Passaram-se duas semanas desde "A Viragem". Juliana… cresceu. Quase de um dia para o outro.
Começou a sair sozinha — não apenas de noite, ou disfarçada.
Durante o dia. Em cafés, livrarias, lojas. Com roupas leves, maquilhagem discreta, mas sem esconder quem era. Às vezes com peruca. Outras vezes, com o próprio cabelo preso, boca pintada e blusa justa. Cada passo era uma vitória pequena, suada, poderosa.
Sofia apoiava. Miguel também. Mas… algo começava a mudar.
Numa noite de sábado, estavam os três numa galeria alternativa. Fotografias eróticas penduradas nas paredes, corpos fluidos e nus, arte provocadora. Juliana estava especialmente radiante — saia preta de couro, top transparente com soutien de renda, saltos médios. A confiança escorria-lhe da pele.
Estava a falar com um grupo de artistas quando Sofia a observou à distância, os olhos semicerrados. Miguel, ao lado dela, cruzou os braços.
— Estás calada. — comentou ele.
— Estou a ver.
— E o que vês?
— Que ela… está a conquistar um espaço só dela.
Miguel assentiu.
— Não era isso o que querias?
Sofia demorou a responder.
— Era. Mas agora pergunto-me se… nós ainda temos espaço dentro disso.
Mais tarde, de volta a casa, Juliana sentou-se entre os dois no sofá. Estava animada, elétrica.
— Hoje senti-me olhada com desejo. Mas não como fetiche. Como mulher.
— E como te sentes por dentro? — perguntou Miguel.
Ela respirou fundo.
— Livre. Mas… também um pouco distante de vocês. Como se… tivesse saído do casulo e agora não soubesse se ainda caibo nos vossos braços.
Silêncio.
Sofia pegou-lhe na mão.
— Cabes. Mas talvez já não sejas apenas nossa. Estás a descobrir-te… para além de nós. E isso assusta.
— Tens medo de me perder?
— Não. Tenho medo de te travar. Ou de ser deixada para trás.
Juliana aproximou-se e beijou-a. Depois virou-se para Miguel, acariciando-lhe o peito.
— Eu quero-vos. Mas preciso de saber se este amor aceita… transformação. Ou se só resiste ao prazer.
A tensão naquela noite era outra. Menos carne, mais espírito. Mas os corpos ainda pediam uns aos outros.
E então Juliana fez algo novo: amarrou as mãos de Sofia.
— Hoje, quem se entrega és tu.
Sofia não resistiu.
E Miguel observava, fascinado, enquanto Juliana a montava devagar, beijando cada centímetro do corpo dela, tomando o controle não por dominação, mas por amor. Depois, puxou Miguel e guiou-o também.
Os três corpos ainda se encaixavam. Mas agora… os corações começavam a ter vontades diferentes.
No dia seguinte, ao final da tarde, Juliana recebeu o e-mail.
Um coletivo artístico em Barcelona — queer, experimental, feminista — respondera à proposta que ela enviara em segredo: uma exposição fotográfica e performativa intitulada “Reflexos de uma Pele Não-Negociada.”
Queriam-na lá.
Não só a arte. A ela.
— É uma residência de três meses. Começa já no próximo mês. — disse Juliana, com a voz embargada, sentada à mesa da cozinha, os dedos apertando a borda do telefone.
Sofia e Miguel estavam sentados do outro lado. O silêncio que se formou foi denso. Nenhum deles sorriu.
— Isso é incrível. — disse Miguel, por fim.
— É longe. — disse Sofia, mais baixo, sem conseguir esconder a tensão.
Juliana assentiu.
— Eu… não esperava. Mas quero ir. Sinto que há mais de mim lá fora. Algo que preciso descobrir. Não é sobre fugir… é sobre crescer.
— E onde ficamos nós nesse crescimento? — perguntou Sofia, encarando-a.
A pergunta ficou suspensa no ar. Juliana não respondeu. Não sabia. Não ainda.
Naquela noite, Miguel aproximou-se dela no terraço. Sofia estava dentro, a preparar chá, distante, ausente. A tensão entre os três era quase insuportável.
— Tu vais mesmo, não vais? — perguntou ele.
— Preciso disso.
— E se eu quisesse ir contigo?
Juliana ficou imóvel. O coração acelerou.
— E Sofia?
— Não sei. Está a afastar-se. Ou talvez esteja a perceber que tu já não és só dela.
Miguel aproximou-se. Os olhos dele estavam carregados. Não de desejo cru… mas de ternura. De algo que vinha a crescer em silêncio.
— Eu nunca me apaixonei assim. — confessou. — E não sei se ainda estás disponível… para amar, fora do jogo.
Juliana mordeu o lábio. Estava vulnerável, dividida, despida de tudo o que era simples.
Ele beijou-a.
Lento. Calmo. Sem permissão. Mas com entrega.
Ela não o afastou. Mas também não respondeu com urgência.
Quando Sofia voltou e os viu, ficou parada. O chá quase caiu da bandeja.
Os olhos de Juliana encontraram os dela. Sem esconder. Sem desculpa. Mas também… sem certeza.
— Sofia… — murmurou.
Ela pousou a bandeja devagar.
— Estás mesmo a ir embora. — disse ela. — E estás a levar tudo contigo.
— Posso levar-vos comigo. Se quiserem.
— A mim não. — respondeu Sofia, com voz baixa, dura. — Eu amo-te demais para ser um satélite. E amo-me demais para ser esquecida num voo qualquer.
E saiu da sala.
Juliana sentou-se no chão. Miguel ajoelhou-se ao lado.
— Isto é o fim?
Ela respondeu com os olhos marejados.
— Ou é o começo de tudo.
A noite era húmida e silenciosa.
Juliana entrou no quarto com passos lentos. Sofia estava sentada à beira da cama, de costas, os ombros descobertos, o robe a escorregar. Os cabelos ainda húmidos da água quente. As mãos trêmulas sobre as coxas. O copo de vinho intocado.
— Posso entrar? — perguntou Juliana, embora já estivesse dentro.
Sofia não respondeu de imediato.
— A casa é tua. Sempre foi.
Juliana aproximou-se. Sentou-se atrás dela, passou-lhe os braços à volta da cintura, o rosto encostado às costas nuas. Ficaram assim longos segundos. Sem palavras. Só o som da respiração e o silêncio entrelaçado no quarto.
— Se não fosses tu… — disse Juliana, baixinho — eu ainda era um reflexo apagado. Uma vontade com medo.
Sofia virou-se, devagar. Os olhos estavam húmidos, mas não frágeis.
— E agora és luz. És corpo. És nome. És Juliana.
— Mas nunca deixei de ser tua.
Sofia sorriu, triste e bela.
— Por um tempo, foste toda minha. Agora… és do mundo.
Juliana pousou a mão no rosto dela. Acariciou-lhe a bochecha com o polegar.
— Deixa-me dar-te esta noite. Como despedida. Como gratidão. Como amor.
Não foi uma noite de posse.
Não foi jogo.
Foi amor cru, maduro, tocado por despedida.
Juliana despiu Sofia com reverência. Tocou cada curva como se fosse a última vez. Beijou-lhe os joelhos, os seios, o ventre. Sofia fechava os olhos, as lágrimas correndo discretas enquanto os lábios de Juliana a adoravam em silêncio.
Fizeram amor devagar. Na penumbra. Corpo sobre corpo. Pele contra pele. Sem artifício. Apenas duas mulheres, duas histórias, dois caminhos que se cruzaram num ponto brilhante e íntimo.
Sofia gemia baixo, contida, como se não quisesse acordar o tempo. E Juliana dizia-lhe ao ouvido:
— És o meu começo. A minha casa. Sempre que me perder, vou voltar a ti — mesmo que só em memória.
Depois, ficaram deitadas juntas, entrelaçadas.
— Vais voltar? — perguntou Sofia, quase num sussurro.
Juliana demorou a responder.
— Não sei. Mas se voltar, é porque ainda és a minha direção.
Sofia assentiu.
— Então vai. Voa. Vive. Mas… sê verdadeira. Não te esqueças de quem te viu primeiro. Nem de quem te amou… quando ainda nem sabias o teu nome.
Juliana chorou em silêncio.
Naquela madrugada, não houve promessas — só verdade.
No aeroporto, Juliana olha o reflexo na janela: batom vermelho, lenço de seda ao pescoço, passaporte na mão. Sorri. Mas antes de embarcar… escreve uma mensagem:
“Sofia, não há outra como tu. E se a vida for justa… ainda nos vamos reconhecer. Talvez de novo. Talvez de outra forma. Mas sempre.”
Envia. Respira fundo. E entra no avião...