PRÓLOGO
Adriano
"Você é incrível, Adriano, me diverti muito com você, mas sou muito velho para você, desculpa."
Como alguém termina com você porque você é muito novo para ela, sério? Beleza, ele tinha tipo uns cinquenta e eu vinte e três, porém o amor não tem limite e idade é só um número, né? Não é? Isso nem é o pior. Primeiro ele me fez cruzar a cidade para encontrar com ele em um restaurante caro na parte rica da cidade, me deu um puta de um buquê de rosas vermelhas, mano, real, essa merda é enorme, deve ter umas cem rosas aqui, sem mancada. Tudo isso para me dizer que acabou.
O Caio, meu melhor amigo gay, diz que é por conta dele ser diretor de um hospital grande, somos de classe social diferentes, talvez ele tenha razão. Quer dizer, até tenho meu pequeno — tá bom, micro — negócio; um dia vou ser o confeiteiro mais requisitado da cidade e depois do mundo. Aprendi com a melhor doceira do mundo, minha vó. Quando ela faleceu ano passado, me deixou seu livro de receitas e uma carta me mandando perseguir meu sonho.
Bem, acontece que ser doceiro nessa cidade não é tão simples e, como não tenho nenhum curso, não consigo emprego na área, o que me força a trabalhar em um call center marcando consultas para um plano de saúde e completo minha renda fazendo meus doces por encomenda.
Bem, o doutor bonitão me deu um pé e agora estou no terceiro ônibus segurando um buquê de "cem mil" rosas, indo encontrar o Caio, o gay, e o Luan, meu melhor amigo hétero. É, eu sei, é muita loucura ter dois amigos, um hétero e outro gay — ah, e eles se detestam! Luan é um pouco homofóbico e machista e o Caio, bem, o Caio é militante e drag nas horas vagas. Pois é, você deve estar se perguntando como esses dois polos de um ímã se falam. Pois é, minha culpa.
Na escola eu sofri muito bullying por ser, você sabe, viado, e o Luan estudava comigo. Ele sempre foi um hétero lindo, maravilhoso e grande — grande mesmo, parece um armário. Enfim, ele tinha tudo para ser mais um dos meus algozes na sala, porém ele, assim como eu, é um nerd fã de anime e coisas geeks em geral. Daí um dia ele me viu lendo Berserk, mangá japonês, e se aproximou. Sua mãe é excessivamente evangélica, dessas que queimam qualquer coisa do filho que o pastor diga ser do tinhoso. Por conta disso, meu pobre amigo não podia consumir nada de animes e afins. Como na escola ela não tinha como supervisioná-lo, passei a fornecer cultura para ele e isso nos fez virarmos melhores amigos na escola.
Já o Caio, bem, esse foi interessante. No auge da minha adolescência, meu pai me deu um celular e com ele conheci o "fabuloso mundo dos aplicativos". Um dos primeiros caras com quem conversei foi o Caio. Marcamos um encontro e eu até tive que aprender a fazer a chuca — experiência meio traumática e que me levou a nunca mais pensar em fazer isso de novo. Na casa dele tivemos um momento muito estranho, era meu primeiro date e estava em completo pânico, sem saber o que fazer. E para completar, era o primeiro dele também. Depois de muitas gafes e de um beijo bastante esquisito, com muito dente e língua, e um pouco de baba, a coisa azedou de vez. Já estava pensando em uma deixa para fugir dali quando ele pôs o maravilhoso e recém-saído na época Reputation da Taylor Swift. Acabei ficando para ver o álbum todo e, nessa, nosso assunto ficou mais leve e, quando vi, no final do date, já éramos BFF's.
Pois é, a primeira vez que juntei esses dois foi no Sana, o maior evento de cultura pop da minha cidade e um dos maiores da América Latina. Tudo ia bem até ver que o Caio tinha ido de Serena de Sailor Moon. O Luan ficou muito incomodado com, segundo ele, a viadagem exagerada do Caio. Os dois bateram boca e desde então eles são inimigos declarados. Toda vez que eu tentava juntar os dois em algum lugar era sempre a mesma coisa, um mundo de ofensas veladas indo e vindo, porém os dois nunca dizem não quando chamo para algum lugar. Acho que depois de um tempo eles até devem ter começado a gostar de se insultar, porque o Luan já até foi comigo em uma festa onde o Caio estava montado. Enfim, por alguma razão esses dois se toleram para estarem comigo e eu gosto de estar com eles, então sou obrigado a aceitar ser o mediador dessa guerra fria toda vez.
É o que eu ganho por ter gostos tão diversos e diferentes ao mesmo tempo, tipo minha playlist vai do pagode ao pop em menos de três músicas.
Existe um bar que fica no meio do caminho entre a casa do Caio e a casa do Luan. Esse lugar virou nosso point para que nenhum dos dois se sentisse privilegiado — não entendo também, é loucura deles, só que o lugar é legal e LGBT friendly, então amo. Basicamente é uma casa que o dono transformou em um bar, na garagem, e é dividida em três partes: a entrada tem uma mesa de sinuca e sempre tem gente na calçada e na rua; a parte de dentro que já tem umas luzes e normalmente é onde ficam os DJs quando tem; e, por fim, o quintal, que é um lugar onde a galera gosta de curtir um cigarrinho de artista e onde ficam a maior parte das mesas. O que mais gosto daqui é que eles fazem noites temáticas e hoje é a noite dos anos 2000. Está tocando "Daqui pra Frente" do Nx Zero — adoro essa música.
Não é preciso procurar muito, só de chegar no quintal escuto meus melhores amigos em uma discussão acalorada. Caio tem uma opinião meio preconceituosa sobre os emos; ele diz que todo emo é gay, só que acontece que o Luan sempre foi meio emo incubado e, quando entram nessa pauta, a cachorrada dos dois é certa.
— Oi, menines! — uso pronome neutro, pois é a única coisa no mundo em que os dois têm a mesma opinião, contrária no caso. — Tá, Caio, nem todo emo é gay e o Luan é hétero, já vi ele ficando com mais mulher do que posso contar nos dedos da mão. E Luan, você não pode dizer que maquiagem é coisa de gay quando você sabe que emos também costumam usar maquiagem.
— Sombra de olho não é maquiagem! — Luan protesta.
— E como você acha que eles passam sombra nos olhos do príncipe, usando magia? — Caio provoca.
— Estella, me salva! — peço um copo para a garçonete cacheada que sempre nos atende; só ela atura esses dois.
— E o que foi, o doutor não te deu um trato antes de te deixar aqui, não? — Caio debocha.
— Nem todo mundo é viciado em sexo que nem você, Caio — Luan rebate.
— Ele me deu um fora.
— Mas e esse buquê? — Caio está confuso e nem posso culpá-lo, até eu estou um pouco.
— Você devia ter deixado no carro dele — Luan diz indignado, pois ele sempre foi contra eu sair com o doutor.
— Ele não veio me deixar — os dois ficam em silêncio me encarando abismados.
— Que cuzão! — Stella entrega meu copo deixando seus dois centavos de opinião, depois sai para atender outra mesa.
— Espera, você cruzou a cidade com essa merda? — Caio parece ainda mais surpreso agora.
— Não são meio que dois ônibus de lá para cá? — completa Luan.
— Dois terminais e três ônibus, com direito a dois deles lotados — viro minha cerveja de uma vez, pois estou precisando ficar bêbado.
— Ele te deu um fora e ainda te fez cruzar a cidade com um buquê de rosas. Nossa, pelo menos ele é romântico — Caio diz rindo.
— Por que você não jogou essa merda fora? — Agora que o Luan falou, foi que isso passou pela minha cabeça.
— Ai, eu vou morrer sozinho, sou muito trouxa! Pensei que ele ia mesmo me pedir para morar com ele, já tinha uns seis meses que estávamos saindo e eu meio que comentei com ele que meu roommate estava saindo fora e que eu começaria a morar só. Nossa, sou muito burro.
— E agora, o que você vai fazer? — Caio pergunta justo em relação à casa.
Não faço ideia, a casa da vovó é enorme e muito cara de manter sozinho. Pois é, não herdei só o livro da vovó, ela deixou a casa para mim. Como minha mãe é filha única e já tem a casa dela e do meu pai, ela resolveu atender esse último pedido da vovó e me deu a casa.
— Foda. — A expressão favorita do hétero quando não sabe o que dizer.
— Luan? — Me viro para meu amigo fazendo uma cara de cachorro que caiu do carro da mudança.
— Nem vem, Adriano, você sabe que minha mãe é capaz de abrir até o mar em dois para me arrastar de volta para casa.
— Caio?
— Amigo, eu amaria morar com você, você sabe disso, mas acontece que ser drag não dá dinheiro e no momento não posso sair da casa da Khallice — ele chama a mãe dele de Khaleesi desde que assistimos a
Game of Thrones.
— Ai, eu estou perdido — colo as mãos na frente do rosto.
Um carinho de um metro e meio, branco feito a neve, com uma calvície miserável, nem para OnlyFans tenho jeito, pelo menos enxergo bem. Luan tem uma teoria de que Deus me deu olhos verdes por pena. Filha da puta, meu amigo, não Deus. Sou a última pessoa do mundo que alguém pagaria para ver pelado, a fila dos dotados, essa deve ter passado direto sem ver. Pelo jeito vou passar o resto da minha vida trabalhando em um call center e fazendo a felicidade das festas de aniversário do bairro.
— Adriano, você bem que podia alugar. Tem dois quartos vagos e você mesmo disse que a casa é enorme e tem piscina.
— Não quero morar com estranhos e ai, meu Deus, tem a droga da piscina! Vocês sabem como é caro manter uma piscina, acho que vou secá-la.
— Se você fizer alguma coisa com a minha piscina, eu te mato! Você acha que eu consigo manter minha cor de chocolate sem meu sol na beira dela? — Meus amigos amam aquela piscina.
— A gente te ajuda com a piscina — Luan diz, também sem querer abrir mão da piscina. — Já tenho umas duas minas para levar lá.
— Pelo jeito ele quer transformar a piscina em um aquário enchendo de piranhas — Caio solta seu veneno.
— Desculpe, o flamingo queimado acabou de falar alguma coisa.
— Isso foi meio racista, amigo — digo para o Luan, que se desculpa sem olhar para o Caio. Temos um trato: ele não falar nada racista com o Caio e o Caio não pode fazer piadas de abandono parental com o Luan.
— Babaca! — Caio rebate.
— Viado!
— Vocês querem parar de se matar e me ajudar a pensar, por favor?! — digo e eles cessam as ofensas.
— Madrinha — Caio segura meu rosto com as mãos —, você levou um fora, vamos trabalhar nisso hoje e amanhã a gente pensa no que fazer.
— O pavão tem razão, Adriano, você tem que beber. — Eu odeio minha vida! Minha cabeça cai sobre a mesa.
— Stella! — Meus dois amigos a chamam ao mesmo tempo.
Eu sou um cara pequeno e não sou dos mais fortes para bebida, se é que me entende. Então comecei tomando cerveja, mas aí Luan inventou de tomarmos algumas doses de tequila, o que já foi por si só uma péssima ideia. Depois de uma hora, já nem lembrava mais que o doutor tinha terminado comigo. O problema era que não conseguia mais lembrar de tanta coisa assim. Para completar, tal hora — digo isso, pois não faço ideia de que horas eram — apareceu uma garrafa de Ypióca Guaraná na minha mão. Isso foi minha perdição. A última coisa que me lembro é de ter dançado "Baba" da Kelly Key e acho que fui eu quem pediu para tocar.
Eu odeio minha vida!
Acordei, mas não devia. Meu quarto está girando, meu despertador está tocando lá no fundo da minha mente. Por que eu tenho que beber, sendo que tenho que ir trabalhar? Bem, tenho que estar no trabalho às dez e são oito, que maravilha, tenho tempo, pelo menos isso. Levanto amaldiçoando até a quinta geração dos meus amigos por terem me feito beber feito um maluco e, por falar nisso, como foi que vim para casa?
— Bom dia, flor do dia! — Odeio que o Caio parece nunca sentir nada quando bebe.
— Como eu cheguei em casa? — estou segurando o celular com a cabeça apoiada no ombro, pois não tenho forças para manter os braços altos.
— Como assim, amigo? O Ykaro te levou — ele diz como se não fosse nada demais, só que não faço ideia de quem é Ykaro.
— Quem? — Antes que ele responda, Luan começa a me ligar também.
— Gente, onde eu estou? — ele pergunta quando o coloca junto na chamada que já estava com Caio.
— Você deve estar na casa da Stella, já olhou ao redor para ver se reconhece o quarto? — Como o Caio faz isso?
— De novo, não! — Luan lamenta. Ele e a Stella têm uma história de se pegarem sempre que ele fica louco de cachaça. Não sei por que isso acontece, mas ele se arrepende toda vez por conta da culpa cristã. Tipo, enfiar a língua na boca das minas ele pode, mas o pinto tem que continuar nas calças. Eu sei, confuso, né?
— Vai começar o muro das lamentações — Caio está revirando os olhos e nem preciso vê-lo para saber que está. — Talvez se você soubesse manter seu pintinho dentro das calças não fosse se sentir como uma jezebel toda vez que bebe.
— Vai se foder, Caio! Meu pau é enorme e você só diz isso porque nunca vai chegar nem perto dele.
— Gente, sério, por favor, vamos focar! Quem é Ykaro? — Tento voltar para o meu problema inicial, mas quando chego na cozinha tomo o maior susto da minha vida ao ver um homem alto, moreno, com um braço tatuado, cabelo curto e só com uma bermuda bem curta, "BEM CURTA".
— Bom dia! — Ele me cumprimenta erguendo minha caneca de café personalizada do Mestre Yoda, dizendo "que a força do café esteja com você".
— Por que tem um estranho semi nu na minha cozinha tomando café na minha xícara? — pergunto para meus amigos enquanto volto correndo para o meu quarto.
— Deve ser o Ykaro.
— Ah, isso você lembra, né, Luan? — Luan se defende.
— Gente, foco! — brigo com meu amigo da amnésia seletiva.
— Madrinha, cê é maluca? Você convidou o bofé para morar com você ontem. — Como que é, eu fiz o quê?
— É, você disse que precisava de alguém e a Stella falou que o barman novo não tinha onde ficar e que ele era novo na cidade.
— De onde ele disse que era mesmo? — Caio conversa com Luan como se não fosse um absurdo eu ter colocado um completo desconhecido na minha casa.
— São Luís, ele nem queria aceitar, mas você insistiu e disse que se ele não aceitasse você teria de vender a casa da sua vó. — Eu achei meio exagerado, a calma do Luan está me irritando.
— Não, eu não convidei um estranho para morar comigo. — Convidei? — Sim!
— Parem de falar juntos, isso é estranho, vocês se odeiam, lembra? Caio, acho que você é uma puta barata e o Luan tem certeza que você fez um pacto com o mochila de criança para acordar tão cedo e sem ressaca. É claro que você vai pro inferno por ser gay. Pronto, eles começam a discutir e param de se unirem contra mim, como tem que ser. — Vocês dois são péssimos amigos e eu odeio vocês.
Desligo o telefone e deixo que eles continuem brigando sozinhos na chamada. Agora preciso expulsar esse estranho da minha casa, mas como eu faço isso? Já dei meu almoço para um estranho na rua outro dia só porque não consigo dizer não para ninguém. Odeio conflitos. Meus pais mesmo acham que "deixei de ser gay" quando terminei o terceiro ano. Minha mãe disse que era uma fase e que iria passar e eu meio que não a desmenti. Eu moro só e sou independente, me dá um desconto.
— Oi, Ykaro, tudo bem? — Não sei o que é mais difícil, fingir um sorriso ou continuar de pé.
— E aí, fiz um suco de laranja para você, vai ajudar com a ressaca — ele tem uma voz rouca e forte. Foco, Adriano!
— Obrigado, eu tenho que trabalhar e não sei como vou conseguir, minha cabeça vai explodir — digo.
— Aqui, Neosaldina sempre me ajuda com dor de cabeça de ressaca — ele não está facilitando.
— Valeu, olha, a gente tem que conversar sobre isso — escolho cada palavra com o máximo de cuidado possível.
— Sim, olha, eu sei que você disse que não tem mesmo problema, só quero que saiba que agradeço muito, prometo que vai ser só por uns meses, só até as coisas se assentarem — ele está tão feliz e aliviado, não posso expulsá-lo, sou um covarde de merda.
— Que isso, eu preciso mesmo de ajuda com as contas por aqui — estou com um sorriso de uma gay cansada e covarde, sou uma vergonha para minha comunidade.
Depois de comer, tomei um banho que não ajudou muito e vou para o trabalho, de ônibus. Pelo menos não moro tão longe do trabalho. No caminho, alguns flashes de ontem à noite começam a retornar e sim, eu sou um bêbado desses que paga mico. Puxo o telefone do bolso e vou no grupo que tenho com os traíras.
"Odeio vocês, me deixaram cantar em cima da mesa?"
"Sim, mas você cantou direitinho, Madrinha."
"Falou com Ykaro?" — Luan pergunta.
"Não."
"Pode fazer o pix, piranha, eu sabia!" — Caio é um infeliz.
"Droga, Adriano, passa a chave aí, viado!"
"Vou comprar uma calcinha nova com o dinheiro que você vai me mandar e vou dizer à vendedora que foi meu macho quem me deu."
"Vai se foder, seu arrombado, só vou mandar porque tenho palavra!"
"Gente, vocês querem parar? Eu tenho um estranho que convidei na minha cozinha e ele está usando um calção bem curto e tem um volume imenso e agora estou me odiando por ter reparado."
"Que nojo!" — Luan coloca umas três figurinhas indicando seu nojo.
"Sabia, amigo, desculpa, mas meio que você me deve dez reais." — Odeio apostar com Caio, ele sempre ganha.
"Homens não são objetos, vocês sabem disso, né?" — Luan fica puto quando somos muito gays com ele.
"Falou o objeto da Stella!"
"Vai se foder, Caio!"
"Eu sei que você quer me foder com seu pintinho gato, mas não vai dar, o caminhão do lixo só passa em dia ímpar." — Eles não conhecem limites.
"Quer saber, estou sem tempo para vocês agora, estou chegando no meu trabalho agora, te amo, Caio, e Luan, te considero pacas."
Trabalhar com ressaca com certeza foi a forma que Deus encontrou de punir os pobres pecadores como eu. Se você nunca trabalhou em um call center, parabéns, você venceu na vida. Eu não odeio, até porque é isso que paga a maior parte das minhas contas, mas queria estar fazendo meus doces e tendo sucesso no meu próprio negócio, mas, ao invés disso, estou aqui atendendo chamadas de pessoas doentes querendo marcar consultas de dez às quinze e trinta.
— Univida, bom dia, meu nome é Adriano, como posso te ajudar?
Tenho um intervalo de trinta minutos, eu sei, sou privilegiado, o normal é vinte, mas a impressão é que meu trabalho visa o bem-estar dos funcionários e sim, estou sendo irônico caso não tenha notado. Trabalho no centro da cidade e normalmente tiro meu intervalo meio-dia e meia. Gosto de almoçar em uma padaria conhecida na Praça do Ferreira, outro lugar conhecido na minha cidade. O Luan trabalha na loja de artigos gospel de um dos irmãos da igreja dele. Ele também faz faculdade de contabilidade e já era para estar se formando, mas sua mãe era contra faculdades até o início deste ano, quando ele finalmente conseguiu convencê-la. Ele tem 23, assim como eu, mas, diferente de mim, sua mãe é dominadora ao extremo, não sei como ele consegue sair com a gente — tá, eu sei, ele mente muito para ela.
— Odeio aquele viado! — Amo que ele sempre chega antes de mim e já pede o que eu vou comer, assim não perco tempo esperando, são trinta minutos, cada um deles conta.
— Você odeia todos os viados, Luan.
— Não odeio você.
— Então, o que a santa mãe disse quando você chegou em casa essa manhã? — Retiro da igreja, lembra? Verdade, meu amigo faz parte de um seleto grupo de desviados da igreja que combinam mentiras juntos para enganar suas pobres famílias cristãs.
— Mentir para mãe não é pecado?
— Transar fora do casamento também é. Parece que não me faltam motivos para ir para o inferno — ele vai passar a semana se martirizando.
— Luan, sério, você precisa parar de ouvir seu pastor.
— Então, vai falar com o Ykaro? — Ele muda o assunto para justo o que não quero falar.
— Não consigo, mas se você...
— Nem vem, ele é legal e já marcamos de ver o jogo do Fortaleza juntos na quarta.
— Quando foi que vocês ficaram tão amigos? — Engraçado que o Luan é totalmente contra novas amizades.
— Bem, deixa eu ver, foi logo depois de você convidá-lo para morar com você e fritar no meio de todo mundo que ele era seu novo amigo "legal" — ele bota aspas no "legal".
— Eu quero morrer!
— Não devia beber tequila, Adriano.
— Foi você quem me deu, seu cretino! Bem, o Caio disse que nunca confie nos héteros.
— Engraçado você dizer isso.
— Oi, o que eu perdi do Luan? — Começo a ficar preocupado.
— Você mora com um hétero agora.
— Não.
— Sim, ele é hétero, maranhense, por algum motivo torce para o Fortaleza, mas quem sou eu para questionar seu bom gosto, né?
— Futebol é coisa do inimigo.
— Te odeio! — ele pega minha coxinha e dá uma baita mordida.
— Não come meu almoço, troglodita! — ele apenas ri da minha incapacidade de recuperar meu almoço das suas mãos grandes.
— O cara é legal e a Stella é amiga dele, dá uma chance para ele e você também precisa de alguém para te ajudar com as contas.
— Odeio quando vocês estão certos — Luan tem razão, preciso do tal Ykaro.
— Claro que estou, ele até deu aquela garrafa de Ypióca para você.
— Ahhhhh! Agora faz sentido de onde a danada saiu.
O call center te vende a ideia de trabalho menor, tipo são só seis horas de trabalho, o que não te contam é que as seis horas de atendimento parecem mil, real, a hora não passa. Mesmo tendo que atender um telefonema depois do outro, o trabalho nunca acaba. Meu supervisor também é o satanás na terra; ele deu em cima de mim na festa de fim de ano e agora fica fingindo que nada aconteceu, porém não perde as chances de me ferrar. Passei os melhores dias do carnaval trabalhando, minha escala é a pior da bateria inteira. Pelo menos tenho alguns bons amigos no trabalho, tem a Alana, uma dona de casa que se entediou e arrumou um emprego — não é bem assim, mas gosto de tirar uma onda com ela falando isso.
— Senhora, infelizmente não temos agenda para esse médico, mas temos para o doutor Bruno.
— Quero falar com seu supervisor! — Eles sempre acham que vão resolver as coisas gritando com a gente.
— Só um instante, senhor — me viro para minha amiga na cabine do lado depois de colocar essa mala na espera. — Alana, tá de ressaca e essa cretina tá gritando comigo porque quer o doutor Alan e não o Bruno.
— Passa para cá — a gente se ajuda muito quando temos esse tipo de cliente, ela é ótima para pôr os folgados em seus lugares.
— Obrigado — agradeço depois que a cliente desliga e tenho a sorte de não ter outra chamada em seguida.
— Bebeu demais com o doutor bonitão?
— Não, bebi para esquecer o doutor bonitão.
— Eita, filhote, sinto muito, mas você sabe como é, homem é que nem biscoito, vai um, voltam dezoito.
— Olha, não sei onde você aprendeu isso, mas suas contas parecem meio erradas — Alana me diverte muito, em partes ela é uma das razões pelas quais não me enforquei com o fio do meu headset ainda.
Saio do trabalho desejando minha cama mais do que tudo no mundo, coloco Charlie Brown Jr. no fone e sigo para casa me arrastando. É um esforço gigante não dormir no ônibus. Uma das poucas coisas que realmente gosto no meu trabalho é meu horário, não tenho que acordar tão cedo e sempre tenho o resto da tarde e a noite livre, mas hoje estou tão cansado que só consigo passar na padaria do seu Manoel para comprar dois sonhos e um pedaço de bolo de milho — o melhor do mundo.
Ao entrar em casa, tomei um susto grande, por um segundo acho que entrei na casa errada. Minha casa nunca esteve tão limpa, tudo está organizado e tem um cheiro incrível vindo da cozinha. Ykaro não só arrumou a casa toda como fez uma lasanha e deixou um pedaço para mim no micro-ondas com um bilhete de agradecimento. É, vou ter que ficar com ele como novo roommate, seu mente suja, ele é hétero.