PARINTINS - O AMOR ESTÁ NO AR - 10 - CONSELHO

Um conto erótico de Escrevo Amor
Categoria: Homossexual
Contém 2233 palavras
Data: 11/07/2025 02:55:14

O silêncio entre Cauê e Jonas pesava como um céu prestes a desabar. Tinham discutido dias antes, uma conversa atravessada que virou distância. Nenhum deles teve tempo de parar para remendar os laços rompidos — estavam imersos demais em responsabilidades maiores que o próprio coração. Cauê, focado nos ensaios intensivos para o aguardado lançamento do álbum do Garantido. Jonas, mergulhado nos bastidores do Caprichoso, apoiando o pai nas decisões estratégicas do boi rival. Era tempo de trabalho, de concentração, não de saudade.

A cidade já se agitava em expectativa quando, enfim, chegou o dia do lançamento. O Curral Lindolfo Monteverde, coração do Bumbá Garantido, se transformou em um templo de celebração. A estrela da noite seria Milena Alencar, que já havia ganhado o coração da torcida vermelha e branca. Ela vestia um traje deslumbrante, feito sob medida por artistas locais: um vestido vermelho escarlate adornado com penas longas e exuberantes, que se moviam como chamas ao menor gesto. Biojoias em madeira, sementes e escamas reluziam no pescoço e nos pulsos, ecoando a força da floresta. O cocar, imponente, trazia uma aura ancestral: penas rubras dispostas em semicírculo, sustentando uma peça central entalhada com símbolos indígenas.

Nos bastidores, Milena tremia. Seus olhos buscaram apoio em Eron, o marido, que segurou suas mãos com firmeza. César, o filho caçula, a abraçou com a leveza de quem acredita sem hesitar. Cauê, sério, apenas disse:

— Você nasceu pra isso, mãe. Não esquece quem você é.

Respirando fundo, Milena reuniu o que lhe restava de coragem. Quando as luzes se apagaram e o telão anunciou a abertura do evento, ela caminhou até o centro do palco com a elegância de uma rainha e a alma de uma guerreira.

A multidão irrompeu em aplausos assim que ela começou a cantar. Sua voz ecoou como um trovão quente, carregando a emoção de gerações. Era o anúncio oficial do novo álbum: "Garantido, o boi da alegria do povo", com 19 toadas cuidadosamente escolhidas para compor o espetáculo daquele ano. Músicas que não só emocionavam, mas também ditavam o ritmo e a estratégia da apresentação no Bumbódromo.

O presidente do boi, Ribeiro Fonseca, subiu ao palco após a performance e agradeceu ao público.

— O que vocês ouviram esta noite é motivo de orgulho. A masterização do álbum foi feita por uma equipe dos Estados Unidos, com tecnologia de ponta. Isso é o Garantido! Nosso som já faz inveja até às grandes produtoras. E isso é só o começo. Anuncio aqui a Festa Vermelha que acontecerá em Manaus e informo que, a partir de maio, os ensaios técnicos do Garantido acontecerão em Parintins e Manaus! — Sendo ovacionado pelos brincantes. — O contrário que coloque as fraldas!

O anúncio foi recebido com euforia. Mas, entre os fogos e aplausos, havia uma emoção mais silenciosa. Cauê, ao lado da mãe, viu no palco os principais itens que fariam parte da disputa no festival: o Apresentador em sua oratória precisa; a figura irreverente da Tripa do Boi; a Porta-Estandarte girando com elegância; o Amo do Boi em pose firme; a doce Sinhazinha da Fazenda; a altiva Rainha do Folclore; a poderosa Cunhã-Poranga; o misterioso Pajé, com sua presença mística; e a Galeria, a torcida, que gritava com alma.

Conhecia cada um deles. Sabia de suas histórias, dores e sacrifícios. Por isso, as lágrimas que desceram não eram de tristeza, mas de pertencimento. Aquela noite não era apenas o marco de um novo ciclo do Garantido, era também a constatação de que, apesar das dores do coração, o amor pelo boi falava mais alto.

E, mesmo sem saber, Jonas, lá do outro lado da cidade, assistia tudo pela transmissão ao vivo, em silêncio. Quando Milena cantou a última toada, ele tocou os próprios lábios e murmurou.

— Ela é incrível... assim como o filho dela.

***

Alguns dias depois, era a vez do Caprichoso tomar o centro da cena. O tema do festival daquele ano ecoava grandioso: "Amazônia, o templo do mundo". Sob o céu estrelado de Parintins, a arena parecia respirar junto com os corações ansiosos dos brincantes. E foi a inconfundível voz de Sérgio Queiroz, o Levantador de Toada do Caprichoso, que deu início à celebração. Mesmo com anos de experiência, Sérgio trazia no peito o nervosismo dos estreantes. Aprendera ao longo da carreira que aquelas borboletas no estômago não eram sinal de fraqueza — mas de respeito pelo palco e pela cultura que representava. Sentir-se assim significava que ainda estava no caminho certo.

Nos bastidores, Otaviano Benevides, presidente do bumbá, observava tudo com a tranquilidade de quem sabia que havia feito o dever de casa. Toda a preparação estava em dia: cronograma cumprido, logística organizada, e cada detalhe alinhado. Naquela semana, ele estivera em uma reunião decisiva com o Governador do Amazonas, a Prefeitura de Parintins e Ribeiro Fonseca, o presidente do Garantido. Ali, definiram oficialmente o calendário do festival e os ensaios de cada bumbá. Embora a rivalidade fosse intensa, o respeito entre as partes sempre vinha em primeiro lugar.

No centro do espetáculo, um dos pilares do sucesso era a apresentação milimetricamente ensaiada. Um show sem defeitos. Nos bastidores, Jonas e Marcílio, produtor e diretor de artes do Caprichoso, acompanhavam tudo em silêncio. Haviam passado semanas escrevendo roteiros, desenhando estratégias e revisando cada quadro com perfeccionismo obsessivo. Debateram com todas as equipes, madrugaram em salas apertadas, improvisaram soluções diante dos obstáculos. E agora, todo aquele esforço ganhava forma nos aplausos e nas vozes do povo, que já cantavam de cor as novas toadas.

— Você está bem? — Perguntou Marcílio, ao notar Jonas com os olhos vagando pelo nada.

— Sim. — Respondeu, com um sorriso contido. Vestia uma roupa simples de staff — nada parecido com os figurinos de seus tempos como dançarino —, mas ainda assim, trazia no peito a mesma emoção. O amor pelo Caprichoso não tinha diminuído. Apenas mudara de forma.

Marcílio o olhou com sinceridade antes de falar:

— Cara, a gente conseguiu. Você fez um trabalho incrível, Jonas. Fiquei muito feliz de trabalhar contigo. Eu sabia que aquelas fofocas não eram verdade.

Jonas o abraçou, lutando contra a emoção que ameaçava transbordar.

— Valeu, cara. Eu que agradeço o voto de confiança.

A festa seguiu como se o roteiro tivesse sido escrito por mãos encantadas. Sem atrasos, falhas ou tropeços. Cada item entrou na hora certa, cada efeito visual funcionou como planejado. Era como se o Caprichoso estivesse em sintonia com algo maior — com a própria floresta viva que inspirava o tema.

Ao fim, sob uma chuva de aplausos e confetes azuis, Otaviano Benevides subiu ao palco. Seu sorriso irradiava confiança e orgulho. Pegou o microfone e olhou para a multidão que vibrava nas arquibancadas.

— É isso, meus amigos! Que o contrário se prepare. Este ano, o Caprichoso vai passar por cima como um rolo compressor! — disse, arrancando gritos da plateia. Em seguida, caminhou até o boi, imponente no centro do palco, e lhe beijou a testa, bem ali onde brilhava uma estrela amarela.

***

Depois de semanas intensas entre ensaios, compromissos e conflitos, Jonas só queria dormir. Largou a mochila no chão do quarto, chutou os tênis para um canto e se jogou na cama, ainda com a roupa do dia. O corpo, cansado, afundou no colchão, e, antes que pudesse pensar em qualquer coisa, caiu naquele estado confuso entre o sono e a vigília — onde o real e o sonho se misturam.

Foi então que ouviu uma risada. Familiar. Inconfundível.

Abriu os olhos de súbito.

Ali, parado diante das fotografias coladas na parede do quarto, estava Rafael.

— Uma visagem! — Exclamou Jonas, levantando-se num pulo. O coração batia descompassado e as pernas ameaçavam ceder.

— Visagem? Tá doido, bestão. — Disse Rafael com aquele tom calmo que sempre teve, aproximando-se com um sorriso e envolvendo Jonas num abraço caloroso. Mas Jonas o afastou, perplexo.

— Não. — Balançou a cabeça, dando um passo para trás. — Tu morreu num acidente de carro.

— Eu sei. — Respondeu Rafael, sem perder a serenidade do olhar.

Ele estava igual. Ou quase. Os cabelos lisos e negros como a noite sem lua desciam como uma cascata até quase a cintura, brilhando sob a luz fraca do abajur. Contrastavam com a camiseta preta que delineava seu tronco firme e esguio. Os traços fortes do rosto, o maxilar bem definido, o olhar intenso — tudo nele parecia carregado de uma ancestralidade que o tornava mais do que humano. Rafael não era só lembrança. Era símbolo. Era lenda. Para muitos, um Pajé inesquecível do Caprichoso; para Jonas, o amor que nunca se foi.

Jonas ainda tremia. Sempre desejou revê-lo, mas não imaginava que o reencontro viria com tanto medo — medo de perder de novo, medo do que era real e do que não era.

— Eu sei que estou morto, Jonas, mas tu não tá. — Afirmou Rafael, firme. — Precisa viver. Aproveitar a vida sem precisar de validação de ninguém. Tudo bem, eu escolheria alguém do Garantido? Claro que não! Preferia vestir a saaripé cheia de tucandeiras. — Sorriu, com aquele jeito debochado que misturava humor e carinho. — Mas se é ele que te faz sentir vivo e especial, ninguém pode te impedir. Nem eu. Nem teu pai. Nem torcedor nenhum.

Jonas se aproximou, devagar, e descansou a cabeça no ombro de Rafael. O outro o recebeu com ternura, passando os dedos por entre seus cabelos.

— Tô com medo. — Sussurrou.

— Essa é a graça de estar vivo, curumim. — Respondeu Rafael, acariciando seus fios. — Olha só, medo de se apaixonar...

— Eu sinto tua falta. — Confessou Jonas, a voz embargada.

— Eu sei que sente, curumim. Mas não precisa frear tua vida por mim ou por ninguém. Tu tem um dom. Aproveita.

Jonas se afastou, secou as lágrimas com as costas das mãos, e encarou Rafael com um pedido no olhar.

— Tu pode fazer um último favor?

— Sempre.

— Dança comigo?

Jonas pegou o celular e colocou a música "Ritual do Pajé" — uma toada que ambos haviam co-coreografado no último festival que viveram juntos. Assim que o som ecoou, os dois se posicionaram.

A dança começou com passos firmes, pés descalços tocando o chão com reverência e precisão. Os braços se erguiam para o céu como quem invocava os ancestrais. Os corpos se moviam em giros e impulsos ritmados, como se cada gesto traduzisse uma prece, uma memória, um chamado espiritual. Os movimentos eram intensos, telúricos, carregados de símbolos — o chamado da floresta, o poder das ervas, a força da cura.

Os dois dançavam em perfeita sincronia. Um reflexo do outro. Como se ainda fossem um só.

E então, quando a música cessou, Jonas acordou. Sentou na cama ofegante, o peito apertado, os olhos marejados.

Não sabia dizer se foi um sonho, um sinal ou uma despedida.

Mas sentiu, no fundo do peito, que Rafael tinha voltado — nem que fosse só por aquela noite — para lembrar que a vida continua. E que amar também é deixar ir.

Jonas pegou o celular com as mãos trêmulas e tentou ligar para Cauê. Nenhum sinal. A ligação caiu direto na caixa postal. Frustrado e sem opções, decidiu fazer o que Rafael havia sugerido: encarar seus erros de frente. Respirou fundo, tomou coragem e foi até a casa de Cauê.

O peito batia forte como um tambor em ritmo de guerra. Cada passo até o portão parecia mais pesado que o anterior, mas ele seguiu. Tocou a campainha e esperou. Um garoto magro, de óculos de grau e expressão fechada abriu a porta. O rosto era conhecido. Jonas reconheceu César, o irmão mais novo de Cauê, mas fingiu não saber.

— Tudo bem, amiguinho. — Cumprimentou o adolescente, forçando um sorriso.

— Amiguinho, Jonas? Corta essa. — Rebateu César, com o olhar cortante.

Jonas ficou surpreso com a reação direta. César, apesar da pouca idade, exalava uma segurança desconcertante. Com a postura de quem estava sempre de prontidão, ele cruzou os braços, parecendo mais velho do que realmente era. Não era difícil perceber que o menino não simpatizava com ele.

Jonas respirou fundo, desviou o olhar por um instante e fitou a rua. Nunca se imaginou ali, no meio da Cidade Garantido. Se o pai soubesse, provavelmente teria um ataque.

— O Cauê tá aí? — Perguntou, tentando manter a voz firme, mesmo com os nervos à flor da pele.

— Foi pra Manaus. O Garantido vai se apresentar no Sambódromo da cidade. — Contou o garoto. — Vai atrás dele? Depois da burrada que você fez?

Jonas engoliu seco.

— Burrada? O Cauê te contou, né?

— Não precisou. Ele vive deixando o computador na cozinha. — Explicou César, dando de ombros. — Eu não tenho culpa se meus olhos vão parar nas mensagens que ele troca com o Henrique, o melhor amigo dele. Você chamou o cara pelo nome do seu ex. Que Deus o tenha, aliás.

A última frase veio com ironia e um levantar de sobrancelhas.

— E aí? Vai atrás do meu irmão? O Cauê é um cara durão, mas sofre como um condenado. Coisa de artista ou coisa assim.

Aquelas palavras atingiram Jonas como uma flecha. O peito apertou de novo, agora com o peso da culpa.

— Eu, eu vou. Obrigado, cunhado. — Disse ele, tentando sorrir, enquanto dava um tapinha amigável no ombro do garoto.

Subiu na moto com o coração ainda acelerado e partiu em direção à sua casa. Precisava se preparar. Tinha que encontrar Cauê. Precisava desfazer o mal-entendido, olhar nos olhos dele e pedir desculpas de verdade.

Sabia que o caminho até ali já fora difícil. Mas resolver os próximos obstáculos seria uma missão para o Jonas do futuro, o Jonas de agora só queria se acertar com Cauê.

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