O acidente que mudou a minha vida - Cap. 3

Um conto erótico de Pedro
Categoria: Gay
Contém 4388 palavras
Data: 06/07/2025 16:31:32
Assuntos: Gay, Bissexual, Casado, dúvida

O Uber chegou rápido.

Desci do prédio, entrei no carro e fechei a porta com calma. Era um sedã preto, limpo, silencioso. Cumprimentei o motorista com um aceno leve, coloquei o cinto e, antes mesmo do carro dar a partida, desbloqueei o celular e digitei:

"Peguei o Uber agora. Tô a caminho."

A mensagem foi entregue imediatamente. O motorista ligou o ar, ajustou o espelho retrovisor e colocou uma música ambiente, suave, feita pra preencher o silêncio.

Poucos segundos depois, chegou a resposta:

Daniel:

"Tô saindo agora. Caminhando. Moro aqui bem perto da orla."

"Se você chegar antes, se acomoda num lugar bacana. Não precisa me esperar na frente. Se eu chegar antes, faço o mesmo."

Logo em seguida, veio o áudio. Toquei o ícone com o polegar e levei o celular ao ouvido.

"Fala, Pedro. Eu moro aqui bem próximo, sabe? Dá pra ir andando tranquilo. Tô indo agora. Mas se você chegar antes, se acomoda, viu? Escolhe um lugar bacana, sem pressa. Não precisa me esperar lá na frente, não. Se eu chegar antes, eu faço o mesmo. A ideia é ficar à vontade."

Dei um leve sorriso, como quem se sentia entendido sem precisar explicar nada. A voz dele tinha uma calma acolhedora, um tom sem pressa, quase íntimo. E aquilo... me trouxe um tipo de conforto estranho. Como se ele soubesse que eu precisava justamente disso: leveza. Espaço. Liberdade.

Respondi:

"Fechado. Tô chegando já, o trânsito tá fluindo bem."

Depois guardei o celular no colo e deixei o corpo afundar um pouco no banco do carro.

Mas a viagem, apesar de curta,15 minutos, talvez menos, parecia se arrastar.

A cidade passava devagar do lado de fora da janela: fachadas de edifícios, farmácias, mercados fechados, semáforos mudando de cor, pedestres atravessando. Luzes de postes se refletiam nos vidros dos carros ao lado. Tudo tão normal.

Exceto por dentro de mim.

Eu estava ansioso. E por um instante, me peguei sorrindo sozinho, julgando o próprio reflexo no vidro, como se fosse um adolescente indo pro primeiro encontro. Ridículo, pensei. Mas era isso.

Casado. Pai de dois meninos. Diretor de empresa. Um cara centrado, com a vida minimamente estruturada, que sempre soube o que queria, o que fazia. E agora, ali, sentado no banco de trás de um Uber, com o coração acelerado e os pensamentos girando feito roupa em máquina de lavar.

Eu não sabia o que estava fazendo. Nem o porquê.

Não era só a curiosidade. Não era só pela conversa. Não era só por Daniel. Era por tudo. Por algo que vinha de dentro, uma inquietação que nasceu naquela madrugada do acidente e nunca mais desapareceu. Cresceu em silêncio. E agora... estava aqui comigo. No carro. No peito. Nos pensamentos.

Sempre fui um homem de estrutura. Gosto de rotina, de saber onde piso. Não sou de improvisos. Mas essa situação estava completamente fora da curva. Me desconstruía devagar. E o pior: eu deixava.

A música ambiente seguia baixa, preenchendo os cantos do carro com notas suaves. O motorista parecia entender que aquele era um trajeto que não precisava de conversa.

E eu aproveitei o silêncio.

Porque, no fundo, sabia: não era só um encontro com Daniel. Era, também, um encontro comigo mesmo.

Quando olhei novamente pela janela, reconheci os contornos familiares da orla. O mar logo ali. O Barravento à vista, com suas luzes quentes e seu movimento sereno de fim de domingo.

A noite estava só começando.

E eu... ainda não fazia ideia do que estava prestes a acontecer.

O Uber parou suavemente em frente ao restaurante. Agradeci ao motorista com um aceno leve, desci e respirei fundo antes de seguir para a entrada. O Barravento já fazia parte do meu repertório de lugares conhecidos, um dos restaurantes mais tradicionais da orla, de frente para o mar da Barra, com uma vista que sempre impressionava, mesmo para quem morava em Salvador há anos.

Entrei e caminhei com passos lentos, como se ainda precisasse absorver a decisão de estar ali. O ambiente estava cheio, mas não lotado. A iluminação era suave, misturando tons âmbar das luminárias com os reflexos prateados da lua cheia no céu escuro. O som do mar, embalado pela brisa noturna, chegava até mim como um sussurro tranquilo, quase hipnótico e, ao longe, via o farol da Barra, um cartão postal iluminado que dava vida à paisagem da noite.

Olhei ao redor com atenção e desci até a parte inferior do restaurante, onde grandes janelas de vidro se abriam para o oceano. Ali o espaço era mais arejado, mais íntimo. Encontrei uma mesa discreta, um pouco afastada das outras, quase encostada no canto direito.

Sentei-me de frente para a janela, apoiei os cotovelos na mesa e, por um instante, apenas fiquei ali observando a luz prateada da lua dançando sobre as ondas, o brilho do farol da Barra ao longe, e sentindo o ar fresco da noite invadir os sentidos.

O garçom chegou com cordialidade, e pedi uma cerveja — “Original, garrafa, por favor” — e um copo americano gelado, do jeito que gosto. Enquanto aguardava, tirei o celular do bolso e apoiei sobre a mesa, com a tela apagada.

Apesar da paisagem deslumbrante, da noite agradável, da tranquilidade do ambiente, havia um ruído dentro de mim que eu não conseguia calar. Era um desconforto que não vinha de fora, vinha de dentro. Aquele lugar, aquele momento, aquele convite... tudo parecia real demais, íntimo demais, fora da linha reta da vida que eu havia construído com tanto zelo.

“Estou fazendo certo?”

A pergunta surgiu silenciosa, flutuando entre meus pensamentos. Eu era casado, pai de dois meninos incríveis, com uma rotina sólida, confortável, segura. Tudo funcionava como deveria. E, ainda assim, eu estava ali. Esperando por alguém que mal conhecia. Por uma conversa que talvez eu nem soubesse conduzir. Por um sentimento que eu não conseguia nomear.

Mas apesar de tudo isso, do peso, das dúvidas, da confusão, eu não queria voltar atrás.

Não sabia onde aquilo ia dar. Não sabia se deveria ter recusado. Mas ali, com os olhos presos à lua e ao mar, com o corpo presente naquele restaurante de vista generosa, sentia que havia algo mais forte que a dúvida: uma vontade de continuar. Nem que fosse só para entender o que exatamente eu estava tentando buscar.

A cerveja chegou, e agradeci com um gesto. Servi o copo com calma, observando o líquido dourado preencher o espaço com espuma espessa. Levei à boca, bebi um gole e respirei fundo mais uma vez.

Daniel ainda não havia chegado.

Mas meu coração já não estava no mesmo lugar de antes.

Foi quando o vi vindo em minha direção.

Ele descia calmamente para a parte inferior do restaurante, os olhos atentos, como quem ainda procurava alguém. Levantei o braço num aceno discreto, mas firme, mantive-o erguido até que nossos olhares se encontrassem. Daniel me viu. Sorriu e começou a caminhar na minha direção.

Naquele instante, algo em mim travou.

E era estranho, quase cômico. Eu, que já fechei negócios de milhares de reais, que já sentei à mesa com empresários, políticos, investidores. Eu, que sabia exatamente como cumprimentar alguém, como medir a força de um aperto de mão, como escolher as palavras certas pra abrir qualquer conversa... agora ali, parado, tentando decidir se levantava, se ficava sentado, se sorria demais ou de menos.

Por que esse gesto simples, encontrar alguém pra uma cerveja, estava me deixando assim?

As mãos suavam, as pernas pesavam, o peito parecia pequeno demais pra tudo o que estava acontecendo por dentro. E o mais louco era isso: não tinha motivo claro. Nada objetivo. Nada que eu pudesse apontar como razão.

Só esse turbilhão mudo, esse desequilíbrio sem nome.

Observei ele se aproximar.

Estava leve. Usava uma camisa branca de linho, de botões, bem solta no corpo, as mangas dobradas até os cotovelos. A bermuda também era branca, simples, e calçava um chinelo qualquer. O cabelo estava um pouco bagunçado pelo vento, o rosto calmo, bronzeado, com aquele brilho nos olhos que eu lembrava bem da foto no WhatsApp. E, de algum jeito, ao vê-lo assim, me pareceu ainda mais distante da imagem do homem abalado daquela madrugada.

O que me chamou atenção de imediato foi o óculos. Armação quadrada, em acetato preto, discreto, mas marcante. Caía perfeitamente no rosto dele, como se tivesse sido feito sob medida. Realçava ainda mais o contorno dos olhos e dava a ele um ar de alguém que sabia onde pisava — mesmo que, por dentro, talvez estivesse tão confuso quanto eu.

Todo de branco, quase como se viesse carregando paz. E eu, por dentro, era só caos.

Quando ele finalmente chegou perto o suficiente, me levantei. Sem saber se era o certo, se era o melhor momento, mas me levantei.

Era o mínimo que podia fazer.

A gente se olhou por um segundo a mais do que o necessário.

— Boa noite — disse ele, estendendo a mão.

Apertei a dele com firmeza contida e, quase no mesmo movimento, ele se inclinou levemente, tocando meu ombro com a mão livre, naquele gesto rápido e casual, um meio abraço que a gente dá pra suavizar a formalidade. Reagi no reflexo, retribuindo com a mesma leveza.

Foi tudo rápido, natural, mas meu corpo reagia como se tivesse acabado de encarar uma maratona.

Sentamos. Eu mantive meu lugar, ele puxou a cadeira à minha frente, de frente pra janela e também de frente pra mim. Ficamos os dois ali, frente a frente, separados por uma mesa de madeira simples, agora com dois copos, uma garrafa já aberta de Original e o som do restaurante ao redor preenchendo os espaços.

Por alguns segundos, nos olhamos e sorrimos, aquele sorriso que é mais pra quebrar o gelo do que qualquer outra coisa. E depois veio o silêncio.

Não era um silêncio pesado, mas também não era leve. Era aquele tipo de silêncio que se instala quando nenhum dos dois sabe exatamente como começar. Eu quase julguei o momento como constrangedor. Mas a verdade é que era só... real. Dois homens adultos, em situações completamente diferentes de vida, tentando traduzir em palavras algo que nem sabiam nomear.

Eu respirei fundo, passando o olhar rapidamente pela paisagem atrás dele e voltei a encarar Daniel.

Ele ainda sorria, como se estivesse tão sem jeito quanto eu.

E, por um instante, me tranquilizei. Talvez estivéssemos os dois no mesmo lugar, mais do que eu imaginava.

Ele quebrou o silêncio primeiro, ainda com aquele mesmo sorriso leve no rosto.

— Não é todo dia que a gente sai pra tomar uma com o cara que quase te atropelou, né?

Deixei escapar uma risada breve. Ele também.

A forma como ele tentava descontrair, como se quisesse arrancar qualquer peso da situação, me fazia sentir menos deslocado ali.

— É, não é todo dia mesmo — respondi. — E, convenhamos, foi uma entrada triunfal a sua. Infelizmente já vi muito acidente em obra... mas de moto assim, na minha porta, foi inédito.

Ele riu, meio sem graça, e deu um gole na cerveja que o garçom havia acabado de trazer.

— Obrigado por não me atropelar. E, mais ainda, por não me humilhar depois. Fiquei com medo de virar meme naquele dia, sério.

— Relaxa. Já tava tarde demais pra criar mais um trauma — brinquei, e ele soltou outra risada. Dessa vez, mais leve, mais solta.

Por alguns segundos, apenas olhamos ao redor. A lua cheia pintava a noite com uma luz suave. Dava pra ver o Farol da Barra dali, iluminado, imponente. E entre o som dos talheres e a brisa que vinha das janelas, eu quase esqueci do desconforto inicial. Quase.

Ele ajeitou o corpo na cadeira e me encarou com mais atenção, sem perder o sorriso.

— Mas... falando sério, tá tudo bem mesmo com você? Tipo... não com o carro, com você. Desde aquele dia.

Houve algo no jeito como ele perguntou que me pegou desprevenido. Uma preocupação legítima, mas carregada de algo mais, talvez uma tentativa de criar um fio, um elo, algo que justificasse ele estar ali tanto quanto eu.

Abaixei o olhar por um instante antes de responder.

— Tá tudo certo. Só foi um susto. Eu diria que foi mais estranho do que grave. Não é todo dia que alguém bate na sua porta... literalmente.

Ele riu de novo, mas dessa vez não era só riso. Tinha algo nos olhos dele, um certo cansaço.

— Aquela noite foi uma droga — ele confessou, finalmente, sem disfarçar. — E a batida... foi só a cereja no bolo. Mas enfim, não quero te jogar meus dramas aqui. Só... queria mesmo agradecer. Você teve uma postura que muita gente não teria. E isso ficou na minha cabeça.

— É... eu percebi que você não tava bem. Mas todo mundo tem direito a um dia ruim, né?

Ele assentiu devagar e, por um momento, ficamos só olhando a espuma das cervejas nos copos.

Daniel recostou levemente na cadeira, girou o copo entre os dedos e sorriu com aquele jeito sem jeito de quem carrega alguma lembrança atravessada na garganta.

— Posso confessar uma coisa? — ele disse, me olhando de lado.

Assenti com um leve movimento de cabeça.

— Quando você desceu do carro naquela noite... com aqueles dois caras atrás de você... — ele fez uma pausa, riu baixo — juro, eu achei que ia apanhar.

Eu não contive um riso. Era um assunto sério, mas o jeito como ele falou, tão direto e quase rindo de si mesmo, me pegou desprevenido.

— Sério. Eu tava num nível de tensão que qualquer passo na minha direção já me fazia imaginar o pior. — Ele me olhou de novo, dessa vez mais firme. — Eu pensei: “pronto, três caras putos comigo, vou tomar uns socos, vou ser humilhado no meio da rua… e ainda vou ter que pagar o conserto da porta depois.”

Balancei a cabeça, sorrindo.

— Caramba, velho… você realmente achou que a gente fosse fazer alguma coisa com você?

— Eu achei. Tava abalado. E os dois que tavam contigo desceram com aquela cara de poucos amigos… sei lá. Achei que ia virar notícia.

— É, a gente tava voltando de um bar no Rio Vermelho. Tinha acabado de sair, acho que eram umas duas da manhã. Os caras estavam um pouco alterados, sim, mas não de bebida — expliquei, dando um gole na cerveja. — A gente viu o carro com a porta batida e não entendeu nada. Eu desci meio no susto, tentando entender o que tinha acontecido.

Ele pareceu relaxar um pouco com minha resposta. Olhou de novo pro copo, dessa vez com um certo alívio silencioso.

— Eu fiquei me sentindo um idiota depois. E envergonhado também. Não só pela batida, mas por ter ficado tão assustado... tão frágil.

— Você tava sozinho, de madrugada, vulnerável. Isso não é fraqueza, é instinto. Qualquer um no seu lugar teria se assustado.

Daniel assentiu, depois olhou pra mim com uma expressão mais suave, sincera.

— Foi bom você ter falado comigo depois. Aquela mensagem… eu não esperava. Me fez bem. Me fez repensar algumas coisas também.

Fiquei quieto por uns segundos, encarando o fundo âmbar do meu copo meio cheio. Aquelas palavras vinham com um peso que não era só dele. A verdade é que, desde aquela noite, muita coisa em mim também vinha sendo repensada, mesmo que eu ainda não soubesse nomear exatamente o quê.

Eu tomei um gole da cerveja, tentando aliviar um pouco o nervosismo, e soltei meio sem querer:

— E você, tem quantos anos?

Ele me olhou surpreso, arqueando uma sobrancelha.

— 26 — respondeu, com um sorriso leve. — Por quê?

Dei de ombros, tentando parecer casual, mas por dentro sentia aquela curiosidade que não se explica.

— Curiosidade, só isso. Você parece mais tranquilo, mais velho de espírito.

Ele riu.

— Pode ser culpa da rotina, ou de ter vivido umas coisas cedo demais.

Hesitei por um instante e respondi:

— Tenho 35.

Ele fez um leve gesto de surpresa, mas logo se acomodou na cadeira, com aquele jeito meio despretensioso.

— Então você já deve ter muita história pra contar, né? — ele disse, apoiando o copo sobre a mesa, ainda com aquele sorriso que parecia abrir espaço pra tudo que vinha depois.

Assenti, girando a cerveja na mão, observando a espuma que escorria lenta pelo vidro.

— Algumas boas... outras nem tanto. Mas sim, acho que a idade traz isso, né? Uma coleção de histórias mal resolvidas.

— E bem resolvidas também, espero — ele rebateu, rindo baixo.

— Algumas — sorri, mas sem esconder a pontinha de ironia na resposta.

Ficamos em silêncio por alguns segundos. Dessa vez, o silêncio não pesava tanto. Era como uma pausa natural entre uma frase e outra.

— E você? — perguntei. — O que faz da vida, além de andar de moto em horários suspeitos?

Ele riu, encostou as costas na cadeira, como quem se acomoda melhor pra falar de si mesmo, e ajeitou os óculos no rosto com um movimento quase automático. E, enquanto começava a falar, ele também passou a mão no cabelo, tirando uma mecha da testa como quem repete um gesto habitual sem perceber. Eu não sabia se era um tipo de tique nervoso ou apenas mania. Mas reparei. E achei bonito.

— Eu sou advogado trabalhista — começou, olhando rápido pro copo antes de voltar a me encarar. — Atuo sozinho hoje em dia, mas divido escritório com um colega, lá no Caminho das Árvores. A gente compartilha estrutura, troca uma ideia sobre os casos, mas cada um cuida dos seus processos. É meio que uma parceria independente.

Assenti, prestando atenção mais no jeito dele falar do que nas palavras.

— Antes eu trabalhava num escritório lá no Comércio, com volume alto, muitos casos repetitivos... Era mais correria do que envolvimento real. Eu tava sempre no automático. Hoje, com mais autonomia, consigo pegar causas menores, mas que eu realmente quero defender. Geralmente reclamatórias, verbas rescisórias, rescisões mal feitas, horas extras, coisas assim. Não é glamouroso, mas... é honesto. E eu gosto.

Ele deu de ombros com um sorriso leve, como quem não precisa se vender pra ninguém. Só estava contando.

E eu estava ali, ouvindo tudo. Mas também... observando.

Ele ajeitou os óculos de novo. Passou a mão pelo cabelo mais uma vez. E, por dentro, eu percebi o quanto aquilo me desestabilizava. Não o conteúdo da conversa em si. Mas o jeito como ele existia ali, na minha frente, com leveza, com naturalidade, com uma simplicidade que me puxava pra um lugar estranho, um lugar novo. Um lugar onde eu não tinha controle.

Respirei fundo, mantendo o sorriso.

— Interessante isso. Trabalhar sozinho dá medo, né?

Ele sorriu.

— Dá. Mas também dá paz. E liberdade. E eu tô num momento da vida em que isso vale mais do que segurança.

Eu só balancei a cabeça. Entendia o que ele queria dizer. E, ao mesmo tempo, sentia que aquelas palavras batiam em mim de um jeito torto. Como se falassem comigo em outro nível, mais profundo.

Enquanto ele falava de uma causa recente envolvendo uma demissão sem justa causa mal conduzida, eu só conseguia pensar:

por que ele parece tão à vontade e eu tô aqui com o coração tentando sair pela garganta?

Tentei disfarçar. Apoiei o cotovelo na mesa e mexi no meu copo, observando o círculo de água que começava a se formar ali. Era isso que eu fazia quando queria fugir: focava em detalhes que não diziam nada. Levantei o braço, chamei o garçom com um aceno discreto e pedi outra cerveja, mais por ocupar as mãos do que por sede. Precisava parecer tranquilo. Ou, pelo menos, me sentir no controle.

Mas ele notou.

Daniel me olhou com um meio sorriso no canto da boca, aquele olhar que não provoca, mas que entende. Esperou o garçom se afastar e então falou, com leveza:

— Bom... já sei que você é casado... — disse, olhando direto pra minha mão, onde a aliança parecia mais pesada naquele momento — o que mais eu posso saber sobre o cara que me salvou na madrugada?

Sorri, meio sem jeito, girando o copo devagar entre os dedos. A pergunta era simples. A resposta, nem tanto.

Respirei fundo antes de dizer qualquer coisa. Falar sobre mim nunca foi problema. Em reuniões, em obras, diante de clientes difíceis, eu sempre soube o que dizer. Mas ali, naquela mesa, com aquela vista, aquela presença, aquela pergunta... parecia que tudo o que eu era precisava ser repensado.

E talvez, no fundo, fosse exatamente isso que estava acontecendo.

— Bom... — comecei, sem olhar direto pra ele no primeiro momento — sou engenheiro civil. Me formei há um tempo já. Trabalho com dois colegas que conheci ainda na faculdade. A gente fez estágio na mesma empresa, se esbarrou em várias obras depois de formados, e acabou se juntando pra montar uma construtora. Hoje somos sócios-diretores. Cada um tem seu papel, mas todo mundo bota a mão na massa. É projeto, orçamento, cliente, obra, tudo ao mesmo tempo. A rotina é puxada, mas... gosto do que faço. Ou, pelo menos, gostava. Às vezes nem sei mais.

Dei um gole na cerveja, sentindo o líquido descer com certa lentidão. Falei com naturalidade, mas tinha um peso nas palavras que até eu percebi.

— Sou casado — continuei, finalmente olhando pra ele — há quase sete anos. Tenho dois filhos. Felipe e Miguel. Um de seis e outro de quatro. Dois furacões. Acordam cedo, dormem tarde, vivem correndo pela casa. É caos e amor o tempo todo. Eles são minha maior bagunça e meu maior orgulho.

Sorri de verdade agora, pensando neles.

— Minha esposa... ela é calma. Mais calma que eu, inclusive. Segura tudo quando eu desmorono. Segura a casa, segura os meninos, segura até meu silêncio quando eu não sei lidar com o mundo.

Fiquei em silêncio por alguns segundos depois disso. Como se estivesse organizando o que vinha em seguida. Daniel não disse nada.

Apenas ouvia, com aquele olhar atento de quem realmente quer saber, e não só preencher a conversa.

— Eu tenho uma vida certinha, sabe? Aquela que todo mundo olha e pensa: “esse cara tá com tudo em ordem”. E às vezes eu também acho isso. Outras vezes... nem tanto.

Abaixei os olhos, respirei fundo, e completei num tom mais baixo:

— Só que ultimamente, nem tudo tá encaixando do jeito que deveria. E eu nem sei se isso é um problema... ou só a vida tentando me mostrar outra coisa.

Levantei os olhos de novo, e ele ainda estava lá. Quieto, presente. Me olhando como se entendesse sem precisar dizer nada.

E eu pensei: o que há nesse cara que faz com que eu fale tanto assim?

Mas ao invés de lutar contra isso, me deixei ficar ali. Sem pressa.

Porque, pela primeira vez em muito tempo, eu me sentia escutado de um jeito diferente.

Ele sorriu, com aquele jeito calmo e curioso de quem escuta com atenção, e então perguntou:

— Eles devem ser lindos... seus filhos. Você tem foto deles aí?

Confirmei com a cabeça, peguei o celular e desbloqueei. Abri o álbum mais recente. Tinha uma foto daquele domingo, na praia, os dois ainda molhados, cabelos bagunçados, os olhos fechando de tanto rir. Mostrei a tela pra ele com certo orgulho, aquele tipo de imagem que dispensa legenda.

Daniel olhou com carinho genuíno.

— Que moleques lindos, velho... parecem ser uma figura. Esse menorzinho tem uma cara de que apronta que só.

Sorri. O coração apertou de leve, num misto de emoção e culpa que não dava nome. Guardei o celular com cuidado, como se os meninos pudessem sentir minha hesitação.

E foi nessa brecha de silêncio que tomei um gole da cerveja, respirei fundo e decidi falar algo. Nem pensei muito antes de soltar:

— E você... reparei que não tem aliança. Já que reparou na minha, me senti no direito de reparar suas mãos umas duas vezes. Posso perguntar se você é um solteirão?

Ele ficou em silêncio por alguns segundos depois da minha pergunta. Mas não foi um silêncio qualquer. Foi denso, cheio de camadas. Vi nos olhos dele, ainda por trás dos óculos — algo entre o susto e o desgaste. Um cansaço antigo. E então ele os tirou, devagar, como quem precisa respirar direito antes de continuar. Colocou-os na mesa com cuidado, como se o gesto fosse uma tentativa de interromper o que sentia, e passou a mão aberta pelos olhos, num movimento lento, quase doloroso.

Seu olhar já estava úmido.

Naquele instante, o mundo ao redor pareceu murchar. O restaurante sumiu, a música ambiente virou ruído distante. Só existia aquela imagem ali: um homem tentando conter a dor diante de alguém que mal conhecia e eu, sem saber se o tinha ferido mais do que devia.

“Droga”, pensei. Talvez eu tivesse tocado num ponto que ainda sangrava. Talvez minha pergunta tivesse sido mais do que ele estava pronto pra ouvir. E mesmo sem intenção, mesmo sem saber... doeu.

Engoli em seco. Senti o corpo inclinar-se um pouco à frente, num reflexo de empatia, mas não falei nada. A única coisa que me ocorreu foi permanecer ali, presente. Sem pressa. Sem invadir.

Talvez, às vezes, seja isso que a gente mais precise: alguém que não recue quando tudo começa a desmoronar.

E antes que ele dissesse qualquer coisa, eu soube, algo importante estava prestes a ser revelado.

---

Continua

---

Eu me sinto muito leve escrevendo isso aqui, e, de verdade, peço desculpas pelo tamanho do texto. Acreditem: eu me esforço bastante para enxugar o que escrevo. Quando passo tudo para o Word para corrigir a pontuação e revisar com mais calma, me surpreendo ao ver que algumas partes chegam a ter 7, 9, até 10 páginas.

Fico surpreso com o quanto acabei escrevendo, então tento resumir, cortar, sintetizar… Mas sempre fui assim na vida, sou assim conversando também: gosto de contextualizar tudo, explicar cada detalhe, dar sentido às coisas.

Só hoje, 06/07, consegui finalizar essa parte e, confesso, escrevi muito mais do que publiquei aqui. Porém, para não deixar o texto ainda mais extenso do que já está, decidi dividir. Aos poucos, ao longo da semana, vou ajustando e completando a próxima parte.

Mais uma vez, quero agradecer a cada pessoa que está acompanhando. Obrigado pelo apoio, pelas mensagens, pelos pedidos para que eu continue essa história.

De verdade: ainda me assusto com o número de leituras.

Sou um cara que gosta de livros desde adolescente. Li muitos, leio até hoje e talvez isso me influencie a querer trazer tanta riqueza de detalhes ao escrever.

Espero que continuem gostando.

Um forte abraço e até a próxima!

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Comentários

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Preste atencao. E hora de encontrar aquela que adicionara um toque de fogo. https://fillboards.com/miamiller

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Olá

Parabéns

Sua escrita está perfeita, com uma sutileza impecável, deixa o leitor sempre com o desejo de Querer Mais

Continue assim

Mais uma vez PARA

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A naturalidade, a delicadeza com que você desenvolve cada momento, todas as camadas de sentimentos envolvidos é impressionante. É envolvente, é verdadeiro e nos leva a um misto de sensações intensas que mexem inclusive com as nossas próprias experiências. Só continua, por favor. Nota mil.

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Gostando é pouco... achei sua escrita elegante e charmosa, rica e delicada, explícita e dolorosa. É auto explicativa e muito singular. Sinto que vou sorrir e chorar lendo esse conto. Continue e não se preocupe com o tamanho, quem ta gostando de verdade engole cada paragrafo com bastante entusiasmo. Nota 10!

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Que delicadeza nos detalhes dos sentimentos, sensações de curiosidade, empatia e prazer acompanhado as frases, por favor não ligue pelo tamanho do texto, eu estou achando e pequeno kkkk A sua história é envolvente e sedutora na forma que narra e o tempo das coisas. Esse é seu talento.

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A real é o seguinte: eu amo ler uma putaria, uma sacanagem bem descrita, mas eu realmente estou apaixonado por sua história. Seu relato é realmente fantástico, não é recomendado para quem quer dois parágrafos de foda, gozada e fim.

Eu sinto algo real, sinto nos detalhes que você escreve o quanto isso além de complicado tem sentido especial pra você pela forma que narra, é como se eu tivesse lendo um livro com um desenvolvimento incrível em que a parte "hot" é apenas a parte para complementar o óbvio. Quando vi que saiu capitulo novo eu peguei um café aqui e tomei enquanto lia porque pra mim está sendo uma experiência literária, por mais pessoas interessadas em relatar histórias com tanta profundidade aqui como você. O mundo gay, bi, etc não é só "conheci e dei/comi" e o fato de você não ter esse apelo, torna tudo isso incrível. Fico ansioso pra saber como será o desfecho de vocês? Claro!

Mas você tem demonstrado tanto sentimento, tanta dúvida do que está passando que eu tenho ainda mais vontade de saber como você estará reagindo a tudo isso.

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