8- Espírito Adolescente

Um conto erótico de Lauro Costa
Categoria: Gay
Contém 6430 palavras
Data: 12/07/2025 10:40:11
Última revisão: 12/07/2025 11:06:55
Assuntos: Gay

O sol filtrava-se entre as folhas altas, tingindo a superfície da cachoeira com reflexos dourados. A água corria suave agora, como se o próprio tempo tivesse parado ali, respeitando o silêncio que se instalava entre Gael e Arkan.

Ambos estavam sentados em uma pedra lisa, ainda com os pés submersos na água fria. Gael mantinha os olhos fixos na correnteza, sem dizer nada. Arkan, ao seu lado, tragava devagar um cigarro, como se aguardasse.

— Vai me contar o que foi aquilo ontem na boate? — Arkan perguntou, com a voz baixa, quase casual.

Gael sorriu de canto, um riso seco. Passou a mão pelos cabelos úmidos, pensativo.

— Você já ouviu uma música da Britney Spears chamada Toxic?

Arkan franziu a testa, curioso. — Aquela do refrão pegajoso? "With a taste of your lips..."?

— Essa mesma. — Gael fez uma pausa. — É a trilha sonora perfeita pro que eu vivi com o Pedro.

O silêncio voltou a pairar entre eles, mas agora era outro tipo de silêncio. Denso. Carregado.

Gael respirou fundo. Ainda parecia decidir se contava ou não.

— Tudo começou há 17 anos atrás...

Flashback - 2008: O coreto da praça servia de palco improvisado. Os bancos de cimento estavam quentes do sol da tarde, e as árvores antigas estalavam com o vento seco do inverno no interior. Era um dia comum em Rancho da Serra, mas para Gael, Úrsula e Stefani, aquilo era o centro do universo.

Os três estavam estirados na grama, sob a sombra generosa de uma paineira.

— Eu já me vejo morando em Ipanema — dizia Úrsula, empinando o nariz com orgulho. — Um apartamento de frente pro mar. Quero trabalhar com marketing de moda ou publicidade. Tanto faz, contanto que eu esteja longe daqui.

— Isso se teu pai deixar, né? — provocou Stefani, mascando um capim.

— Ai, Stef, não começa.

— Ué, é verdade! Ele já disse mil vezes que mulher só sai de casa pra casar. Vai colocar um cadeado em você.

Úrsula bufou, mas Gael interrompeu, com aquele jeito conciliador que mantinha a amizade viva:

— Gente, se a gente se ajudar, dá certo. O plano é irmos juntos, lembra? A gente racha um apê minúsculo, eu arranjo estágio num jornal ou numa editora, Stef pode fazer teatro e a Úrsula, sei lá... vende sua alma pra algum estilista famosinho.

Stefani riu alto. — Olha, eu vendo minha alma e meu rim também, se for pra sair daqui.

Úrsula fingiu ofensa, mas logo relaxou. Naquele momento, não importava classe social, nem as diferenças sutis entre eles. Eram só três adolescentes sonhando com uma vida maior do que Rancho da Serra poderia oferecer.

— E se der tudo errado? — perguntou Úrsula, mais baixa.

Gael ficou em silêncio por um instante.

— Então a gente volta. Mas pelo menos tentou. Eu não quero envelhecer aqui e me perguntar como teria sido.

Eles trocaram olhares cúmplices. Eram jovens, bobos e esperançosos. E, por um momento, tudo parecia possível.

Mas tudo mudou na semana seguinte. E o catalisador tinha nome e sobrenome: Pedro Krazinsck.

Filho de deputado estadual carioca, Pedro chegou à cidade como uma lenda urbana de carne e osso — exilado temporariamente por ter causado um acidente em um racha de madrugada na Barra da Tijuca. A versão oficial era reabilitação comportamental. A real? Castigo de pai político para filho rebelde.

Quando pisou na escola municipal, o chão pareceu estremecer. Camisa aberta sobre camiseta preta, colar de couro, olhar entediado. Era o clichê do bad boy — só que com um charme quase involuntário.

Úrsula o notou primeiro. Stefani classificou como "perigo gostoso". Mas foi em Gael que Pedro cravou os olhos. Longamente.

— Oi — disse ele, sem cerimônia, interrompendo o trio na escadaria da entrada da escola. — Posso sentar aqui?

— Isso não é uma democracia — respondeu Úrsula, ajeitando o cabelo. — Mas vou deixar.

Pedro sentou-se ao lado de Gael.

— Sou Pedro.

— Gael. E essas duas são as minhas disfunções emocionais — respondeu, sarcástico.

Pedro riu. Gael também. Foi rápido, leve, mas suficiente para acender algo.

E a partir dali, os planos dos três começaram a rachar. Lentamente. Irreversivelmente.

(Ano: final de 2008. Local: Rancho da Serra, em um final de tarde nublado, na praça central da cidade.)

O céu tingido de cinza escondia o fim de tarde abafado, e as árvores da praça central pareciam cochilar com o calor. Gael ajeitava a mochila nos ombros enquanto falava de poesia com aquele entusiasmo nervoso de quem ainda não sabia se estava ensinando ou se protegendo. Pedro, encostado no parapeito da mureta baixa, ouvia. Mas não prestava atenção nas palavras — observava os lábios de Gael se movendo.

— …e aí Drummond escreve que no meio do caminho tinha uma pedra, mas acho que era amor disfarçado, sabe? — disse Gael, sorrindo, desviando o olhar como se aquilo fosse apenas uma teoria literária, e não um pedido.

Pedro riu. Riu de verdade, pela primeira vez desde que tinha chegado à cidade.

— Você fala de amor como se não fosse perigoso — murmurou Pedro, abaixando o olhar por um segundo. — Eu não sei se eu teria essa coragem.

Gael suspirou, sentando-se ao lado dele na mureta, com os joelhos próximos. Olhou as mãos, depois os olhos do outro.

— Você já sentiu isso antes? Esse negócio… que parece que vai explodir se você não tocar?

Pedro engoliu seco. A praça estava vazia, a brisa parecia segurar a respiração. Ele não respondeu com palavras. Apenas aproximou o rosto e, com hesitação infantil e desejo adulto, beijou Gael.

Foi breve. Mas longo o suficiente para que tudo mudasse.

— Você tem gosto de hortelã — sussurrou Gael, atônito, quando se afastaram.

— É o chiclete. — Pedro sorriu, nervoso. — Ou o medo.

Eles riram. Gael encostou a cabeça no ombro do outro. Pela primeira vez, sentiu-se protegido. Pela primeira vez, sentiu que poderia amar.

Mas em alguma janela escura da praça, um par de olhos os observava. O mundo não ficaria em silêncio por muito tempo.

(Início de 2009. Tarde chuvosa. Casa de Gael e Cacilda. Bairro Jardim das Palmeiras.)

A chuva batia fina no telhado de eternit, e o cheiro de roupa úmida se misturava ao perfume cítrico da vela de citronela que Gael tinha acendido no quarto. Os livros de escola estavam empilhados num canto, ignorados. O som do rádio baixo sussurrava um bolero antigo, quase uma trilha sonora cômica para o que acontecia no colchão de casal que Gael compartilhava com Pedro.

Estavam deitados de lado, pernas entrelaçadas, ainda ofegantes do beijo longo, quase proibido, que tinham trocado minutos antes. As mãos de Pedro deslizavam com cuidado pelas costas de Gael, como se quisessem memorizar cada vértebra.

— Você acha que dá pra viver assim pra sempre? — sussurrou Gael, com os olhos fechados. — Escondido?

— Eu não me importo. Se for com você.

Foi aí que a porta rangeu.

Cacilda.

A professora de matemática da escola estadual tinha voltado mais cedo por causa do conselho de classe cancelado. Estava com a bolsa a tiracolo, o cabelo preso num coque molhado pela chuva. E ali estava ela — parada na porta do quarto do filho, olhos vidrados, respiração suspensa, entre o espanto e a dúvida.

Pedro se levantou num pulo, desajeitado, puxando a camiseta. Gael ficou sentado na beira da cama, pálido, mas sem desviar o olhar da mãe.

Cacilda entrou devagar, fechando a porta atrás de si. Não era fúria o que tremia em sua expressão. Era algo mais profundo. Algo como medo.

— Gael... é isso mesmo que eu vi?

— Mãe... — ele tentou engolir o nó que lhe subia pela garganta — eu ia te contar. Um dia.

Pedro, tremendo, tentou se explicar:

— Dona Cacilda, por favor... não é o que parece. Quer dizer, é, mas…

Ela ergueu a mão.

— Pedro, eu não estou falando com você agora. Me dá licença?

Pedro hesitou, olhou para Gael — o olhar de um náufrago — e saiu. Cacilda esperou a porta bater.

Sentou-se ao lado do filho.

— Você… você está com o filho do chefe do seu pai?

Gael não conseguia responder. Cacilda soltou a bolsa e, por um instante, desabou sentada na cama. — Senta ao meu lado Gael.

— Você ama esse rapaz ? - disse Cacilda.

— Sim mamãe. Eu amo tudo no Pedro. Ele me trata com tanto carinho, e temos tantos sonhos.

— Esse menino é rebelde demais. Tem certeza de que ele gosta de ti ? Só quero que ninguém te machuque, Gael… Só isso.

— Ele me ama !!! Tenho certeza disso, ele é mais do que demonstra ser mamãe.

— Mas seu pai… isso pode matar ele. Ou pior: fazer ele matar você.

— Eu sei. — disse Gael, a voz rouca. — Mas eu não aguento mais fingir.

— Só tenha cuidado, com seu pai. Me dê um tempo para prepará-lo, ele é homem de costumes antigos, mas com o tempo ele irá entender.

Ela respirou fundo, olhando para o chão. Depois para ele. E então colocou a mão sobre a do filho, com firmeza, como se estivesse lendo os pensamentos de Gael.

— Gael… eu sou sua mãe. E nada no mundo irá me fazer deixar de te amar. A pesar de toda a crueldade desse mundo, eu estarei aqui para você.

Ele chorou, silenciosamente. Cacilda abraçou o filho com força, e ele afundou no colo dela como quando era criança com febre.

Por alguns minutos, ali, na tempestade que caía do lado de fora e dentro da casa, mãe e filho aprenderam o preço — e o poder — da verdade.

(Escritório de Maurício Krazinsck. Final de tarde abafado em Rancho da Serra. O ventilador gira lentamente, espalhando um cheiro de madeira encerada e charuto.)

Pedro entra e fecha a porta com cuidado. A última vez que o pai o chamara com aquele tom urgente, um assessor fora demitido.

Maurício, de pé, observava o mapa da cidade com anotações rabiscadas. No centro, destacado a marcação de um terreno baldio.

— Sabe o que eu mais odeio, Pedro? — diz, sem virar. — A ingratidão. E a burrice.

Pedro ergue uma sobrancelha, mas permanece em silêncio.

Maurício gira sobre os calcanhares e encara o filho.

— Ouvi você. E o tal do Mocinho Félix. Uma ligação inocente. Mas ouvi. Cada palavra.

Pedro engole seco.

— Pai…

— Cale-se. — Ele avança até a mesa, tira um maço de documentos de uma pasta parda e joga na superfície. — Você sabe o que é isso?

Pedro olha os papéis, sem responder.

— Isso é um projeto milionário. Vai sair do PAC. Programa de Aceleração do Crescimento. Dinheiro federal. Vai financiar a construção de um Centro Integrado de Artes e Tecnologia aqui em Rancho da Serra.

Pedro pisca, confuso.

— Tá… e eu com isso?

Maurício sorri. Frio.

— Esse projeto é minha ponte para Brasília. Para o Senado. — Ele se senta devagar. — Só que tem um detalhe: pra isso acontecer, eu preciso do apoio de Amadeu Cabalero, o prefeito.

E o velho conservador só confia na própria sombra... e na filha.

Pedro se afasta um passo, já entendendo onde aquilo ia dar.

— Você quer que eu seduza a Úrsula pra conseguir a obra?

— Não. Quero que você a conquiste. Com aliança no dedo e, se possível, um neto a caminho.

Pedro dá uma risada sarcástica.

— Você tá falando sério?

— Nunca estive tão sóbrio. Você acha que o mundo gira ao redor da sua poesia com o Mocinho? Isso aqui é política. É poder. E se você não fizer sua parte, eu acabo com tudo que é seu.

Pedro cerra os punhos.

— E se eu me recusar?

— Você volta a andar de ônibus. Sai da cobertura. Esquece faculdade, mesada, cartão. E saiba: posso jogar o nome do Mocinho na lama. Transformar a mãe dele numa piada. Você quer isso?

Silêncio.

Maurício se levanta, se aproxima devagar.

— O Gael pode ser doce. Mas ele é pobre. E gay. Ninguém vai defendê-lo. Mas você... você pode ser senador um dia. Desde que saiba calar seu coração idiota e ouvir a cabeça. A que pensa.

Pedro, engolindo a raiva, baixa os olhos.

Maurício sorri. Vitória anunciada.

— Agora vá. A Úrsula está na praça central para a entrega dos computadores novos da escola. Apareça lá. Tire uma foto ao lado dela. E sorria. Vai ser o início da sua carreira.

(Pedro sai. A porta bate. E o ventilador continua a girar, como se nada tivesse acontecido.)

A casa dos Camargo estava com cheiro de alho refogado e panela de pressão chiando. Cacilda terminava de corrigir provas na cozinha, os óculos escorregando no nariz, enquanto cantarolava baixinho alguma coisa da Gal Costa.

Na sala, Felipe, de gravata frouxa e expressão fechada, revisava um calhamaço de documentos sobre a mesa. A TV exibia uma reportagem sobre obras públicas paradas no interior, com o símbolo do PAC estampado no canto da tela.

O som da porta se abrindo anunciou Gael, suado e sorridente, com os livros do cursinho debaixo do braço.

— Boa tarde, mãe. — disse ele, já indo pra cozinha. — Trouxe pão de queijo. Peguei na promoção.

— Isso que é filho que presta! — Cacilda respondeu, sem levantar os olhos das provas.

Felipe pigarreou alto.

— Gael, pode vir aqui um minuto?

Gael parou no meio do corredor, surpreso.

— Claro. Que foi?

Felipe apontou com o queixo para o sofá.

— Senta aí.

Gael obedeceu, desconfiado.

— Tenho visto você muito na companhia do filho do doutor Maurício. O Pedro.

— E?

— E que você precisa ter cuidado com as suas amizades, só isso. O Maurício tem planos grandes pra essa cidade. E eu sou o advogado dele. É importante que a gente não dê motivos pra... fofocas desnecessárias.

Gael estreitou os olhos, a voz mais dura:

— Que tipo de fofoca, pai?

Felipe hesitou. Escolhia as palavras como quem pisa em campo minado.

— Você sabe como a cidade é pequena. As pessoas falam. E Pedro... é um rapaz complicado. Já teve problema no Rio. Melhor manter um certo limite.

— Eu gosto de conversar com ele. A gente estuda junto. Só isso.

— Pois mantenha assim. Estudo.

Gael se levantou devagar.

— Tá com medo que eu manche o seu nome, é isso?

Felipe o encarou com frieza.

— Tô cuidando da sua imagem. E da minha.

Gael sorriu, falso.

— Então fica tranquilo. A imagem do senhor tá intacta.

Ele saiu e subiu as escadas com os livros contra o peito, sentindo o coração acelerar. Na sala, Felipe voltou aos documentos, mas o maxilar continuava travado.

(Noite – setembro de 2009)

O gabinete cheirava a couro e mofo, como tudo em Rancho da Serra que sobrevivia ao tempo. As paredes estavam forradas com diplomas, fotos de campanhas passadas e um crucifixo torto sobre a estante. Amadeu Cabalero repousava atrás de uma mesa de madeira maciça, tomando conhaque sem gelo, enquanto escutava Maurício Krazinsck, recém-chegado do Rio, com um sorriso cínico no rosto e uma pasta de documentos em mãos.

— O PAC abriu uma brecha boa — dizia Maurício, folheando os papéis. — Recursos federais, investimento em infraestrutura. Mas se a cidade não der sinal verde logo, eles vão pra Tangará da Serra ou pra alguma zona agrícola no Sul de Minas.

Amadeu encostou-se na cadeira, desconfiado:

— E o senhor quer trazer isso pra cá... por altruísmo?

— Rancho da Serra é a cidade natal da minha família. — disse Maurício, em tom ensaiado. — Acho que chegou a hora de retribuir. Criar empregos, asfaltar aquela linha de trem abandonada, transformar o centro histórico em ponto turístico de verdade.

Amadeu ergueu as sobrancelhas.

— Parece bonito no papel. Mas isso tudo vem com contrapartida, imagino.

Maurício sorriu mais largo.

— Nada que um bom entendimento entre famílias não resolva. Seu nome ainda é muito forte por aqui. E... meu filho tem falado muito da sua filha. Úrsula, não é?

Amadeu ficou em silêncio por um instante.

— São adolescentes. Frequentam a mesma escola. Amigos, talvez.

— Pedro se sente bem aqui. Disse que Úrsula é inteligente, decidida. Meu filho mudou muito depois que a conheceu. — Maurício fez uma pausa medida. — Dois jovens promissores, sabe? Às vezes... alianças começam assim. Com amizade.

O prefeito girou o copo de conhaque nas mãos.

— Eu conheço esse jogo, Maurício. E sei quando alguém tá colocando as peças no tabuleiro.

— E sabe jogar também — devolveu o deputado, rindo.

Amadeu encostou-se de novo na cadeira e, finalmente, sorriu.

— Vamos ver no que dá essa amizade, então.

Noite – 15 de setembro de 2009 | Festa de aniversário da cidade)

A cidade estava em festa. A praça central vibrava com luzes coloridas, bandeirinhas presas em cordões cruzando o céu estrelado. O palco principal anunciava uma dupla sertaneja local, enquanto as barracas de pastel, pescaria e quentão exalavam fumaça e alegria.

Gael chegou com Stefani, os dois rindo e dividindo um algodão-doce. Ele estava com uma camisa preta e calça jeans escura, o cabelo mais solto e um sorriso fácil — embora os olhos ainda sondassem entre a multidão.

— A Úrsula não respondeu minhas mensagens — comentou Gael. — Disse que tava gripada, ia ficar em casa. Nem parece com ela faltar uma festa.

Stefani ergueu uma sobrancelha.

— Deve ser coisa de menina apaixonada. Anda mais estranha que o normal, não acha?

Gael deu de ombros, distraído. Olhou para o palco, depois para a roda-gigante. O coração acelerou quando sentiu uma mão tocar discretamente sua cintura por trás.

— Achei que ia te perder nessa multidão.

Pedro, com um sorriso inclinado e jaqueta jeans sobre camiseta branca, aproximou-se de maneira furtiva. O olhar escorregava por Gael como se o procurasse há dias.

— Não sabia se você ia mesmo vir — disse Gael, tentando manter a voz firme.

— Vim por você. Só por você.

Sem que ninguém visse, Pedro puxou Gael para trás de uma das barracas de argola, encobertos por cortinas de lona. Os dois trocaram um beijo quente, faminto, como se o tempo que passaram longe tivesse doído demais.

— Você ainda quer a gente no Rio, né? — perguntou Gael, com as mãos presas à gola da jaqueta de Pedro.

Pedro sorriu, com algo de melancolia.

— Cada segundo aqui me lembra que a gente precisa fugir.

Beijaram-se novamente, dessa vez mais demoradamente. Gael suspirou.

— A Úrsula ficou gripada. Não veio.

Pedro hesitou por uma fração de segundo, antes de fingir surpresa.

— Poxa, sério? Que pena.

Ele olhou o relógio no pulso, tenso.

— Preciso só dar um pulo em casa rapidinho. Encontro vocês depois?

Gael assentiu, sorrindo. Pedro se despediu com um beijo na testa — tão carinhoso quanto cruel.

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Casa dos Cabalero.

Rua silenciosa, longe da festa.

A casa dos Cabalero estava parcialmente apagada. Luz apenas no quarto da frente.

Pedro subiu os degraus da varanda e bateu com a ponta dos dedos.

A porta se abriu devagar. Úrsula, de moletom e shorts, os olhos vermelhos como se tivesse chorado.

— Achei que você ia me esquecer.

Pedro a abraçou, a voz macia.

— Nunca esqueceria você. Só não queria te expor naquela festa.

Úrsula sorriu, aliviada, e o puxou para dentro.

Pedro olhou para trás antes de entrar. No fundo, algo nele ardia em culpa — ou seria apenas o medo de ser pego? Dois amores. Dois mundos. E uma única mentira crescendo como veneno.

Casa dos Cabalero – Quarto de Úrsula | Noite chuvosa de Março de 2010.

O barulho da chuva era constante, mas não suficiente para acalmar Úrsula. Ela estava sozinha no quarto, enrolada num casaco de moletom, o celular sobre a cama vibrando de vez em quando — notificações inúteis, exceto a que importava: nenhuma de Pedro.

Já era a terceira noite seguida em que ele dizia estar cansado, ocupado, ou "com dor de cabeça". Úrsula sabia farejar mentira de longe, mesmo que o coração insistisse em negar.

Impulsiva, abriu a agenda de contatos e clicou no nome que nunca imaginou usar para isso: "Dr. Maurício K."

Chamou duas vezes antes de atender.

— Ursinha? — a voz era gentil, baixa. — Que prazer te ouvir. Está tudo bem?

Úrsula respirou fundo.

— Não muito, doutor Maurício. É sobre o Pedro.

— Aconteceu alguma coisa?

— Ele tá estranho... distante. Frio comigo. Eu tô achando que... que tem outra pessoa.

Silêncio. Ela quase se arrependeu de ter falado, até ouvir o suspiro do outro lado.

— Ah, Ursinha... — começou ele, com um tom que mais parecia de um tio preocupado. — Pedro é complicado, meu amor. Sempre foi. Mas não se engane. Ele tem olhos só pra você.

— Então por que ele tá agindo assim?

Maurício modulou a voz com delicadeza.

— Estamos em setembro. Foi nesse mês que a mãe dele morreu. Ele não fala muito sobre isso, mas fica mais introspectivo. Triste. A dor dele é silenciosa... e você acabou virando o porto seguro dele.

Úrsula engoliu em seco.

— Ele nunca me contou isso...

— Pedro é como eu nesse aspecto. Orgulhoso. Mas ele gosta de você, Ursinha. Eu vejo. Ele fala de você com carinho. Confia em mim... você não tem rival. Só memórias ruins rondando.

Ela deitou de lado, olhando para o teto, tentando conter o nó na garganta.

— Obrigada... de verdade. Eu tava precisando ouvir isso.

Maurício deu um leve riso paternal.

— Quando quiser conversar, pode me ligar. Eu gosto de saber que meu filho está em boas mãos. Durma bem, Ursinha.

Ela desligou com um misto de conforto e inquietação. O apelido carinhoso, a forma como ele a protegeu... algo parecia sincero. Mas ainda assim, uma ponta de dúvida permanecia cravada no peito.

Pedro podia estar de luto... ou escondendo algo muito pior.

Maio de 2010 | Praça da Matriz, fim de tarde.

O céu estava cinza, pendurado sobre a praça como uma cortina prestes a desabar.

Gael caminhava depressa, os livros contra o peito, os olhos buscando Pedro entre os bancos da praça. Haviam combinado de se encontrar. Pedro dissera que estava ajudando o pai com “um negócio chato”, mas que queria ver Gael antes da noite cair.

Cacilda tinha dito naquela manhã que o menino andava mais bonito. E ele estava mesmo. Cabelo penteado, perfume discreto, esperança nos olhos.

Mas o que encontrou foi outro tipo de cena.

Ali, sob a pérgola coberta de flores brancas, Pedro segurava a cintura de Ursula.

Eles riam. Riam como se o mundo ao redor não tivesse cor. Pedro a beijou, breve. Depois mais uma vez.

E Ursula o chamou de "meu amor".

O mundo parou por dois segundos. Depois voltou em um estrondo ensurdecedor dentro de Gael.

Ele se aproximou devagar, como quem caminha sobre estilhaços de vidro.

— Pedro.

Os dois se viraram ao mesmo tempo.

Pedro congelou. Ursula endureceu o maxilar.

— Gael — Pedro tentou, quase sem voz.

— Você mentiu. — a frase veio seca. Sem lágrimas. Só a dor bruta.

Pedro tentou sorrir, mas ficou em choque.

— Se acalma Gael, vamos conversar depois. Não precisa disso...

— Você me disse que ia ajudar seu pai. — Gael continuou, como se não o ouvisse. — Você me beijou ontem. Você passou dois anos me fazendo acreditar que eu era importante. E agora está aqui... com ela?

Ursula interveio, ríspida:

— Como é ? Eu fui sua amiga por quantos anos, Gael? E você nunca me contou nada. E agora está dizendo esse disparate que meu namorado está ficando com você.

— Ele não é seu namorado. Ele é meu namorado ! — Gael explodiu, batendo forte em seu peito. — Ele dizia que te achava insuportável! Que não aguentava esse seu jeito mimado e arrogante!

Ursula foi até ele, olhos faiscando.

— Você não suporta perder. Nunca suportou. Eu sou a Úrsula Cabalero, Gael. Você sabe o que isso significa nessa cidade. Você foi só... um capricho dele.

Pedro, enfim, gritou:

— Chega!

Os dois silenciaram.

— Gael... — ele tentou, mais uma vez. — Acho que você confundiu nossa amizade. — disse Pedro nervoso tentando encobrir.

Eu amo a Úrsula, e acho que ela é a mulher da minha vida.

Gael deu um riso fraco.

— Então você escolheu a versão fácil da sua vida, Pedro? A que dá mais conforto?

— Não é fácil! É amor. — Pedro rebateu, a voz falhando.

— Então é covarde.

E você, Ursula... — Gael virou-se para ela, os olhos ardendo. — Você vai conseguir o que quer. Um marido bonito, uma aliança de ouro. Uma barriga crescendo no tempo certo. E um coração podre no altar.

Ursula o esbofeteou. De verdade.

Gael virou o rosto com o golpe, mas não caiu.

— Se me bater de novo — ele disse baixo, encarando-a — eu revido. E você sabe que eu nunca erro a mira.

Pedro interveio, mas Gael já se afastava.

Deixou o casal ali, envoltos num silêncio constrangido.

Ao longe, a primeira gota de chuva caiu.

Gael caminhou de volta para casa sentindo o gosto do ferro na boca — não era sangue, era o fim da pureza.

Casa dos Camargo – Final da Tarde.

A noite já ameaçava engolir o fim do dia quando Felipe Camargo entrou em casa antes do esperado.

Na sala, ainda sem luz acesa, o silêncio era espesso. Só se ouvia, ao fundo, o tilintar dos talheres da vizinha lavando louça, e, num volume baixo, o rádio portátil de Gael tocando “Smells like teen spirit" do Nirvana numa versão qualquer.

Felipe deixara o escritório de Maurício com o sangue em ebulição.

> — “ Meu amigo, como pai, tenho o dever de te avisar, que vi seu filho com outro rapaz se beijando perto da estação antiga.

— “Do que está falando, doutor Maurício?”

— “Gael é gay. E cabe a você dar um corretivo para o rapaz não virar um transviado, cheio de doenças. E outra imagine o que vão falar de você ... "

Felipe mal respondeu. Sua mandíbula cerrada falava por si.

Gael, deitado no sofá, com os olhos inchados pelo choro da decepção com Pedro e Úrsula, nem ouviu a porta bater.

Felipe entrou como um trovão.

Sem chamar, sem perguntar, sem pestanejar.

— É verdade? — rugiu.

— Pai...? — Gael se sentou, assustado. — O que foi?

— Você é um viadinho? — berrou Felipe. — Você tá envergonhando meu nome? Meu sangue?!

O soco veio seco. Gael tombou no sofá.

Levantou com dificuldade, os olhos arregalados.

— Para! O que tá fazendo?!

Mas não houve pausa. Felipe avançou. Empurrou, bateu, gritou palavras que Gael jamais ouvira de perto.

“Anormal.”

“Desvio.”

“Desgraça.”

" Aberração da natureza."

A dor física doía menos que o som daquelas palavras saindo da boca que ele, um dia, chamara de pai.

O vizinho, Seu Manoel, ouviu os gritos. Bateu na porta. Chamou. Quando não foi atendido, pulou o pequeno portão e entrou pelos fundos, onde a porta estava encostada.

Ao ver a cena — Felipe em pé, ofegante, com o rosto em fúria; Gael no chão, com o lábio cortado e as mãos tentando proteger o rosto —, Seu Manoel gritou:

— Tá maluco, Felipe?! Vai matar o menino?!

Felipe congelou.

Seu peito subia e descia.

— Cuide do seu filho, que do meu eu resolvo.— cuspiu, antes de pegar a pasta de couro. — Se ajudar ele, você irá se ver comigo Manel.— disse virando as costas e saindo da casa como se nada tivesse acontecido.

Seu Manoel correu até Gael. Ajudou-o a levantar, e o levou até o hospital. No caminho ele ligou para a escola avisando a Cacilda o ocorrido.

— Respira, meu filho... respira...— falou Manoel.

Gael só chorava em silêncio.

Os olhos, avermelhados, não pediam socorro, pediam amor.

Gael estava sentado na maca conversando com Sr. Manoel. O olho roxo, o lábio rachado. Um corte pequeno na testa com pontos, e im braço engessado. A respiração curta de tanto segurar o choro.

Cacilda entra apressada, ainda com o uniforme de professora e os cabelos presos de qualquer jeito. Ao ver o filho, ela trava. O tempo congela.

— Mãe… — Gael começa, hesitante, a voz embargada. — Ele descobriu ! Não sei como...

Ela caminha até ele. A mão trêmula toca de leve o rosto inchado do filho.

— Foi o Felipe?

Gael assente com a cabeça. Um silêncio denso se instala.

Ela fecha os olhos por um instante. Inspira fundo. Abre os olhos, agora repletos de uma raiva silenciosa e uma decisão firme.

— Meu Filho me perdoa por não estar lá. Me perdoa por acreditar que aquele monstro iria mudar. Ele nunca mais vai encostar um dedo em você, Gael.

— Mãe, ele… ele vai te deixar sem nada se você ficar do meu lado.

Cacilda segura o queixo do filho com delicadeza, forçando-o a encará-la.

— Eu sou sua mãe. E se ele pensa que vou deixar o amor da minha vida sozinho nesse mundo… então ele não sabe com quem se casou.

Ela beija sua testa com cuidado.

— A partir de hoje, somos só nós dois. E isso é mais do que suficiente.

Casa dos Cabalero – Dezembro de 2010.

O relógio marcava 18h20 quando Úrsula desceu as escadas devagar, com um envelope pequeno nas mãos. Dolores, sentada no sofá com um bordado no colo, ergueu os olhos — e bastou um segundo para perceber: havia algo errado.

— Não me diga que é o que eu estou pensando... — murmurou, colocando o bordado de lado.

Úrsula sentou-se devagar, largando o envelope em cima da mesa de centro. O silêncio era espesso.

— Dois testes. Os dois positivos.

Dolores soltou o ar, quase como um assobio entre os dentes. Passou a mão na testa e então chamou:

— Amadeu!

O patriarca surgiu com passos pesados. Estava no escritório revendo papéis do novo convênio municipal. Olhou a filha, olhou a esposa — e por fim, o envelope.

— Do Pedro? — perguntou, a voz dura como pedra.

Úrsula assentiu, tentando conter as lágrimas. — Ele não sabe. E... acho que não me ama. — O sussurro foi mais grave que um grito.

Dolores se aproximou da filha e a abraçou, mecânica, mais por obrigação que por compaixão.

Amadeu caminhou até a janela, fitando a praça em frente. — Não importa. Vai casar com você. Isso resolve tudo.

— Ele não quer. Já pedi. Ele está confuso e ainda tem o Gael está sempre rondando a gente, causando intriga.

— Esse merdinha de novo, eu já falei para você, minha filha que não era bom se misturar com essa gentalha de Rancho Da Serra. – disse Dolores.

— Então você vai deixar ele confuso com uma certidão de casamento assinada. — Amadeu virou-se, já tirando o celular do bolso.

— E Maurício? — perguntou Dolores.

— Esse é o momento certo. O filho dele engravidou a filha do homem que autoriza a verba federal. Agora ele nos deve. E vai pagar.

— Fique Calma filhinha, papai vai realizar seus sonhos. Vou resolver esse problema Gael também para você.

Dolores se serviu de um cálice de vinho. Úrsula desmoronou no colo dela, soluçando baixinho.

Na parede, o quadro de família sorridente parecia zombar da tragédia prestes a explodir.

Pensão de Dona Leninha – Dezembro 2010.

Gael estava no quintal da pensão que estava morando com sua mãe depois da separação de seus pais, deitado numa espreguiçadeira velha, lendo um livro de Simone de Beauvoir que pegara com Stefani. O som da chaleira apitando na cozinha foi abafado pela buzina insistente de um carro importado.

Dona Leninha espiou pela cortina e arregalou os olhos.

— Olha só quem resolveu aparecer...

Amadeu Cabalero saiu do carro como quem já entra num campo de batalha. Paletó leve, gravata solta, expressão de quem estava acostumado a conseguir o que queria.

— Boa tarde, Gael Félix.

— Se for por ironia, já começo a rir agora.

Amadeu não respondeu. Tirou um envelope do bolso interno do blazer e o deixou sobre a mesinha de ferro enferrujado.

— Isso é uma chance. Pra você sair daqui com dignidade, com conforto. Pode recomeçar a vida em qualquer outro lugar. Longe dos olhos de quem você tem irritado.

Gael olhou o envelope. Não o abriu. Não precisava.

— Você tá me oferecendo dinheiro pra eu sumir da cidade?

— Pra você não atrapalhar os planos de uma família decente. Minha filha tá grávida do covarde do seu ex. Pense isso será bom para todos.

— Quer que eu seja o erro enterrado pra vocês manterem a pose de família tradicional do interior?

— Quero que você use sua inteligência pra entender que já perdeu.

Gael se levantou, com uma calma que vinha do fundo de um poço escuro e silencioso.

— Você sabe usar vassoura, senhor Cabalero? Porque se não sabe, vai aprender agora.

Pegou a vassoura e a bateu em Amadeu que deu dois passos para trás, alarmado, olhando ao redor.

— Garoto Maluco !

— Nunca mais apareça na minha frente. Da próxima vez que vier aqui, vou fazer pior. Lixo Velho.

Amadeu desceu as escadas tropeçando em uma das tábuas soltas. Dona Leninha apareceu com uma xícara de chá.

— Quer açúcar, Gael? Ou o gosto amargo do desprezo já tá bom pra adoçar o dia?

Gael deu uma risada curta. — Hoje, só o gosto da vitória mesmo.

[Centro de Rancho da Serra – Dezembro de 2010 | Tarde abafada, véspera da formatura do ensino médio]

Gael saía da escola com os convites de formatura recém-impressos. O nome dele, estampado em letras douradas sobre o papel grosso, parecia brilhar demais para o peso que sentia nos ombros. Dobrou a esquina e, como se o destino zombasse dele, deu de cara com Pedro Krazinsck, encostado num dos bancos da pracinha. Sozinho. Esperando.

— Não tem vergonha, não? — Gael disparou, antes mesmo de parar de andar.

Pedro se ergueu, tirando os óculos escuros.

— Gael… eu só queria conversar.

— Conversar? Depois de me enfiar numa mentira, namorar a Úrsula pelas minhas costas e agora engravidar ela? Tu tem coragem.

— Não foi bem assim—

— Foi exatamente assim. Você mentiu. E o pior, você me enganou. Me usou.

Pedro deu um passo à frente, aflito.

— Eu juro, Gael, eu tentei dar um jeito nisso… mas meu pai me colocou contra a parede. Ele ameaçou me tirar tudo. A grana, a faculdade, o futuro. Disse que eu tinha que seguir com Úrsula, ou seria o fim.

Gael bufou.

— Então você escolheu. E não fui eu.

— Não é tão simples—

— É sim. Você engravidou ela. Vai se casar. Já tem o retrato perfeito da hipocrisia.

Pedro engoliu em seco. Baixou os olhos.

— Mas eu ainda penso em você. Eu te amo, Gael. Sempre amei. E quero que a gente continue… mesmo que escondido.

O mundo congelou por um segundo.

Gael soltou uma risada incrédula. Fria. Desolada.

— Você tá me pedindo pra ser o quê? Seu amante? Enquanto você desfila com a Úrsula grávida pela cidade?

Pedro não respondeu. O silêncio foi mais vergonhoso do que qualquer palavra.

Gael rasgou um dos convites de formatura no meio, com as mãos trêmulas.

— Você é covarde, Pedro. E eu sou idiota de ter acreditado que você seria diferente.

— Eu não queria te perder—

— Mas perdeu. E nem precisou da ajuda do seu pai pra isso. Parabéns.

Ele virou as costas e foi embora, sem olhar pra trás. Pedro ficou parado, com os restos do papel dourado caindo como cinzas no chão.

Últimos dias de dezembro de 2010 | Pensão modesta onde vivem Gael e Cacilda.

A manhã amanheceu com uma brisa quente de fim de ano, mas o ar dentro da pensão estava pesado. Pesado de fim. Pesado de decisão.

As malas estavam encostadas ao lado da porta — duas apenas. Uma de Gael, com seus livros marcados por anotações à lápis, camisetas dobradas sem muito cuidado, e uma pasta onde guardava o convite da formatura e a inscrição do vestibular. A outra, de Cacilda, estava meticulosamente organizada, com seus vestidos simples, seus remédios, cadernos de professora aposentada e uma pequena imagem de Nossa Senhora envolta em lenço branco.

Cacilda, sentada à beira da cama, relia o envelope do cartório com a confirmação oficial do divórcio. Seus olhos não estavam marejados, mas havia um silêncio que dizia tudo. Quando fechou o envelope, levantou-se com a serenidade de quem, enfim, colocava um ponto final num capítulo que durou mais do que devia.

— Está decidido, Gael. A gente vai. A tia Ruth já arrumou o quarto. Vamos ter paz por lá.

Gael respondeu apenas com um aceno. O rosto era de alguém que já estava cansado de criar esperança naquele lugar. Só o que ainda o prendia à cidade era a amizade com Stefani. E por isso, antes de subir no táxi com a mãe, ele a chamou.

A amiga o esperava na calçada, de braços cruzados, usando uma camisa surrada da formatura onde haviam rabiscado “Turma de Fênix”. Quando se olharam, nenhum dos dois sorriu.

— Você vai mesmo? — ela perguntou.

— Já fui. Só faltava o corpo sair.

Stefani segurou o riso embargado. E num gesto rápido, abraçou Gael como quem segura algo que sabe que vai perder.

— Você vai voar, Gael. Vai virar tudo o que esse lugar tentou impedir.

— Você foi a única coisa boa daqui, Stef. Eu não vou sentir falta de ninguém. Só de você.

Eles se soltaram devagar. Gael subiu no carro e, pela janela aberta, esticou a mão. Stefani apertou, firme.

— Vai, Escorpião. E quando morder, morde bonito.

O carro arrancou com suavidade. Cacilda, ao lado do filho, olhava pela janela oposta. Não havia choro. Só uma espécie de alívio grave.

Na esquina, Stefani permaneceu parada, acenando em silêncio até o carro dobrar a curva.

Gael olhou para trás uma última vez, não para a cidade, mas para a amiga.

— Nunca mais. — murmurou.

E assim, mãe e filho partiram. Levando apenas o que prestava: um ao outro, uma amizade leal… e um futuro à espera.

2025, Início de Setembro.

A água deslizava em silêncio pelas pedras, refletindo o sol preguiçoso daquela manhã. Gael, sentado sobre uma toalha estendida sobre uma rocha, observava as gotículas evaporando da pele de Arkan sob o calor suave. Ambos estavam ali, nus e ainda úmidos, com os corpos cansados e satisfeitos, mas o coração de Gael parecia mais leve do que nas últimas semanas.

Ele havia contado tudo.

Os olhos de Arkan estavam fixos no rosto de Gael, respeitosos, mas carregando uma centelha de admiração — não por pena, mas pela força disfarçada que se escondia atrás da voz calma do professor.

— Então foi assim… — murmurou Gael, puxando a camiseta de volta ao corpo. — Minha mãe me salvou mais de uma vez. E agora… bom, agora sou eu que preciso cuidar do que sobrou.

Arkan se aproximou, segurando a mão dele com firmeza. Não disse nada. O silêncio entre os dois era mais eloquente do que qualquer frase motivacional ou juras românticas. Era o tipo de silêncio que acolhia.

Depois de alguns segundos, Gael respirou fundo e se levantou.

— Preciso ir. Prometi pro Mateus que ia almoçar com ele e com a tia Ruth. Hoje é o último dia dela aqui em Rancho da Serra. Ela volta pra Santo André amanhã de manhã.

— Vai sentir falta dela? — Arkan perguntou, vestindo a calça jeans escura.

— Vou… mas a presença dela só me lembra que a minha mãe não tá mais aqui. Talvez seja bom ficar só com o meu caos por enquanto.

Arkan soltou um meio sorriso.

— Você chama isso de caos… eu chamo de território. E eu gosto de território selvagem.

Gael riu pela primeira vez em dias. Um riso baixo, seco, mas sincero.

— Você é um problema, Arkan.

— Só se você tentar me consertar — devolveu ele, piscando.

Gael caminhou em direção à moto com passos firmes. Ao montar, olhou de relance para o vale abaixo da cachoeira.

Rancho da Serra respirava tranquila, alheia ao que estava se armando em seus bastidores.

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