Então ele falou.
— Não sei se é algo que deveria dividir assim, logo de cara... — começou, com o olhar pousado no copo meio cheio, girando-o devagar. — Mas acho que depois da forma como nos conhecemos... não tem porque que esconder.
Eu apenas assenti, em silêncio, esperando. Algo dentro de mim já se preparava. O jeito dele, desde o início, tinha algo não dito e agora parecia prestes a emergir.
— Eu descobri uma traição — ele disse, direto. — Do meu namorado.
Demorei um segundo pra reagir. Meu rosto não entregou muito, ou pelo menos eu quis acreditar que não. Mas, por dentro, uma pequena faísca de espanto se acendeu. Fiquei olhando pra ele, tentando organizar rápido os pensamentos.
— Seu... namorado? — repeti, quase num sussurro. Não por julgamento, mas por surpresa. Até então, aquilo não estava no meu radar. E não era o tipo de coisa que eu questionaria sem contexto.
Ele olhou pra mim com um meio sorriso, daqueles que dizem “é, agora você sabe”.
— É... — respondeu com um leve encolher de ombros. — Estávamos juntos há mais de três anos. Morávamos juntos.
Fez uma pausa, depois continuou com o mesmo tom calmo, mas firme.
— Não era algo que eu escondia. Mas também não saía anunciando. A gente tinha uma vida razoavelmente tranquila. Até que, naquela madrugada... bom, eu vi uma notificação no celular dele. Era de outro cara. E aí eu descobri que ele me traía. — Resumiu.
Respirei fundo e desviei o olhar por um momento. Não sabia o que me tocava mais: o fato de ele dividir aquilo comigo tão abertamente... ou o fato de que, até aquele instante, eu não fazia ideia da orientação dele e como isso agora reorganizava um monte de percepções que vinham me atravessando em silêncio desde a primeira vez em que nos falamos.
— Eu saí de casa sem pensar — ele continuou. — Nem levei nada. Fui direto pra casa dos meus pais, lá em Brotas. Dormi lá aquela noite.
Ele passou a mão pelos cabelos, afastando uma mecha da testa, depois ajeitou os óculos com a outra mão. Aquela armação quadrada de acetato que combinava tanto com o rosto dele... e que agora, somada a tudo o que eu acabava de ouvir, me fazia olhar pra ele de uma forma completamente nova e confusa.
— Não foi meu melhor momento. E aí veio o acidente... — ele deu uma risadinha, amarga. — Como se tudo já não estivesse uma bagunça suficiente.
Ergui a mão pro garçom, pedi outra cerveja. Eu precisava de tempo. E precisava disfarçar o redemoinho que girava dentro de mim.
Ele me olhou de canto, talvez percebendo meu silêncio mais longo que o normal.
— Espero que isso não mude nada — ele disse, sincero.
— Não muda — respondi rápido, antes mesmo de pensar muito. — Só... me pegou de surpresa. Mas não muda.
E, naquele momento, percebi o quanto eu estava sendo honesto. Não mudava. Só reorganizava. Revelava.
E me revelava também.
Eu fiquei um tempo olhando pra ele, sem dizer nada. Não porque não soubesse o que pensar… mas porque queria encontrar o jeito certo de dizer.
Então, sem pensar muito, estendi a mão por cima da mesa.
Ele hesitou por um segundo, mas depois apertou. Apertei firme, com intenção. E, olhando nos olhos dele, falei com um sorriso contido:
— Fica bem, tá? De verdade. Você é um cara bonito, inteligente pra caramba, claramente independente, dono da própria vida, do próprio destino. Eu sei que agora tá doendo, mas... isso passa. Novas pessoas vêm, novas histórias começam. Não deixa que isso te defina.
Ele sorriu. Aquele sorriso torto, cansado, mas genuíno. Soltou um suspiro leve, como quem recebe um carinho que não esperava.
— Obrigado — disse, quase num sussurro.
— E outra... — continuei, recostando um pouco na cadeira — o jeito como você lidou com tudo isso... o fato de ainda estar aqui, conversando, encarando a própria história de frente... isso é digno de respeito. Não tem nada de fraco nisso. Pelo contrário.
Ele abaixou os olhos, mexeu no copo vazio e ajeitou de novo os óculos no rosto. Era aquele gesto que ele fazia às vezes, como se escondesse uma vulnerabilidade ali, no toque leve da mão.
E naquele momento, eu entendi algo novo: não era só empatia. Era admiração. Era cuidado. Era algo que eu ainda não sabia dar nome, mas que já tinha decidido não ignorar.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos, com o olhar perdido no copo, como se ainda processasse o que eu tinha dito. Depois sorriu de leve e falou num tom mais descontraído:
— E você? Já falei um monte de coisa aqui... mas e o Pedro fora do trabalho, fora dos filhos, fora do casamento? Tem algum hobby secreto? Alguma coisa que te tira da rotina?
A pergunta veio simples, mas me pegou desprevenido. Soltei uma risada discreta e recostei um pouco mais na cadeira, olhando para o copo vazio e depois de volta pra ele.
— Pior que não sei se tenho um hobby secreto... — falei, pensativo. — Mas gosto muito de cozinhar quando tenho tempo. É tipo uma terapia pra mim. Domingo à noite, principalmente, é o momento que mais gosto de inventar alguma coisa.
Ele arqueou uma sobrancelha, interessado, e eu continuei, sentindo um certo conforto em falar sobre isso.
— Também gosto de correr na orla, bem cedo, quando a cidade ainda tá acordando. Às vezes só pra pensar, às vezes pra não pensar em nada. E malho quase todo dia, meio que por hábito, disciplina... ou necessidade de controlar a ansiedade. E quando sobra um tempo, gosto de andar de bicicleta. Nada radical, só pelas ruas mais tranquilas... ou jogar videogame de vez em quando. Meio escondido dos meus filhos, senão eles tomam o controle e não devolvem nunca mais.
Ele riu. E dessa vez foi uma risada mais solta, mais leve. Aquele tipo de riso que, por um instante, desfaz qualquer armadura.
— Jogo? Jura? — perguntou, surpreso. — Ia te imaginar mais do tipo que dorme assistindo jornal.
— Quase acertou! — brinquei. — Porque às vezes é isso mesmo. Mas tem dia que eu só quero desligar a cabeça. E jogar me ajuda nisso. Acho que é uma forma de esquecer um pouco da responsabilidade toda.
Daniel assentiu, olhando pra mim com um brilho curioso nos olhos.
— Eu gostei disso em você... — disse de repente, sem rodeios. — Essa mistura de ser tão centrado, tão... sério, mas ao mesmo tempo parecer que guarda um lado leve. Tranquilo. Normal.
Aquilo me pegou desprevenido.
Sorri, sem saber muito bem o que responder. Estava acostumado a ser visto como o responsável, o estável, o pai de família, o profissional. Ouvir algo diferente — ainda mais vindo dele — me deixou sem palavras por um instante. Era como se ele tivesse conseguido enxergar algo que nem eu conseguia mais ver em mim.
— Eu tento — respondi, por fim. — Acho que a gente passa tanto tempo construindo as coisas fora da gente que, quando sobra tempo pra
olhar pra dentro... às vezes a gente nem sabe mais o que tá lá.
Ele concordou com um gesto lento, desviando o olhar por um momento, como se digerisse aquela ideia. Depois voltou os olhos pra mim e deixou um leve sorriso no canto da boca.
A gente ficou em silêncio por alguns segundos. Mas dessa vez não foi desconfortável.
Foi só... tranquilo.
Como se, mesmo sem saber, estivéssemos nos encontrando num espaço onde ninguém precisava fingir nada.
Olhei pro relógio, depois pra ele, e sem pensar muito, ergui o braço e chamei o garçom com um leve aceno.
— Mais uma? — perguntei.
Ele sorriu e fez que sim com a cabeça. O copo já estava vazio, assim como o meu. Mas a conversa... a conversa parecia só ter começado. O que aquilo significava? Um brinde ao que estava acontecendo ou ao fim da minha antiga vida?
A última garrafa chegou, e a conversa já corria mais solta. Falávamos sobre tudo e nada ao mesmo tempo. Comentamos a trilha sonora do ambiente, boas músicas, num volume perfeito, como se a noite também soubesse ouvir. À nossa volta, os casais trocavam confidências entre goles, as mesas se revezavam entre risos e silêncios, e nós ali... observando tudo, como se fôssemos parte e fora ao mesmo tempo.
Quando os copos esvaziaram de novo, sinalizei discretamente para o garçom. Pedi a conta com aquele gesto contido, quase automático, de quem já entendeu que a noite está perto do fim, mesmo sem querer dizer isso em voz alta.
Daniel não notou de imediato. Estava distraído, olhando o movimento da orla lá fora. Comentou algo sobre como a cidade parecia não dormir nunca. Concordei com um sorriso, mas meus olhos já estavam no relógio do celular: 21h27. Quase três horas ali. E parecia que tínhamos acabado de sentar.
O garçom trouxe a comanda pouco depois. Coloquei a mão no bolso no mesmo instante.
— Eu pago — falei.
Daniel arqueou a sobrancelha, com aquele sorriso desacreditado.
— Nem vem. Fui eu que te chamei.
— E eu que quase te atropelei. Considera isso parte da minha redenção.
Ele riu, mas balançou a cabeça.
— Tá, mas pra ser justo... fui eu que esbarrei na sua porta.
— Pode até ser — respondi, inclinando levemente o corpo pra frente — mas agora sou eu que tô sendo o responsável. E quero pagar por isso.
— Um polimento resolvia, você mesmo disse.
— Sim, mas cerveja gelada tem efeito terapêutico. Coloca aí na conta dos danos emocionais.
Ele riu de novo, mais relaxado.
— Tá tentando comprar o perdão com álcool?
— Exatamente. E mais... — fiz uma pausa — eu sou mais velho.
— Ah, pronto.
— Trinta e cinco anos. Um pouco de dignidade acumulada. Deixa eu pagar e manter minha honra intacta.
— Isso é chantagem geracional.
— É sabedoria, meu caro.
Ele soltou uma risada curta, se rendendo.
— Tá bom. Mas da próxima é por minha conta.
— Então vai ter próxima?
Ele me olhou por um segundo a mais, depois deu de ombros com um meio sorriso.
— Pode ser.
Paguei a conta e deixamos a mesa em silêncio por alguns instantes. O restaurante seguia cheio, o barulho de pratos e vozes preenchendo o ambiente.
Foi então que ele disse:
— Quer fazer uma coisa antes de ir?
— O quê?
— Caminhar um pouco. Só ali embaixo. Ver o mar mais de perto.
Hesitei por um segundo. Mas assenti.
— Vamos.
Descemos pela lateral, cruzando a mureta até a areia. A orla da Barra estava cheia como de costume — vendedores ambulantes, jovens sentados em roda, turistas rindo alto, carros passando devagar. Salvador pulsava como sempre. Viva, inquieta, barulhenta.
Mas ali, na faixa de areia... era outro tempo.
O som das ondas abafava os ruídos da cidade. A brisa vinha forte do mar, trazendo umidade e aquele cheiro salgado que grudava na pele. A lua cheia iluminava tudo com uma luz prateada e calma, como se quisesse desacelerar o mundo.
A areia ainda guardava o calor do dia. Tiramos os sapatos. Caminhamos lado a lado, devagar, sem pressa. E sem assunto também, pelo menos por alguns minutos. Só o barulho dos nossos passos e a espuma quebrando adiante.
Em certo momento, nossos ombros se tocaram. Sem intenção. Mas ninguém se afastou.
Foi quando olhei de lado, discretamente.
Daniel mantinha o olhar voltado para o mar. O vento batia forte, e ele ajeitava os óculos de vez em quando, tentando manter o cabelo no lugar com a outra mão — sem muito sucesso. Sorri de leve. Não por deboche. Por beleza mesmo.
Ele era bonito.
Não de um jeito óbvio, mas... havia algo ali. Um cuidado dentro do desleixo. Uma ternura que escapava nos gestos mais impacientes.
Daniel quebrou o silêncio.
— Eu precisava disso hoje. Não só da conversa... do silêncio também.
Assenti. E respondi baixo:
— Eu também.
Seguimos caminhando pela faixa mais firme da areia, agora em direção ao Farol da Barra, que brilhava imponente, cercado por pessoas tirando fotos, casais sentados no gramado, crianças correndo perto dos coqueiros. Nos aproximamos até certo ponto e subimos pela rampa lateral, voltando para o calçadão.
Ali em cima, ficamos por um instante parados, olhando a cena.
— Impressionante como esse lugar vive cheio — ele comentou.
— É. Mas hoje... parece outro lugar — respondi.
Seguimos andando pela calçada, agora em direção oposta ao farol, nos afastando devagar daquele forte de luz. A cada passo, a orla parecia mais calma, menos iluminada. Um ponto mais silencioso da cidade começava a se formar ao nosso redor.
Quando chegamos a uma parte mais tranquila, com uma praça pequena e poucos carros passando, parei. Peguei o celular e chamei o Uber. Estava a sete minutos de distância.
Daniel ficou ali do meu lado, mãos no bolso, olhando para o mar. O Farol da Barra, agora distante, seguia firme com sua luz quente, amarela, iluminando a noite como um vigia silencioso.
— Foi bom te ver, Pedro.
— Foi bom te ouvir, Daniel.
Ele estendeu a mão. Um aperto firme, quase nervoso. Os dedos tensos, como se hesitassem em soltar.
E então, como num impulso comum, nos puxamos para um abraço.
Foi forte. Corpo contra corpo. Sem hesitação.
Por um instante, tudo ao redor pareceu silenciar.
O vento seguia ali, o som do mar também. Mas dentro daquele gesto... era como se o tempo tivesse prendido a respiração.
Senti o leve calor do corpo dele. A tensão inicial nos ombros.
E depois... algo mais.
Como se desse para ouvir — não só o meu coração batendo — mas o dele também. Um som abafado, dentro do peito, mas presente. Vivo.
Aos poucos, Daniel relaxou. Foi sutil. Mas aconteceu.
E, sem que eu esperasse, ele repousou a cabeça no meu ombro. Só por um segundo.
E nesse segundo... sorrimos.
Sem olhar. Sem palavras.
Só sorrimos.
Mas quando começamos a nos afastar, ele passou a mão com leveza pela minha barba. Um gesto lento. Silencioso.
E eu respirei fundo. Como se aquele toque dissesse algo que a boca não teve coragem de dizer.
Então nos afastamos.
— Me avisa quando chegar, tá? — ele pediu, baixo, quase olhando para o chão.
Assenti com a cabeça. Sem voz. Só o gesto.
O celular vibrou. O Uber tinha chegado. Um carro popular, simples, encostou com os faróis baixos acesos.
Me despedi com um aceno, entrei no carro e fechei a porta devagar.
Enquanto o carro dava partida, olhei pelo retrovisor.
Daniel ainda estava lá, de pé na calçada, mãos nos bolsos, olhando para o mar.
E eu... não sabia mais em qual direção estava indo.
O carro seguia em silêncio.
Ou quase. Tocava uma música suave, com violão e uma voz que eu não reconhecia.
Talvez fosse conhecida. Talvez fosse só o som de fundo da confusão dentro de mim.
Encostei a cabeça no vidro. A cidade passava lá fora, viva, iluminada, indiferente.
Eu me sentia tonto.
Não de verdade. Não daqueles giros físicos que podem fechar os olhos.
Era outra coisa. Um calor no corpo. Uma respiração descompassada.
Como se tivesse corrido, mas por dentro.
Bebi só algumas cervejas. Nada demais.
Nada que justificasse aquele nó no estômago, o peso no peito, o desejo esquisito de rir e de sumir ao mesmo tempo.
Peguei o celular. Desbloqueei.
Abri a conversa com minha esposa. Digitei.
“Já tô indo pra casa. Chego em 15 minutos.”
Enviei. Bloqueei a tela.
Fiquei olhando meu reflexo apagado na janela. Eu mal me reconhecia ali.
O motorista olhou pelo retrovisor, como quem só queria quebrar o silêncio.
— Foi boa a noite?
Demorei um pouco pra responder. Talvez demais.
— Foi, sim — falei. Baixo. Quase como quem tenta convencer a si mesmo.
Ele assentiu e aumentou discretamente o volume da música.
Voltei a encostar a cabeça.
Respirei fundo.
Senti o peito apertar de novo.
Feliz? Um pouco.
Culpado? Talvez.
Confuso? Com certeza.
Era como se cada parte do meu corpo sentisse uma coisa diferente.
E nenhuma delas soubesse onde eu realmente queria estar.
E pela primeira vez, naquela noite, desejei que o trajeto demorasse mais um pouco.
Fechei os olhos.
Pensei em como o corpo procura abrigo onde não pode ficar.
Na vontade que a gente sente, às vezes, de existir em um intervalo.
Num espaço entre as obrigações e os nomes que a gente aprendeu a carregar.
Talvez tenha sido isso.
Talvez aquela noite tenha sido só uma pausa.
Uma fuga.
Uma forma de escapar por algumas horas de mim mesmo ou de voltar a mim, sei lá.
Quando o carro encostou, abri os olhos devagar.
Agradeci ao motorista com um aceno breve e saí. O ar da rua pareceu mais frio do que antes. Ou era o calor dentro de mim que não passava.
Entrei no condomínio. O porteiro me cumprimentou com um gesto cansado. Respondi no mesmo tom.
Subi.
O elevador parecia demorar mais do que o normal. Como se soubesse que eu não tinha pressa pra voltar. Mas voltei. O corredor escuro, as luzes automáticas se acendendo aos poucos com os meus passos.
Abri a porta devagar. Não queria acordar ninguém.
A casa estava em silêncio. Aquela espécie de silêncio que só existe em apartamento com criança pequena: frágil, como um copo apoiado na beirada da mesa.
Fui direto ao quarto deles.
Me abaixei ao lado da cama do mais novo. O cabelo na testa. A respiração leve, ritmada.
Passei a mão de leve nas costas dele, só pra sentir aquele calor pequeno e constante.
Sorri. Respirei fundo.
No outro quarto, o mais velho dormia de barriga pra cima, cobertor quase no chão.
Recoloquei a coberta, mesmo sabendo que ele ia chutar de novo assim que virasse pro lado. Mas era o tipo de coisa que a gente faz mais por si do que por eles.
Voltei pro corredor.
No quarto, a luz de abajur ainda estava acesa.
Minha esposa deitada, o celular na mão, rolando alguma coisa sem muito interesse. Quando me viu na porta, ergueu os olhos, mas não disse nada de imediato.
— Cheguei — falei.
— Tava demorando — ela disse, sem tom de cobrança. Era mais constatação mesmo.
Me aproximei devagar.
Dei um beijo na testa dela.
Fiquei alguns segundos ali, só sentindo a pele dela contra os meus lábios. Um gesto simples. Reconhecido.
Ela fechou os olhos por um instante. Depois perguntou, ainda de olhos semicerrados:
— E aí... como foi o papo com o Daniel?
— Foi bom. — Respondi, sentando na beirada da cama.
Ela assentiu, ainda focada na tela.
— Conversaram sobre o quê?
— Ah... de tudo um pouco.
Trabalho, esporte, notícias do mundo, uns casos engraçados que ele pegou no escritório.
Nada demais. Só conversa boa. Tranquila.
Aquelas conversas que vão e voltam sem chegar em lugar nenhum.
— Legal — ela disse, com uma entonação neutra.
Sem desconfiança.
Sem curiosidade.
Como quem só queria saber se estava tudo bem.
— Foi bom, sim — repeti. E a palavra “bom” dessa vez saiu mais leve.
Ou pelo menos, pareceu leve.
Me levantei devagar.
— Vou tomar um banho antes de deitar.
Peguei a toalha na área de serviço e fui direto pro banheiro.
No caminho, ouvi o celular vibrar sobre a cômoda.
Aquela vibração única, curta.
Era tarde demais pra qualquer notificação de trabalho. Ninguém me mandaria mensagem naquela hora.
Daniel.
Pensei, sem olhar.
Acendi a luz, pendurei a toalha, liguei o chuveiro.
A água caiu forte, fazendo um som constante que, por alguns segundos, me pareceu o único som do mundo.
Tirei a roupa como quem desmonta uma armadura.
O banho foi rápido, mas, mesmo assim, longo o bastante pra devolver alguns pensamentos que eu tinha deixado do lado de fora.
Fechei os olhos debaixo da água.
A cabeça voltou pra mensagem que eu ainda não tinha lido.
Mesmo com os olhos fechados, as palavras já estavam ali.
Como se meu corpo soubesse delas antes de eu ler.
Depois do banho, vesti um short limpo.
Saí do banheiro, apaguei a luz, devolvi a toalha para a área de serviço e voltei pro quarto.
Ela já dormia.
Deitada de lado, coberta até os ombros, a respiração leve, tranquila.
Havia paz naquela imagem.
Um tipo de paz que, naquele momento, me parecia distante demais de mim.
Peguei o celular no criado-mudo. A notificação seguia ali.
Daniel.
Toquei na tela.
"Desculpa a demora pra mandar mensagem.
Já tem um tempo que cheguei, só tava precisando respirar um pouco.
Espero que você tenha chegado bem.
Se não puder responder, tudo bem.
Só queria dizer que foi muito bom te conhecer.
Passar esse tempo contigo, longe de um acidente de carro bobo.
Foi bom. Foi especial.
Você é uma pessoa incrível.
Fica bem. Se cuida. Dorme bem.
Fica com Deus."
Li devagar. Uma vez. Depois de novo.
Cada palavra parecia respirar por conta própria.
Bloqueei o celular e deixei virado pra baixo no criado-mudo.
Ele tinha me pedido pra avisar quando eu chegasse.
Mas eu não o fiz.
E nem sei por quê.
Não foi um gesto pensado.
Talvez o fato de ter ido direto ver as crianças.
Ou talvez eu quisesse ver se ele se importaria.
Se sentiria minha ausência.
Apaguei a luz.
Me deitei devagar.
O colchão afundou sob o meu corpo, mas o peso não vinha do corpo.
Fiquei ali. Olhos abertos no escuro.
Com a mensagem ainda pulsando por dentro.
E tudo que eu não podia dizer, morando dentro do silêncio.
Fiquei pensando em muita coisa.
Naquela noite.
No toque leve dele.
Na cabeça encostada no meu ombro.
Na mão passando pela minha barba como se já me conhecesse.
Era difícil.
Muito mais difícil do que eu queria admitir.
Porque não era só sobre ele.
Era sobre mim.
Sobre o que eu fazia com tudo aquilo.
Com aquele medo.
Com aquela vontade.
Com aquela parte de mim que eu escondi por tanto tempo que quase acreditei que ela tinha ido embora.
Eu tinha medo do que não entendia.
Medo do que podia perder.
Medo do que poderia acontecer se eu parasse de evitar.
Mas mesmo com o medo...
...eu estava cada vez menos evitante.
Fiquei alguns segundos ali, parado.
E então estiquei a mão até o criado-mudo.
Peguei o celular. Desbloqueei.
Abri a conversa com Daniel.
Digitei devagar. Como se buscasse cautela em cada parágrafo digitado.
Li uma vez.
Não mudei nada.
"Obrigado pela noite.
Pra mim foi ótimo te conhecer.
Desculpa não ter respondido antes.
Espero que você tenha um ótimo descanso.
E uma excelente semana.
Se cuida.
Fique com Deus."
Enviei.
Bloqueei a tela.
Voltei a encostar a cabeça no travesseiro.
E, pela primeira vez naquela noite, respirei fundo...
sem precisar esconder nada de mim.
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Continua
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Olá, amigos!
Madrugada de domingo, 13 de julho, 01h43, e estou aqui finalizando mais um trecho desse momento que vivi. Mais uma vez, quero registrar meu agradecimento a cada um que vem se dispondo a ler cada capítulo que divulgo. De verdade, eu vejo os números e fico surpreso.
Obrigado aos leitores, aos que deixam comentários, estrelas... Enfim, tem sido algo terapêutico para mim. Isso tudo ainda é recente, mas continua tendo um efeito profundo na minha vida — e poder me expressar, mesmo através de nomes fictícios, tem sido libertador.
Peço desculpas por não conseguir ser tão assíduo. Tenho mesmo uma rotina bastante complexa, mas sempre que posso vou escrevendo algo, gravando áudios para transcrever, e, por fim, paro no notebook, abro o Word e faço toda a correção e pontuação.
Fico feliz por gostarem da minha escrita, da forma como me expresso.
Forte abraço a todos!