No aeroporto, Juliana olha o reflexo na janela: batom vermelho, lenço de seda ao pescoço, passaporte na mão. Sorri. Mas antes de embarcar… escreve uma mensagem:
“Sofia, não há outra como tu. E se a vida for justa… ainda nos vamos reconhecer. Talvez de novo. Talvez de outra forma. Mas sempre.”
Envia. Respira fundo.
E entra no avião.
O calor de Barcelona era diferente. Mais húmido. Mais inquieto. Como se a cidade respirasse desejo e deixasse escapar pequenas ondas de provocação pelas ruas, pelas varandas, pelos olhos que se cruzavam com os de Juliana a cada passo.
Ela alugou um pequeno estúdio no bairro de Gràcia. Janelas grandes, paredes brancas, e um espelho redondo acima da cama — porque precisava continuar a ver-se. Precisava lembrar quem era, quem tinha sido. E quem não podia perder.
O coletivo artístico era tudo o que prometia: intenso, queer, provocador, caótico. Havia fotógrafos não binários, performers de género fluido, mulheres que se reinventavam todas as manhãs.
E Juliana... encaixou-se como uma peça que esperava por este lugar desde sempre.
Na segunda semana, conheceu Carmen.
Andaluza, cabelos curtos tingidos de azul petróleo, piercing na língua, olhar de quem sabia o que fazer com qualquer corpo — inclusive o dela. Carmen era bailarina e fotógrafa, e não escondeu o interesse.
— Nunca vi uma mulher que vibre tanto entre força e fragilidade — disse ela, num jantar de grupo, com a mão já pousada na coxa de Juliana por baixo da mesa.
— E tu tens mãos que não deviam pedir licença — respondeu Juliana, sentindo o calor subir pelas pernas.
Essa noite, Carmen levou-a a um clube fechado, “La Sombra”, onde os corpos dançavam em seminu como quem reza. Lá dentro, não havia género fixo, só pele, desejo, suor e música grave.
Carmen ajoelhou-se no meio da pista, puxou Juliana pela cintura e beijou-a entre as pernas, por cima da meia arrastão, em frente a todos. Juliana tremeu, entre o escândalo e o prazer.
Carmen sabia desde o início que Juliana tinha nascido com corpo masculino. Juliana nunca escondeu. E Carmen… não recuou.
— O teu corpo é teu. E eu quero conhecer cada centímetro dele — sussurrou, encostando a boca ao ouvido de Juliana.
Mais tarde, no estúdio de Carmen, com a janela aberta para a cidade, fizeram amor com fúria e técnica. Carmen explorou-lhe cada parte com desejo e respeito. Beijava-lhe a virilha com reverência. Envolvia o sexo de Juliana com a boca e as mãos com adoração e tesão.
— És linda. Inteira. E tudo em ti é mulher. — murmurava entre gemidos.
Carmen usava dedos como quem conhece o mapa do prazer alheio de cor. E Juliana gozava com os olhos fechados, com uma fome nova — uma fome sem culpa, sem vergonha, sem esconder o que tinha — porque finalmente, o que tinha não anulava quem era.
Mas no pós-orgasmo, o vazio chegava. A cama ao lado de Carmen não tinha o cheiro de Sofia. Nem o silêncio cúmplice. Nem a mão que segurava a dela sem precisar dizer nada.
A residência continuou. Havia oficinas de performance onde Juliana se vestia de vidro e espelhos.
Fotografaram-lhe o corpo coberto de palavras pintadas com batom: “submissa”, “puta”, “divina”, “dona de si”.
E em todas as imagens… sentia falta de alguém para as ver.
Carmen quis ficar. Quis mais. Mas Juliana não prometeu.
— Eu não sei o que procuro agora. Só sei que estou inteira. Mas não completa.
Na última semana, numa instalação pública, Juliana expôs uma peça chamada “Ciclo”.
Era simples: uma cama, um espelho e uma gravação contínua da própria voz:
“Fui vista por quem me moldou. Tocada por quem me guiou. Mas é a ausência que me diz quem sou, quando tudo se cala.”
Ao lado da cama, uma almofada preta. Nela, costurada a linha vermelha de um nome bordado à mão:
“Sofia”
Na noite anterior ao voo de regresso, Juliana sentou-se no chão do estúdio. Estava nua, com o robe aberto, o copo de vinho meio cheio, e a mão a deslizar entre as pernas, envolvendo-o com as mãos — não por desejo, mas por saudade. Tocava-se devagar, pensando em como Sofia fazia. Em como dizia o nome dela. Em como a olhava quando não falava.
Gozou sozinha, com os olhos molhados. E depois dormiu abraçada a uma almofada que não era suficiente.
Na manhã do voo, Carmen apareceu para se despedir.
— Nunca fui boa a ficar — disse Juliana.
— Mas és inesquecível quando partes.
Trocaram um beijo. Um abraço apertado. Nenhuma promessa.
Juliana embarcou. E o coração, apesar de livre, começou a arder com o que viria a seguir.
Voltar. Olhar Sofia nos olhos. E perguntar se ainda havia espaço — entre desejo, amor e memória.