Saí de casa por instinto. Não porque eu soubesse pra onde ir, mas porque precisava respirar. O quarto, depois daquela conversa, parecia menor do que nunca. Andei pelas ruas calmas da manhã de domingo, com o casaco fechado até o pescoço e as mãos afundadas nos bolsos. Um cachorro latiu atrás de um portão. Um senhor varria a calçada. A cidade parecia seguir alheia ao fato de que meu coração estava tropeçando de novo.
Quando voltei, menos de uma hora depois, a casa estava em silêncio. E meu quarto, diferente. A porta entreaberta deixou escapar a imagem de Francisco, deitado na minha cama, abraçado à minha camisa.
Ele dormia. Os cílios pesados, o rosto sereno — mas ainda havia algo de tenso ali, algo que não descansava nem quando o corpo cedia. A camisa amassada contra o peito dele parecia uma tentativa tola de me manter por perto, mesmo sem palavras. E, pela primeira vez, depois de semanas de dor e distância, eu o vi frágil.
Quando eu achei que ele iria, ele ficou.
A convivência se tornou um campo minado de pequenos olhares roubados e silêncios compartilhados. Dividíamos a cozinha, o sofá. Ele me observava com a mesma atenção de antes, mas sem tentar forçar uma aproximação. Em alguns momentos, parecia que queria dizer algo, mas voltava atrás. Eu também.
Na segunda, almoçamos juntos, quase sem palavras. Ele lavou a louça, mesmo com as funcionárias da casa dizendo para não fazer, e ver ele implicando com elas pra fazer o serviço me tirou um pequeno sorriso.
Na terça a tarde, ele chegou com um café pronto. Só disse “tá quente”, e deixou a xícara ao lado do meu caderno. Eu agradeci com um aceno. E continuei fingindo que o silêncio era suficiente. A sala ficou enorme demais, mas ao mesmo tempo, a presença dele deixava o ar pesado, quase como se eu estivesse perdendo o fôlego.
Na quarta, foi Lucas quem apareceu, como uma brisa leve no meio do peso que me habitava. Sentou ao meu lado na praça da faculdade com dois cafés e um sorriso gentil.
— Você sumiu — ele disse, com doçura.
— É... as coisas ficaram um pouco bagunçadas. Desculpa.
— Eu imaginei. Não sou burro, Samuel. E... não precisa me explicar. Só queria que você soubesse que, seja o que for, não muda o que temos.
— Lucas...
— Shhh. Tá tudo bem — ele encostou o ombro no meu. — Às vezes a gente precisa se machucar pra entender onde dói. Eu espero. Se precisar de mim, sabe onde me encontrar.
Sorri, de verdade, pela primeira vez em dias. E soube que ele estava certo. Lucas era tudo o que o inverno pedia: chá quente, cobertor, aconchego. Mas havia algo em mim que ainda vibrava com a lembrança do calor do verão.
Na quinta, foi a vez de Francisco me chamar. Eu estava de saída, me arrumando pro jantar que combinei com Lucas. Ele apareceu na porta do meu quarto.
Respirei fundo. Pedi pra ele entrar e sentar.
— Desculpa pedir isso assim, sem aviso... eu sei que cê tinha planos.
— Tudo bem. Tô aqui.
— Ele volta sábado. Meu pai. — Ele engoliu seco. — Não vejo ele faz uns bons anos. A última vez... foi uma briga. Daquelas.
— O que está sentindo?
— Tô com raiva, pra falar a verdade. Mas a raiva não dura tanto tempo assim, né? O que fica é outra coisa. Fica esse vazio, essa estranheza. Ele nunca aceitou nada da gente. Nem eu, nem a mãe. Nem o jeito que a gente queria viver.
Fiquei em silêncio, deixando ele falar. Era raro ouvir tanto de Francisco. Ele economizou nas palavras desde que o conheci, como se tivesse medo de desperdiçar sentimentos.
— Eu me afastei porque... não sei se sou forte o bastante pra lidar com tudo isso. Com o que sinto. Com você. Com ele.
— Você é mais forte do que pensa — eu disse, quase num sussurro.
Ele levantou o olhar, me encontrou.
— Samuel... eu quero tentar. Com você. Quero mesmo. Mas não sei como fazer isso sem errar.
Houve um silêncio longo entre nós. Aquele tipo de silêncio que carrega tudo — medo, desejo, saudade, carinho. Mas, por dentro, eu ainda não sabia se estava pronto. Se conseguia abrir a porta de novo.
— Eu não vou te forçar. Nem te apressar — ele disse. — Só queria que soubesse que agora... eu tô aqui. De verdade.
Assenti, com um nó na garganta.
Percebi que não conseguiria sair para encontrar Lucas. A cabeça estava longe demais, e o coração mais ainda. Peguei o celular, digitei devagar e reli antes de apertar “enviar”:
“Oi, Lucas. Me desculpa por avisar em cima da hora, mas surgiu um problema familiar aqui. Não vou conseguir ir hoje. Amanhã após a aula podemos almoçar juntos. Espero que entenda.”
A mensagem foi entregue. Larguei o celular e fiquei ali por alguns minutos, olhando pra ele.
— Quer comer alguma coisa? — perguntou, sem me encarar diretamente.
Assenti com um movimento leve.
— Quer pedir algo? — perguntei.
— Não. Eu vou cozinhar pra gente
Ele sorriu. Me levantei e fomos até a cozinha, me sentando na bancada. Passei a observar seus movimentos procurando as coisas. A maneira como cortava os temperos, o cuidado em provar o molho antes de servir. Era simples. Mas era carinho. Era presença.
— Não sabia que gostava de cozinhar? — falei, tentando aliviar o ar tenso que ainda restava.
— É a única coisa que me ajuda a não sair quebrando as coisas — ele respondeu, com uma sinceridade que arrancou um meio sorriso de mim.
Fomos até os fundos, em frente a piscina, sentamos um de frente pro outro com os pratos quentes entre nós. Um macarrão simples, com molho de tomate e carne moída. A comida tinha gosto de cuidado, de casa.
Depois de algumas garfadas em silêncio, ele suspirou.
— Ele me chamou de inútil. De mimado. Isso com dezoito anos. Como se tudo que eu fizesse fosse errado só por ser... eu.
Fiquei olhando pra ele. A dor ainda estava viva nos olhos castanhos, mesmo tantos anos depois.
— Eu conheço outro Antônio. Um que parece até mais brando, mais leve... mas... imagino o peso disso. A dor de não ser visto por quem deveria te amar primeiro.
— Ele sempre achou que eu tinha que ser igual a ele. Que ser homem era engolir tudo calado. Que sentir... era fraqueza.
— E você nunca foi fraco. Mesmo tentando esconder.
Ele balançou a cabeça devagar, os olhos abaixados.
— A primeira vez que ele me viu chorando, depois da morte da minha mãe... ele não disse nada. Só levantou da cadeira e saiu da sala. Nem um abraço. Nem um olhar.
Me aproximei devagar. Não disse nada. Apenas deixei que meu joelho encostasse no dele por debaixo da mesa. Foi um gesto pequeno. Mas ele olhou pra mim como se fosse muito mais.
— Eu não quero repetir isso — ele disse, a voz embargada. — Não quero viver afastando quem me faz bem. Mesmo que... mesmo que ainda não saiba como fazer tudo certo.
O macarrão já tinha esfriado um pouco, mas ainda estava bom. Estávamos sentados ali, na área externa da casa, diante da piscina azul que refletia o céu pálido do fim da tarde. O inverno não impedia que a brisa carregasse aquele cheiro gostoso de comida e silêncio compartilhado.
Francisco estava mais tranquilo. Mexia no prato devagar, como se o ato de comer fosse mais uma desculpa pra estar ali comigo do que uma necessidade.
Minha mãe apareceu na entrada com uma sacola no braço, um casaco bege caindo sobre os ombros e os olhos atentos de quem sempre sabe mais do que diz.
— Boa noite — ela sorriu, os olhos passando de mim para Francisco com aquele jeito de quem analisa antes de falar.
— Oi, mãe — falei, limpando os cantos da boca com o guardanapo.
— Helena — Francisco se levantou com respeito, ajeitando a camiseta.
Ela se aproximou, deu um beijo rápido no rosto dele e um demorado em mim. Depois apoiou a sacola na mesa ao lado e soltou:
— Tão jantando fora hoje, é?
— O Francisco cozinhou — respondi, tentando manter a voz neutra.
Ela arqueou levemente a sobrancelha, como quem entende mais do que ouviu. Depois puxou uma cadeira e sentou de frente pra gente.
— Que bom ver vocês dois assim. E você, Francisco... vai ficar mais uns dias?
Ele hesitou, como se não esperasse a pergunta tão direto.
— Não sei ainda. Depende de... algumas coisas.
— Seria ótimo se ficasse. Seu pai vai chegar no fim de semana, e talvez... talvez seja um bom momento pra resolverem algumas pendências.
O garfo do Francisco parou no meio do caminho. Eu olhei e vi seu maxilar endurecer por um segundo, antes dele continuar comendo como se não tivesse ouvido.
— Eu pensei nisso. Mas não sei se ele quer conversar.
— Às vezes, quem precisa querer é você — minha mãe respondeu com firmeza, mas sem dureza.
Ela virou os olhos pra mim então, e num simples olhar me disse tudo. Sabia. Sabia que havia algo ali entre nós, algo que não estava no prato nem na conversa, mas no silêncio e no jeito com que nossos corpos dividiam o espaço.
Sorri de leve. Não disfarcei.
Ela se levantou logo depois, como quem não queria interromper mais do que devia.
— Vou tomar um banho. O cheiro de mercado tá grudado em mim. — Ela olhou uma última vez pra Francisco, suave. — Fica, Francisco. Às vezes, a gente precisa ficar onde o coração começa a bater mais certo.
E entrou pela casa, deixando a porta de vidro aberta atrás dela.
Francisco suspirou e repousou o garfo no prato vazio.
— Eu ainda não sei se consigo ficar — ele disse, quase num sussurro.
— Talvez o que você precise é tentar — falei, sem levantar o rosto.
Ele não respondeu de imediato. Mas seu joelho encostou no meu, leve. Firme. E ficou ali.
O inverno continuava intenso. Mas, aos poucos, alguma coisa dentro de mim começava a derreterCapítulos atualizados todos os dias no Wattpad. @ViictorCorrea