O que será - Sinais de fogo

Um conto erótico de João Fayol
Categoria: Homossexual
Contém 2457 palavras
Data: 28/07/2025 22:06:47

Não sabia dizer ao certo que horas eram, mas podia deduzir que era tarde o suficiente para que a claridade do dia não fosse mais combalida pelo blackout da janela. Fui despertando aos poucos, além da insistente claridade, havia um som externo; ao fundo, já não tão distante, eu ouvia Bethânia cantar Fera Ferida. Uma das minhas músicas favoritas, mas como uma pessoa pouquíssimo diurna, no aspecto de acordar feliz e saltitante, tudo era um terror no meu despertar. Eu tranquilamente precisava de, no mínimo, 30 minutos de silêncio até meus motores começarem a funcionar, e esse processo quase sempre transcorria no perfeito silêncio da minha casa.

Havia contudo, duas questões em torno dessa sentença: não estava silencioso, e eu não estava na minha casa. Meu cérebro só entendeu essa segunda informação quando a porta do quarto se abriu e do corredor surgiu um homem de shorts de dormir e camisa branca, com uma pequena bandeja de café da manhã abarrotada de tanta comida; com a abertura da porta, Bethânia, que até então cantava baixo, começou a ecoar com muito mais força. Não era uma reclamação, mas o som fez com que eu me afundasse ainda mais na cama.

- Bom dia, meu gatinho. - André se aproximou devagar, certamente pelo receio de derrubar a bandeja no chão, ou derramar algum dos líquidos que estava ali.

- Bom dia. - quanto mais ele se aproximava, mais eu me encolhia na tentativa de voltar a dormir e anular que estava acordado às… às… - tentei focalizar algo que me informasse as horas, até que bati meu olhar na Alexa - 10:15 da manhã de um sábado.

- Alexa, para. - Bethânia parou de cantar na sala, ele sabia que eu era um pouco avesso aos sons da manhã. Ao mesmo tempo, posicionou a bandeja em segurança ao meu lado, na cama, e rapidamente deu a volta na cama para me encontrar do outro lado. Ainda que eu estivesse fugindo de tudo e de todos, seus braços me alcançaram.

- Me deixa dormir mais um pouco, por favor. - eu fugi, mas os seus braços me envolveram. Ele não me puxou, mas se enlaçou ao meu corpo.

- Não. Cê tem que tomar café, gatinho. Tu tem esse hábito de acordar tarde e pular tuas refeições. Não te faz bem.

- Dormir me faz bem. Me deixa dormir. - ele beijava meu pescoço enquanto eu reclamava, mas, obviamente, sem fazer força alguma para sair de dentro dos seus braços.

- Claro que dormir te faz bem, mas você tá com anemia. Acordar e comer vai te fazer tão bem quanto ficar deitado, desidratado, sem se alimentar devidamente.

- Nunca mais eu te conto o resultado dos meus exames e a indicação dos meus médicos. Me deixa quietinho, vai. - eu estava sendo chato, admito, mas era um dos poucos dias da semana em que eu podia, efetivamente, acordar tarde.

- Gabriel, eu acordei cedo pra fazer um café com tudo que você gosta de comer, porque tu tá no meio do tratamento de uma anemia, e eu me importo contigo, porra. Qual foi, cara. Levanta e come, nem que seja um pouco, por mim… eu me dediquei por você.

Ele jogou baixíssimo. Ele poderia ter feito uso de qualquer outro argumento melhor, poderia ter sido tão incisivo comigo como é no tribunal, mas ele atacou no único lugar em que sabia que eu não iria resistir: a sua afetividade. Quando ele diz “eu me dediquei por você” na verdade estava querendo dizer: “você me conheceu na faculdade e sabe que eu tratava todo mundo na base do pau e água, se eu abri mão do meu descanso pra cuidar de você, é porque é importante, tu vai ignorar isso?”.

Se a experiência compartilhada nos anos de PUC foi fundamental para que ficasse na minha mente o estigma de que ele era um canalha, vê-lo de perto, tão dedicado a mim e ao meu bem-estar, estava sendo ainda mais fundamental para me dar conta do tanto que ele havia mudado e estava disposto a fazer com que as coisas entre nós funcionassem.

- Tudo bem, eu como. - fiz um pouco de força para me reposicionar na cama e conseguir encará-lo.

- Eu gosto quando tu se lembra que é um bom garoto. - ele me deu um beijinho na testa.

- Eu sou um bom garoto? - tentei focalizar meus olhos em seu rosto, mas a claridade que vinha da sala me incomodava bastante.

- Claro que você é um bom garoto. O meu bom garoto. - ele deu um sorrisinho enquanto apertava minha coxa. Não foi sexual, mas foi como o meu corpo reagiu. Para o bem e para o mal, ele tinha esse poder de me acender e me apagar.

- Eu vou comer na cozinha. Sentado na mesa, porque se eu ficar aqui, não vai ser só o café que eu vou querer tomar. - ele sorriu e concordou.

*

Entre café, suco e frutas, tomamos o café. Era sábado e o dia estava realmente lindo. Da casa do André era possível ouvir o som da São Clemente. Carros e motos circulando, pessoas transitando em direção ao metrô, à praia e à praça Nelson Mandela. Era um desses dias convidativos a sair de casa e ir para a rua fazer qualquer coisa. Combinamos de pegar um cinema, quem sabe jantar fora e, depois, quem sabe, irmos encontrar alguns amigos. Era exatamente nesse ponto que eu era pego. Já haviam se passado três meses desde que eu havia me separado.

Meu contato com Caetano havia sido drasticamente reduzido. Eu ainda me preocupava com o seu processo de luto, apesar dele estar bem. Nossas conversas acabavam girando em torno do processo de dvórcio. Nós já havíamos passado por todo o trâmite antes, e cancelamos tudo. Não assinamos todos os papéis, voltamos a morar juntos e mantemos o casamento por mais 6 meses. Seria só o caso de elaborar novamente os papéis, se não fosse o fato de que durante esse semestre, Caetano adquiriu alguns bens de valor, que precisavam entrar na partilha de bens. Eu estava disposto a abrir mão desses bens para que fosse feita a devida partilha, mas ele se recusava. Alegava que a divisão deveria ser feita da maneira correta. E no caos que ficaram as nossas vidas, o processo de divisão de bens seguia correndo a passos lentíssimos.

Foi utilizando isso como desculpa, que eu ainda não havia assumido minha relação com o André. Na verdade, eu me recusava a assumir a seriedade da nossa relação. Eu dormia e acordava com ele todos os dias, fosse na casa dele ou na minha. Não raramente, quando tentávamos dormir sozinhos, um terminava por atravessar a praça de madrugada e ir para o prédio do outro. Meu contato mais frequente era o dele. Eu não ficava com mais ninguém, ele idem. Mas não namorávamos, e não foi por ausência de pedido. Em 2 ocasiões ele me pediu em namoro e eu tangenciei. Na primeira vez aleguei que ainda não era o momento, que precisava de um tempo sem estar em um relacionamento após tanto tempo casado. Na segunda vez disse que precisava assinar os papéis para me libertar dessa história e poder iniciar uma nova.

Mas a questão é que eu estava com medo do que os outros iriam pensar e falar. Logo eu, que raramente ligo para a opinião alheia e demarco fortemente até onde as pessoas podem ir na minha vida, estava morrendo de medo dos hipotéticos julgamentos que talvez viessem. Era esse medo que também me segurava no conforto do cruzamento entre as avenidas São Clemente e Voluntários da Pátria. As nossas casas eram espaços de segurança. Ninguém nos atingiria e nos tiraria a paz, mas, naquele dia, André estava disposto a nos tirar dessa condição e me obrigar a tomar uma decisão.

- Hoje tem o lançamento do livro de um jurista que eu admiro pra caramba. - estávamos no sofá. Eu deitado no seu colo.

- Hmm, que legal. Onde vai ser?

- Aqui pertinho, na Travessa da Graça Aranha, na Cinelândia. - a sensação que tive é que meu corpo havia gelado de dentro para fora.- Aquela Graça Aranha era o point favorito do Caetano e do grupo de amigos que eles faziam parte. Se André queria ir, era certo que todo o grupo também iria.

- E você vai?

- Tô pensando ainda, mas acho que vou, sim.

- Vai sim, lindo. Eu tô querendo ir em casa, ver algumas demandas de trabalho… - ele me interrompeu.

- Hoje? Sábado.

- Hoje. Sábado. - visivelmente irritado, ele se levantou, o que fez com que a minha cabeça, antes apoiada no seu colo, caísse abruptamente no sofá.

- Gabriel, pelo amor de Deus, eu não sou criança, né. - ele parou na minha frente. Quando estava irritado, ele tinha a necessidade de ficar de pé e andar pelo espaço.

- Amor, eu só quero ficar quietinho. Você vai, eu vou pra casa e depois a gente se encontra.

- Não, Gabriel. Não é nem que você quer me esconder, porque vez ou outra a gente sai, mas só em espaços que tu sabe que não vai ter ninguém conhecido. Você quer esconder de todo mundo que tá comigo.

- Não é bem assim.

- É assim, sim. Eu te pedi em namoro em duas ocasiões. Tu me pediu um tempo, eu te dei esse tempo, mas o meu tempo também tá correndo por fora.

- Como assim?

- Eu não vou te esperar a vida toda, Gabriel. Eu sei que você tem medo porque eu sou amigo do Caetano, e sei também que tu tá esperando eu ir falar com ele, pra meio que pedir uma benção, mas a real é que eu não vou fazer isso. Quem era casado com ele, era você. Eu me declarei, mas não te obriguei a ficar comigo, também não fui atrás de você te pedindo pra largar ele e ficar comigo. Você quis isso. Você me quis, e eu tô aqui pra te ajudar a segurar todo e qualquer rojão, mas eu não vou fazer sozinho, só porque você tá com medo de sustentar os seus desejos.

Ele me quebrou. A segunda vez do dia. E me quebrou em um lugar muito particular, me quebrou no medo que eu estava de ter aquela conversa. Eu havia traído o Caetano, mas ele também havia me traído. O que de pior poderia haver? Estar há meses com o melhor amigo dele? A realidade é que eu me atropelei. Deveria ter conversado com Caetano quando entendi que as coisas com André estavam ficando sérias. Sorrateiramente eu deixei que os amigos mais próximos soubessem, na esperança que alguém fizesse a notícia chegar ao Caetano, mas de fato os amigos mais chegados eram os mais leais, porque ninguém contou a ele, e se contou, ele fez questão de não me procurar. A responsabilidade era minha. Eu deveria ser emocionalmente responsável por todo aquele caos, mas tudo o que eu sentia era culpa, e tentava compensar essa culpa dando o meu melhor pelo André dentro dos limites daquelas duas ruas de Botafogo. Mas ele tava certo. Ele merecia mais.

*

Não havia o que argumentar, também não havia mais o que falar. Inventei qualquer desculpa e voltei pra casa. Era cedo ainda, por volta das 14:30. Ele me disse que o evento começaria por volta das 20h, e que ele chegaria em torno das 20h30. Se eu quisesse, poderia encontrá-lo e iríamos juntos.

O período que tive em casa foi para pensar sobre tudo, principalmente sobre mim. Eu estava com medo do Caetano me matar, dos outros amigos me matarem, da minha família me matar e daquela livraria me matar. Cheguei a conclusão que só se morre uma vez. Eu era livre na minha totalidade e sempre lutei por mim e pelo meu direito de errar e acertar. Se eu tinha errado na condução de algo, estava disposto a viver aquilo da maneira como achava que deveria ser vivida. O telefone estava na minha frente, peguei e disquei para um número não acionado há muito tempo.

- Oi, Caetano? Sou eu. Tá podendo falar.

O resto foi consequência do que eu decidi fazer. Do que decidi viver.

*

20:30. Eu estava atrasado. Muito atrasado. Sabia que o André já havia saído. Sabia que todos os amigos já estavam lá e sabia que o evento já havia começado. Sabia que tinha que ir. Perdi a hora selecionando a roupa, o sapato e conferindo se tudo estava bom. Eu me arrumei. Eu me enfeitei. Eu me ajeitei. Eu interroguei meu espelho. Espelho que eu me olhava querendo entender como ele iria me ver. Estava tudo certo, era eu que estava em crise. Eu chegaria naquela livraria, só precisava de alguns minutos pra surtar.

*

21:15. Foi quando o carro de aplicativo parou em frente a Travessa. Cada passo entre o carro e aquele prédio teve o peso de mil navios se deslocando em direção à Helena de Tróia. Meu coração disparava, as mãos suavam, e eu já tinha dúvidas se ter escolhido estilo casual era o ideal, dada a quantidade de homens de terno que havia dentro daquela livraria. Dentre tantos, ele se destacava. Eu reconheceria aquele moreno de cabelo cortado em qualquer lugar do mundo. Talvez por ter brigado comigo, ele parecia ainda mais lindo. Fui caminhando em passos lentos até ele. A roda em que ele estava era grande, e eu não queria ser o centro das atenções. Quando estava perto, apenas encostei no seu ombro.

- Oi. - dei um sorrisinho tímido.

- Oi. - seu rosto se iluminou e ele não escondeu o sorriso.

- Eu vim.

- Você veio.

- Eu demorei? - coloquei minhas mãos nos bolsos.

- Só 3 meses. - ele sorriu e me abraçou.

- Me desculpa. Fiquei pensando que não tem muita distância pra guardar a falta que eu sinto de estar contigo. Se tivesse que fazer sinais de fogo pra tu entender isso, eu faria.

- Tá tudo bem. Eu já tinha entendido. Só queria que você entendesse.

- Aliás, eu aceito.

- O quê? - a essa altura nossos dedos já estavam entrelaçados, e apesar de estarmos sendo discretos, deveríamos retornar ao papo da roda.

- Ué, seus dois pedidos. Aceito ser seu namorado. - ele sorriu e eu o beijei. O primeiro beijo em público. Ninguém se importou. Ninguém nem reparou. Porque se há algo que aprendi com a vida, em 2 palavras: ela continua.

Dali em diante, permanecemos colados durante toda a noite. Por um breve momento, saí da órbita daquela livraria e peguei meu celular, em letras garrafais, uma mensagem do Caetano afirmando que iria usar toda a influência dele para acabar com a carreira do André e com a minha vida.

Escolhas. E consequências. Naquela noite, o que importava era que eu estava disposto a ir da Lapa até a Guanabara pelo André. Porque era olhar pra ele que a chama acendia. Por ele, todo e qualquer sinal de fogo.

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Comentários

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Tomara que os dois juntos tenham força pra enfrentar a bronca! Pq ela vem...

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