Lucas falava comigo, sentia o jeito de Lucas se posicionar mais perto, mais confiante, como quem quer marcar território.
A água ainda escorria pelos fios do meu cabelo quando me levantei da espreguiçadeira, pegando a toalha e caminhando lentamente até a cozinha. Fingia casualidade, mas por dentro o coração estava descompassado desde a última troca de farpas entre Francisco e Lucas. Queria só respirar. Me refrescar. Pensar.
Abri a geladeira e fiquei alguns segundos parado ali, deixando o ar frio bater no peito. Peguei uma garrafa de água e um copo, quando ouvi os passos atrás de mim. Não precisei olhar pra saber quem era.
Francisco encostou-se à bancada, deixando a distância entre nós mínima. Senti seu corpo se aproximar até quase tocar o meu. O calor dele contrastava com o frio da geladeira aberta.
— Você gosta de provocar — ele disse, a voz rouca, baixa. — Mas quem tá ficando maluco aqui sou eu.
Virei o rosto devagar. Ele estava perto demais. O cheiro da pele dele, o mesmo de sempre — amadeirado, quente, familiar — invadiu meus sentidos. Sua respiração tocava minha bochecha.
— Eu não tô provocando ninguém — murmurei, mas até eu ouvi a hesitação na minha voz.
Ele riu pelo nariz, um som curto, sem humor.
— Não mente pra mim, Samuel. Eu conheço esse teu olhar. E conheço a forma como você reage quando eu chego perto.
Ele deu mais um passo, colando o corpo ao meu, firme, sem pressa. Sua mão pousou de leve na minha cintura, e me puxou contra ele, me fazendo sentir, sem nenhuma dúvida, o quanto ele me desejava.
— Eu sinto falta do seu toque — sussurrou, os lábios roçando meu ouvido. — Do teu beijo... do jeito que teu corpo encaixa no meu. Você finge que não sente mais, mas teu corpo não mente.
Minha respiração acelerou. Meu corpo respondeu antes da mente conseguir protestar. Fechei os olhos por um segundo, e quando voltei a encará-lo, ele me olhava como um animal faminto, mas ferido.
— Francisco… — tentei começar, mas ele encostou a testa na minha.
— Eu não vou me afastar de novo. Eu não vou deixar ninguém tocar no que é meu.
O toque dele era sutil, mas incendiava. As mãos deslizaram pela minha lateral, e os nossos rostos estavam a milímetros de distância. Nossos lábios quase se encostando.
E então…
— Samu? — A voz de Lucas soou no corredor, quebrando o feitiço como uma pedra no espelho. — Consegue me trazer uma toalha?
Francisco se afastou com um suspiro contido, os olhos ainda queimando. Eu respirei fundo, tentando recompor os pensamentos e o corpo em brasas.
Saí da cozinha e fui pegar uma toalha limpa na lavanderia. Quando entreguei a Lucas, ele sorriu, alheio ao incêndio que tinha acabado de ser contido na cozinha.
Francisco reapareceu pouco depois, já com a expressão fria no rosto — mas seus olhos ainda me diziam tudo o que ele queria fazer… e não fez.
E a troca de farpas continuou. Francisco passou a aparecer sempre que eu ia em algum lugar com Lucas depois da faculdade. Era como se ele tivesse desenvolvido um sexto sentido exclusivo pra saber onde estar — e como provocar.
No primeiro dia, foi no café perto da biblioteca. Lucas tinha me convidado pra uma tarde de estudos e risadas com bolo de cenoura e café forte. Estávamos falando sobre os contos de Clarice Lispector quando Francisco apareceu do nada, fingindo que passava por ali. Se sentou numa mesa ao lado, pediu só um café preto e passou o tempo todo encarando Lucas por cima da xícara.
— Tá estudando literatura agora também, cowboy? — Lucas alfinetou, sem nem olhar pra ele.
— Não. Só queria ver se o que tá tentando ensinar pro Samuel é mais interessante que o que eu já ensinei — respondeu Francisco, direto.
Outra vez foi numa feirinha noturna de arte e comida local, onde eu e Lucas tínhamos combinado de comer pastel e tomar caldo de cana depois da aula. Estávamos rindo das pinturas curiosas de um artista quando Francisco apareceu encostado num dos postes, braços cruzados, olhando como se aquilo tudo fosse uma perda de tempo.
— Isso aí é arte pra você? — ele disse em voz alta, quando paramos numa barraca com quadros abstratos.
— Melhor do que criar cercas com arame farpado — Lucas rebateu, sem perder o sorriso.
— Bom saber que você prefere tinta no papel. Eu gosto quando suja a pele, coisa que eu e o Samuel sabemos bem como fazer — Francisco respondeu, os olhos fixos em mim.
A terceira foi no karaokê de um barzinho que frequentávamos com alguns colegas da faculdade. Lucas tinha me convencido a cantar uma música brega dos anos 90 com ele. Eu estava rindo, completamente fora do tom, quando notei Francisco parado perto da porta, com os braços cruzados e aquele olhar que parecia capaz de silenciar até o som alto das caixas.
— E aí, tá tentando ser artista também? — ele perguntou quando nos encontrou perto do balcão.
— Não. Só mostrando pra ele que dá pra viver sem tanta vergonha — Lucas retrucou.
— Pena que vergonha é o que segura muita gente de se jogar. Mas também é o que impede alguns de se humilhar — Francisco devolveu, antes de beber o copo inteiro de cerveja em silêncio.
Essas pequenas disputas viraram rotina.
Na quinta-feira, saí da aula um pouco mais tarde e fui direto pro estacionamento, esperando encontrar Lucas como de costume. Mas parei no meio do caminho ao vê-los de longe, conversando próximo ao carro do Lucas.
— Eu não entendo por que você insiste nisso — disse Francisco, com a voz baixa, mas firme.
— Nisso o quê? — Lucas rebateu, fechando a porta com cuidado. — Em conversar com o Samuel? Em gostar dele? Você fala como se ele fosse sua propriedade.
Francisco inclinou a cabeça, sem desviar o olhar.
— Sua é que não é — disse firme.
Lucas riu, seco.
— Não mesmo. Mas pelo menos eu estou aqui, inteiro. Não apareço quando é conveniente nem fujo quando a coisa aperta.
Francisco apertou o maxilar, mas manteve o tom calmo.
— Você chegou agora, Lucas. Conhece o sorriso dele, mas não conhece os silêncios. Você não viu o jeito que ele treme quando tá com medo, nem o que ele esconde quando tenta parecer forte. Eu vi.
Lucas cruzou os braços, rebatendo:
— E mesmo assim você deixou ele ir embora. Está tentando reconquistar agora porque sentiu que alguém chegou perto demais. O nome disso não é amor. É ego.
Francisco deu um passo à frente.
— Chame do que quiser. Mas eu vou lutar por ele. E, se ele ainda me quiser, você não vai ser obstáculo nenhum.
Minha respiração travou.
Dei alguns passos apressados, me aproximando como se não tivesse ouvido nada
— Francisco? O que você tá fazendo aqui?
Ele se virou devagar, a expressão mais branda, mas os olhos ainda em brasas.
— Vim te buscar — respondeu. — Vamos almoçar juntos.
Lucas olhou de um para o outro. Tentou disfarçar o incômodo com um sorriso.
— Se quiser, Samuca, posso ir junto.
Francisco nem disfarçou o olhar atravessado. Mas fui eu quem respondeu.
— Não, Lucas. Obrigado, de verdade. Mas… eu preciso ir sozinho com ele. Tem coisa que a gente precisa resolver.
Lucas assentiu devagar. O sorriso já não tinha brilho.
— Tudo bem.
— A gente se fala depois, tá? — falei, tentando manter o tom leve.
Ele fez que sim com a cabeça e deu um tapinha no meu ombro antes de se afastar. Olhou rapidamente para Francisco antes de virar as costas.
Quando entrei no carro com Francisco, o silêncio reinou por alguns segundos. Mas o ar estava carregado demais pra ignorar o que estava prestes a explodir.
— Você não precisava aparecer assim, sabia? — falei, ainda olhando pela janela.
— Não consegui evitar. Desculpa.
***
Fomos até um restaurante pequeno, com varandas de madeira cobertas por trepadeiras secas do inverno. Sentamos numa mesa nos fundos, onde ninguém parecia ouvir mais que o som das próprias conversas. Francisco pediu café. Eu, água com gás. O silêncio entre nós durou o tempo exato que o garçom levou para se afastar.
— Você precisa parar de atrapalhar a minha amizade com o Lucas — comecei, direto. — Essa perseguição está ficando sufocante e fora de controle.
Francisco apoiou os cotovelos na mesa e entrelaçou os dedos. Respirou fundo, os olhos fixos nos meus.
— E o que você quer que eu faça, Samuel? Fique parado vendo ele tocar em você como se não doesse? — a voz dele era baixa, mas carregada.
— Dói? — retruquei. — Você ficou calado por semanas, me deixou ir embora, não respondeu, não correu atrás. E agora que aparece, quer me cercar, disputar como se fosse um jogo?
— Eu não tava pronto! — ele explodiu, e depois baixou o tom, como se se envergonhasse de levantar a voz. — Eu não sabia o que fazer, Samuel. Você foi embora no meio do meu caos. Eu fiquei sozinho tentando juntar tudo. E agora que eu sei o que eu quero, você tá me afastando.
— Porque eu quero mais do que palavras, Francisco — disse firme, encarando ele. — Eu quero mais do que beijos roubados e promessas sussurradas. Eu quero um amor por inteiro. Quero ir ao mercado de mãos dadas. Quero apresentar alguém como “meu namorado”. Quero parar de me esconder.
Ele pareceu encolher um pouco. Mas não desviou os olhos.
— Eu quero isso também — ele disse, quase num sussurro. — Mas eu...
— Mas você não teve coragem de dizer ao seu pai que está apaixonado por um homem — continuei, cortando — E se não teve essa coragem, como vai ter pra me assumir?
Ele piscou devagar. A mandíbula travada, os olhos marejando.
— Eu não devo nada a ele. Não tenho que contar nada da minha vida.
— Então me explica uma coisa — encarei — se ele que, segundo você, não representa nada, já foi o suficiente pra te calar, pra te impedir de falar que tá apaixonado por mim… imagina pros funcionários da sua fazenda, pros seus colegas héteros e “chucros”, como você mesmo chama. O que vai acontecer quando eles perguntarem quem eu sou? O que você vai responder?
Ele respirou fundo, como se estivesse engolindo uma confissão difícil.
— Eu não sei. — A voz saiu rouca, sincera. — Mas eu tô tentando. Tô tentando encontrar um jeito de lidar com tudo isso, de lidar comigo mesmo. Você acha que é fácil?
— Não, Francisco. Eu sei que não é fácil. — abaixei o tom — Mas eu não sou um segredo. Não quero ser. Eu já fiz esse papel outras vezes na vida e não vou repetir.
— Você não é um segredo pra mim. — ele rebateu. — Eu acordo pensando em você. Durmo lembrando do teu cheiro, da sua pele. Eu não parei de te amar um só dia.
— Mas isso não basta — balancei a cabeça — Amor sem coragem é só desejo mal resolvido. E eu não quero mais viver um amor que se esconde de todo mundo, até de si mesmo.
Ele me olhou como se eu tivesse dado um golpe em algo que ele ainda protegia com unhas e dentes.
— Me dá tempo, Samuel. Eu tô me reconstruindo, você sabe disso.
— Eu sei. E é por isso que tô aqui, ainda. Mas eu preciso que você venha junto. Se continuar nessa de aparecer e sumir, de invadir e fugir, eu vou cansar. Aliás, eu já tô cansando.
Francisco abaixou o olhar, os ombros caíram por um segundo.
— Você é o único lugar em que eu me sinto em paz, mesmo quando tudo aqui dentro tá em guerra. Eu não quero perder isso.
— Então prova — sussurrei. — Prova que eu não sou só mais uma confusão na sua cabeça. Prova que dá pra viver esse amor fora da sombra.
Ele me encarou por alguns segundos longos. Depois assentiu devagar.
— Tá bom. Então me diz por onde começar.
— Comece dizendo isso em voz alta pra alguém que não seja eu — disse, me levantando da cadeira. — E quando fizer isso, eu vou ter certeza de que você quer mesmo me ter na sua vida.
Francisco ficou parado por um segundo, com o olhar preso em mim, como se estivesse atravessando cada palavra que eu tinha acabado de dizer. Seus olhos não tremiam mais — agora ardiam. Era como se, finalmente, o desafio tivesse tocado onde mais doía: no medo de me perder.
Ele respirou fundo, passou a mão pelos cabelos e, de repente, deu dois passos à frente, chamando a atenção das poucas pessoas espalhadas pelo restaurante. O som dos talheres parou, as conversas baixaram o tom. Eu não acreditei quando vi ele abrir a boca.
— Desculpa incomodar — começou, com a voz firme, mas o peito visivelmente acelerado. — Eu nunca fui bom com isso, com palavras… com sentimentos. Sempre fui do tipo que prefere o silêncio à exposição. Mas eu aprendi que a gente não protege o que ama se esconde. E eu não quero esconder mais nada.
Olhou pra mim, os olhos cheios de tudo aquilo que eu achei que ele nunca conseguiria dizer em voz alta.
— Esse rapaz ali — apontou discretamente — é o Samuel. E eu amo ele. E eu não quero perder ele por medo, por orgulho, ou por vergonha de quem eu sou. Eu tô aqui, nesse restaurante, dizendo pra todo mundo que é de verdade. Que eu amo ele. E que eu faria tudo de novo só pra ter a chance de ver esse sorriso perto de mim todos os dias.
Um murmúrio de surpresa e empolgação correu entre as mesas. Uma senhora na mesa ao lado bateu palmas com um sorrisinho. Outro cliente levantou o copo e disse:
— Vive esse amor, rapaz!
Eu fiquei congelado. Meu coração batia tão forte que eu mal percebi quando o gerente apareceu apressado, tentando manter a ordem.
— Senhores, por favor, sem tumulto — pediu. — A gente adora o amor, mas precisamos manter o ambiente tranquilo, tá bom?
Francisco sorriu de leve, deu de ombros e caminhou até mim. Paguei a conta meio no automático, ainda atordoado, e saímos do restaurante sob olhares curiosos, alguns calorosos.
Na frente do carro, ele parou, encostou de costas na porta e me encarou.
— Eu não quero mais viver de incertezas, Samuel. — Sua voz agora era baixa, íntima. — A dor de perder você… é muito maior do que o medo do julgamento. Eu não sabia o que fazer com tudo isso que senti por você, mas agora eu sei. Eu quero uma nova chance. E dessa vez, eu não vou fugir.
Eu encarei ele, sentindo o calor subir pelo corpo, um arrepio na nuca, o sangue correndo com pressa pelas veias.
— Eu te amo — ele completou. — Eu te amo como nunca amei ninguém, e eu vou provar isso quantas vezes forem necessárias.
Foi quando nossos lábios se encontraram.
O beijo veio urgente, quente, como se o mundo inteiro tivesse esperado por aquele momento. O coração batendo na ponta da língua, o corpo inteiro dizendo “sim” enquanto as mãos dele me puxavam com força. Um beijo que era desejo, mas também reencontro, cura, promessa.
A gente se afastou por um segundo, ofegantes, com os olhos fixos um no outro. Sem dizer mais nada, entramos no carro. O caminho até em casa foi feito quase em silêncio, só o som da respiração, das mãos que se buscavam entre o câmbio e o banco, e da tensão elétrica que pairava entre a gente.
Quando estacionamos, Francisco desceu primeiro e veio até o meu lado. Me puxou pela cintura, me deu um beijo rápido, só pra manter a chama acesa, e abriu a porta de casa comigo logo atrás.
Mal cruzamos a sala, e lá estava Bárbara, vindo da cozinha com algo na mão.
— Eu preciso conversar com você, Francisco — ela disse, direta.
Francisco soltou uma risada baixa, passou a mão pelos cabelos e, com o mesmo ar provocador que me deixava tonto, respondeu:
— Agora não. Se der, só me procura daqui a umas quatro horas.
— Quatro horas? — ela arqueou a sobrancelha, fingindo indignação.
— É o mínimo — ele disse, já me puxando pela mão, rindo e me puxando escada acima.
— Seus putos safados! — ela gritou da sala, mas com um sorrisinho no canto da boca.
E então a porta do quarto se fechou atrás de nós. E não havia mais ninguém entre o nosso amor. Nem o passado. Nem o medo.
Só nós dois.
E um desejo antigo, prestes a ser saciado de novo.