Os dias passaram, e a presença de Emilinha em Passa-Vinte tornou-se uma constante. Em alguns dias, vi ela ajudando na venda do Seu Zé, cuidando das contas e parecia tentar reconstruir sua vida, passo a passo. Noutros, ela ajudava na cantina de uma escola. Eu a via sorrir mais, mas os olhos, estes sempre carregavam uma sombra que não explicava tudo. Minha desconfiança sobre o que ela sofrera crescia, alimentada por pequenos gestos: o jeito como ela se encolhia quando alguém mencionava Belo Horizonte, ou como evitava falar dos amigos de Leonardo. Era como se ela guardasse um segredo que pesava demais para ser dito. Eu queria saber, mas temia a verdade.
[CONTINUANDO]
No coração de Passa-Vinte, onde o tempo se arrasta com a lentidão de um carro de boi, mas corta com a precisão de uma foice bem afiada, as manhãs se desdobraram sob um sol que, embora generoso em sua luz, é implacável com o cenho do homem do campo. Era uma dessas manhãs, com o ar ainda fresco, impregnado do cheiro de terra molhada e do orvalho que pingava das folhas, que eu voltava da venda do Seu Zé Formoso, carregando dois litros de leite, um pacote de pães e quase meio metro de fumo de rolo. O caminho de terra, sulcado pelas rodas dos carros e pelas pegadas dos roceiros, parecia sussurrar histórias antigas, como se cada pedra guardasse uma lembrança dos dias em que eu, ainda menino, corria por ali com Emilinha, rindo sob o sol, alheio às dores que o futuro traria.
Já chegando em casa, mas ainda ao longe, sob a copa frondosa de um pé de jabuticaba, cuja sombra se estendia como um convite à pausa, avistei meu pai e o incorrigível Barnabé, figuras tão distintas quanto o dia e a noite, mas unidas pela cumplicidade que a vida simples no campo forja entre homens que compartilham a mesma criação. Barnabé, com a desenvoltura roliça de quem já subira muito em árvores, tentava desajeitadamente catar algumas pretinhas, com dedos ágeis, mas pernas titubeantes, proferia gracejos que eu não ouvia, mas imaginava fazer o ar vibrar. Meu pai, ao seu lado, ria com a boca meio torta, um riso que escondia mais do que revelava, afiando uma foice contra uma pedra com a paciência de quem sabe que o tempo, como o ferro, só cede à insistência. A cena, tão trivial, tinha um quê de eternidade, como se o mundo, por um instante, se resumisse àquelas risadas, àquela sombra, aquele metal cantando contra a pedra.
É impressionante como as coisas mais simples, em sua repetição, tornam-se símbolos do que somos. Um pé de jabuticaba, com suas frutinhas pretas que explodem em doçura, é mais que uma árvore; é a memória de dias felizes, de mãos infantis que disputavam seus frutos, de promessas trocadas sob sua sombra. Uma foice, com seu brilho frio, é mais que uma ferramenta; é o trabalho, o corte, o destino que separa o que foi do que será. E o riso, ah, o riso! Esse é o disfarce sutil, a máscara que usamos para esconder o que o coração não ousa confessar. Ali, naquele instante, sob o pé de jabuticaba, eu via não apenas meu pai e Barnabé, mas a própria Passa-Vinte, com suas alegrias miúdas e suas dores profundas, que se escondem nos silêncios e nos olhares.
Aproximei-me, com o passo leve de quem teme quebrar o encanto, e indaguei, quase por hábito, como quem joga uma pedra num lago para ver as ondas:
- Pai, a quantas andam Seu Zé Maria e Dona Clara? Não os vi desde que cheguei...
Meu pai suspendeu o gesto, a foice parando em meio ao ar, e seus olhos cravaram nos meus com uma gravidade que não lhe era comum, como se a pergunta tivesse buscado por algo já enterrado. Após um suspiro, longo como os caminhos de terra que cruzam Passa-Vinte, respondeu, com a voz pausada de quem pesa as palavras como se fossem ouro:
- Mudaram-se, Paulinho. Faz meses.
- Uai, mas... por quê? - insisti, sentindo o chão da curiosidade ceder sob meus pés, como se a resposta já me ameaçasse com verdades que eu não queria ouvir.
- Vergonha, ora! Vergonha do que a filha fez, por certo... - Murmurou Barnabé, com um muxoxo que misturava desdém e uma sabedoria rústica, típica de quem já viu muitos dramas sob o sol de Minas.
- Ara, Barnabé! - Retruquei, o sangue enrubescendo o rosto, como se ele tivesse profanado algo sagrado, um nome que, mesmo ferido, ainda ecoava em mim com a força de um primeiro amor.
- Ele não tá errado não, fio! - Atalhou meu pai: - Quando Emilinha se foi, e logo depois ocê também, a língua do povo desandou a falar, e nada de bom. Diziam que ela trocou ocê por um playboy de Beagá, o tal de Leonardo.
- Vixe, pai, mas...
- É verdade! A gente sabe que é. – Ele insistiu: - Aí, quando Seu Zé e Dona Clara a buscaram, sob vara, todos cravaram que ela fez coisa feia.
- Coisa feia?
Mas meu coração, já inquieto, como se pressentisse a tempestade que as palavras trariam, sabia que o granizo viria primeiro. Emilinha, a menina de olhos misteriosos que outrora corria comigo pelas veredas de Passa-Vinte, colhendo flores silvestres e sonhando com um futuro que parecia tão certo, agora era um nome que pesava:
- Paulinho, que é isso? Mulher que corre atrás de homem, busca o quê, rapaz? - Barnabé falou, um meio sorriso no rosto, a malícia que feria mais que esclarecia, como se o mundo se resumisse às suas verdades brutas, onde o amor é apenas um disfarce para desejos menos nobres.
Quase o enfrentei, com o punho cerrado e o orgulho ferido, mas meu pai, com a serenidade de quem já viu muitas guerras, interveio:
- Se foi ou não, não sei. Mas ela voltou contrariada, trancou-se em casa, negando até a visita do padre. Até que uma tia, acho que a mãe do tal Leonardo, dizem, veio com prosas mansas e convenceu os pais a deixá-la ir pra capital. Não foi decisão leve, Paulinho. Cederam, enfim, como quem se entrega a correnteza, sabendo que pode te levar rápido além, mas também ao fundo, afogando os sonhos.
- Leonardo... Quem é Leonardo!? O tal que virou a cabeça da moça? - Barnabé insistiu, os olhos brilhando com a curiosidade de quem fareja segredos, como um cão que segue o rastro na mata.
Meu pai apenas assentiu, com um meneio sutil, quase imperceptível, como se temesse que o gesto pudesse alavancar alguma crise mais profunda em mim:
- Essa tia, aposto, conspirava com o rapaz. - Continuou Barnabé, com a convicção de quem já desvendou muitos enredos: - Já vi muito disso, dessas tramoias de cidade que enredam moça do interior. Uma mãe que defende o filho, um rapaz que promete o mundo, uma moça que acredita... e pronto, tá feito o imbróglio.
- Só que, aqui em Passa-Vinte, onde todos se julgam uma só família, ninguém perdoou Emilinha. - Prosseguiu meu pai, com um tom que misturava piedade e reprovação, como se ele próprio hesitasse entre julgar e compreender: - Seu Zé e Dona Clara, sob olhares tortos, foram se afastando, como se o pecado da filha manchasse a reputação deles, e no fim manchava mesmo. Logo, mudaram-se pra Borda do Rio Doce, abriram um restaurante. Dizem que prosperam, mas quem prospera carregando um peso desse no peito? A língua do povo, Paulinho, é mais afiada que esta foice e corta onde o olho não vê.
- E Emilinha, pai? Por que não foi com eles?
- Boa pergunta! Por que a moça ficou aqui? Só pra atazanar as ideia do Paulo? – Barnabé riu, zombeteiro, com o descaramento de quem transforma a dor alheia em gracejo, como se a vida fosse um palco para suas tiradas.
- Sei não... - Respondeu meu pai, pensativo, como quem tateia uma verdade no escuro: - Soube que faz trabalhos voluntários numa escola, na igreja. Também tem ajudado o Seu Zé Formoso com as contas lá na venda. Acho... que ela está tentando viver. Quem sabe, busca o próprio caminho. Só que, aqui em Passa-Vinte, onde cada passo é vigiado pelas tricoteiras de alpendre, o que se pode encontrar além de olhares e maledicências?
A conversa, como um espelho embaçado, revelou-me que cada um colhe o que planta, ainda que o fruto seja amargo. Curioso como o destino tece suas tramas? Plantamos jabuticabas, sonhando com sua doçura, mas se a regamos com fel, como não colher a beleza núbia com sabor de jiló. Sonhamos com amores puros, mas são raros, pois acabamos abraçando sombras que nos confundem a alma. Saber que Emilinha ficara, enquanto seus pais partiram, só complicava o novelo de dúvidas que me atormentava. Seria ela uma alma perdida, buscando redenção, ou apenas uma peça solta no tabuleiro que o destino insistia em jogar? O menino Paulinho, que outrora lhe dera flores roubadas do quintal da Dona Mariquinha, queria acreditar na primeira; o Coronelzinho, endurecido pelo sol de Goiás e pelas lições de Barnabé, temia a segunda.
No começo daquela noite, sem ter o que fazer em casa, saí a andar. Acabei indo onde todos os caminhos pareciam se cruzar em Passa-Vinte: à venda de Seu Zé Formoso. Ali, com suas prateleiras tortas e seus sacos de cereais empilhados, era o coração pulsante de Passa-Vinte, o lugar onde as línguas se encontravam para tecer e desfiar reputações. Seu Zé, com seu jeito de patriarca, servia um copo de pinga a um velho de chapéu coco, um senhor que mais queria do que tinha respeito chamado Coronel Del Rei, tudo por causa de seu carro. Como quem não quer nada, mas cheio de interesses ocultos, perguntei, se ele vira Emilinha. O silêncio que se seguiu foi mais eloquente que qualquer resposta, não pelo Seu Zé, que parecia ainda acreditar na bondade ou talvez na inocência da menina, mas aos demais... Soube de pronto que o nome dela era um tabu, uma ferida que Passa-Vinte não aprovava:
- Ela não veio hoje, Paulinho. - disse Seu Zé, por fim, com a voz baixa, enquanto me servia uma branquinha: - Faz uns trabalhos cá e lá, ajuda quem precisa, mas não é mais a mesma, não. O povo fala, cê sabes como é...
E o povo fala? Ô se fala! E como fala... Em Passa-Vinte, a fofoca é como o sangue: ninguém se dá conta dele, mas sabe que ele tá ali e é vital. Emilinha, outrora a menina que encantava com seu riso fácil e seus olhos sonhadores que pareciam clamar o amanhã, tornara-se um espectro, uma figura que atravessava as ruas sob olhares de censura e cochichos mal disfarçados. E eu, que carregava no peito o peso de um amor antigo, sentia-me dividido entre a vontade de defendê-la e o receio de que ela, com seus erros, tivesse cavado o próprio abismo e ainda pudesse me levar junto.
Lembrei-me, então, de uma tarde longínqua, quando, ainda crianças, sentamos à beira do riacho que corta a vila, jogando pedrinhas na água e prometendo, com a inocência dos que não conhecem o futuro, que nunca nos separaríamos. Por que aquela Emilinha não cumpriu o acordado? Teria ela se perdido antes ou depois das ruas de Beagá? Será que ainda habitava, escondida, na mulher que agora evitava os olhares da vila? Tudo levava a crer que sim, mas também que não, uma dualidade que me desafiava constantemente.
Por uma dessas coincidências que só o destino explica, quando eu já voltava da venda, encontrei a Dona Clara na saída da igreja. Ela, que outrora me recebia com um sorriso largo e um prato de bolo de fubá, agora parecia outra, mais velha, encolhida, entristecida, como se o peso dos anos tivessem chegado, 20 em 1. Perguntei-lhe, com a cautela de quem teme ferir, como estavam as coisas. Ela hesitou, os olhos acanhados, e disse, com a voz entrecortada:
- Paulinho, tu sabes como é... O povo não perdoa. A gente tentou, mas não deu mais pra ficar. Emilinha não quis vir e ela tá tentando, mas é difícil, muito difícil... Só peço que não a julgue, meu filho. Ela errou, mas quem não erra?
Suas palavras, embora simples, pesaram em mim como chumbo. Havia ali uma súplica, um pedido de clemência que eu não sabia se podia atender. Respondi com um aceno vago, desejei uma boa noite e disse que um dia passaria em seu novo restaurante, mas ainda incapaz de prometer algo que meu coração não decidira.
Naquela noite, enquanto o céu parecia ter menos estrelados que de costume, Barnabé, com sua voz de trovão, anunciou que partiríamos em uma semana. Goiás, com seus campos vastos e precisão de trabalho, nos chamava, como um canto de sereia que promete aos corajosos, ou seria incautos? Pensei em ficar, preso à presença de meu pai e, confesso, ao espectro de Emilinha, que ainda rondava meu coração como uma brisa que teima em não virar vento ou calmaria. Mas Barnabé, com a astúcia de quem sabe dobrar vontades, pareceu antecipar o que me queimava no peito:
- Convenci teu pai, Paulo! Ele vem com a gente... Reformo a casa de vocês, alugo, tiro o gasto, e o resto vira poupança pra ele. Um cabra forte como o Ciro? Não tem melhor!
- Convenceu... Seu Ciro!? - Perguntei, pasmo, como quem ouve que o sol resolveu nascer à meia-noite:
- E quem Barnabé Bustamante não convence, rapaz? - Riu ele, com a arrogância de quem já venceu muitas prosas: - É verdade ou não é verdade, Ciro?
Meu pai, sentado num banco tosco, com os olhos turvos de quem pesa o passado contra o futuro, murmurou:
- Não sei se é boa ideia...- Claro que é, homi! Trabalho, salário, umas cabeças de gado a preço de banana, aluguel... O que tu quer mais? - Insistiu Barnabé, com a empolgação de um mascate vendendo sonhos.
Ciro me encarou, como se buscasse em mim a resposta que ele próprio não encontrava:
- E ocê, Paulo, o que acha?
Hesitei. O plano era vantajoso, e tê-lo por perto aplacava meu maior temor: a solidão de um filho que, mesmo endurecido pelo sol, ainda precisava do pai. Sorri, com um leve aceno:
- Bom demais, uai! Já tava cansado dos roncos desse aí. - Apontei Barnabé, com um meneio de cabeça, um gesto brincalhão: - Vai ser bom morar co’cê de novo, pai.
Ciro ruminou em silêncio, como quem mastiga uma ideia indigesta, mas logo abriu um sorriso, tímido:
- Uai! Se é assim então... Então tá bão. Vou co’cês.
A notícia, como faísca em pólvora seca, correu Passa-Vinte mais rápido que o vento nas folhas de eucalipto. Na venda do Seu Zé Formoso, as línguas começaram a se digladiar, tentando achar um culpado por aquela decisão. Velhos de chapéu puído, moças de olhos curiosos, até as crianças que corriam atrás de balas, todos perguntavam: “Paulo vai? Mas Ciro, também?” Apenas uma alma, ao que parece, não se alegrava com minha partida, e ela, com a precisão de um relógio que marca as horas fatais, logo me procuraria.
Os dias que se seguiram foram uma dança de preparativos e inquietações, passou correndo mais rápido que seriema na estrada de terra. Barnabé tinha negócios a resolver na fazenda, e eu, como seu braço direito e agora administrador em formação, precisava acompanhá-lo. A ideia de deixar Passa-Vinte novamente me trazia um misto de felicidade, alívio e apreensão. Felicidade, porque meu pai estaria comigo; alívio, porque a distância talvez me ajudasse a pôr os pensamentos em ordem; e apreensão, porque deixar Emilinha para trás, com suas súplicas silenciosas, parecia uma traição ao menino Paulinho que ainda vivia em mim.
Eu caminhava pelas veredas, recordando os tempos em que Emilinha e eu, ainda crianças, corríamos atrás de vagalumes, rindo como se o mundo fosse eterno. Lembrava-me do dia em que, com a coragem típica de um menino serelepe de dez anos, roubei uma maçã do pomar do Seu Alfredo para lhe oferecer, e ela, com um sorriso que iluminava mais que o sol, aceitou-a como se fosse uma joia. Onde estava aquele Paulinho? Onde estava aquela Emilinha?
Uma tarde, enquanto ajudava meu pai a consertar uma cerca no quintal, vi Dona Mariquinha, a vizinha que sempre tinha um doce de leite para oferecer, parada à porta de sua casa, olhando-me com uma mistura de pena e curiosidade. Aproximei-me, cumprimentando-a, e ela, com a voz baixa, como quem teme ser ouvida pelo vento, disse:
- Paulinho, cuidado com o que ouve por aí. Emilinha... ela tá sofrendo, coitada. Mas o povo não perdoa, não. Só Deus sabe o que ela passou e se alguém tem que julgar, é ele. Só ele.
Suas palavras, embora gentis, eram um aviso. Em Passa-Vinte, a piedade vinha sempre acompanhada de um julgamento, como se a compaixão fosse apenas um pretexto para reforçar a culpa alheia. Agradeci, com um aceno, e voltei ao trabalho, mas a imagem de Emilinha, sozinha, enfrentando os olhares dali, não me saía da mente.
Na véspera da partida, numa sexta-feira abafada, com o céu tingido de um laranja que me apertava o peito, Emilinha surgiu na varanda de casa. Eu, fingindo ajustar o motor da Bandeirante, ouvi seus passos leves sobre as pedrinhas da estrada. Vestia um simples vestido de algodão azul, que realçava a tristeza em seus olhos, como se o tecido fosse um espelho da própria alma. Trazia uma cesta coberta por um pano, exalando o aroma quente de broas de pau a pique:
— Oi... Paulinho... Eu... Eu trouxe uma broa de pau a pique pro’cês... - Disse, com uma timidez que traía o peso de mil palavras não ditas: - Pro’cês levar na viagem.
- Brigado, Emilinha. Não precisava. - Respondi, limpando as mãos do pó imaginário num pano qualquer: - Quer entrar? O pai tá na cozinha, e o padinho... deve tá lá na venda, tentando arrancar uma pinga especial do Seu Zé.
Ela sorriu, um sorriso frágil como folha ao vento:
- Ele tá lá, sim, bufando porque não consegue barganhar aquela cachaça que só ocê conseguiu.
- Há! Então vai demorar. Seu Zé não vende aquela pinga pra ninguém, nem sei porque ele me deu duas garrafas naquele dia? – Brinquei, fazendo ela sorrir: - Vamô entrá?
Ela hesitou, como se soubesse que não era bem-vinda como antes:
— Melhor não. Eu... prefiro ficar aqui fora, mas será que a gente pode conversar um pouco? — Perguntou, a voz baixa, quase uma súplica.
Assenti, sentindo o coração acelerar, e a convidei para um passeio de jipe. O destino, como se guiado por um capricho do acaso, nos levou ao pesqueiro do Paulo do Seu Pedro, quase deserto àquela hora. Sentamos numa mesinha de madeira, sob a sombra de um ipê que começava a florir, com dois copos de tubaína que pareciam insuficientes para aplacar o calor ou o silêncio. O peso entre nós não vinha da falta de palavras, mas do excesso do que ainda não ousávamos dizer. Ela respirou fundo, como quem busca coragem no fundo da alma, e começou:
- Paulinho, sei que amanhã cê tá indo... Não tenho mais lugar na tua vida, mas precisava te contar... coisas.
- Conta, uai. - Disse, tentando manter a voz firme, embora o Coronelzinho, aconselhado pelo bruto Barnabé, temesse o que viria.
— Cê falou que eu precisava falar com alguém o que aconteceu comigo lá em Beagá... Eu já fiz isso. Já contei pra minha mãe, pra Padre Cláudio, mas... – Ela suspirou olhando para um dos lagos do pesqueiro: - Não adianta quantas vezes eu faço isso, nada muda, nada melhora...
- Cê quer falar pra mim?
- Querer eu quero, mas eu tenho medo.
- Medo de mim!?
- Medo do que cê vai pensá de mim...
Segurei suas mãos, buscando nos olhos dela a verdade que somente palavras poderiam traduzir:
- Eu quero saber a verdade. Não vou te querer mal por isso, porque sei que a culpa foi do talzinho lá. Não sei se eu vou poder te ajudar, mas se eu puder aliviar o seu fardo, eu faço.
Ela sorriu, um sorriso doce como doce de batata, e começou, hesitante:
- Quando eu tava lá em Beagá, com o Leonardo... não foi como eu imaginava... — Pausou, como se cada palavra doesse: — Ele ficou diferente do que mostrava aqui. No começo, foi a mesma coisa, muita prosa boa, charme, promessas, mas depois ele mudou. Ele queria que eu fosse quem ele queria, não quem eu era e eu... eu fiz coisas que não queria, porque achava que não tinha escolha, mas também porque achei que talvez fosse um medo bobo meu, de moça do interior...
Meu coração parou por um instante. Havia algo no jeito como ela falava, na hesitação, no tremor da voz, que sugeria mais do que ela dizia. O ciúme, que sempre me acompanhava, deu lugar a uma desconfiança nova, mais sombria. O que ela queria dizer com “coisas que não queria”? A dúvida pulou fora da minha boca, atropelando minha língua:
— Que coisas, Emilinha? — Perguntei, tentando não pressioná-la, mas precisando entender.
Ela desviou o olhar, fixando-se em um ponto distante, como se tentasse fugir da memória:
— Ele gostava de mandar em mim... Acho que eu já te falei isso?
— Já.
— Então... – Ela se calou, desviando o olhar de mim: - Teve uma noite... que ele... Acho que ele tinha bebido e a tia não tava em casa, tinha ido no médico ou fazer uns exame, não lembro bem... Ele chegou manso, amoroso, e veio me tentar...
Lágrimas começaram a rolar por sua face, mas esperei que ela continuasse, pois ela parecia disposta:
- Eu... Eu não queria, mas ele queria. E foi tentando, tentando, tentando, até... – Ela se calou novamente: - Ele me levou pro quarto dele e fez...
- Fez?
- Me fez mulher... Ele me tomou, Paulinho.
- Cê quis?
- Não! Não queria... Mas ele já vinha me tentando havia tempo. Sei lá... Sabe aquele ditado de que “água tanto bate e pedra dura até que fura”? Acho que eu já tava meio curiosa, mas não achava justo fazer com ele. Eu... Eu queria que fosse com você...
Acho que tive um tipo de vertigem, porque me deu um branco que pensei que fosse empacotar. Não sei quanto tempo durou, mas só voltei a mim quando senti ela me dando uns tapinhas no rosto, falando o meu nome e me encarando preocupada:
- Tô bem! Tô bem... – Resmunguei e pigarreei: - Ocê se deitou com ele, é isso?
- Ele se deitou em mim. Ele quis, ele fez, eu só... não tinha o que fazer e deixei.
- Foi só uma vez? – Perguntei, querendo diminuir o efeito que aquilo causou em mim, mas só piorei tudo: - Perguntinha de jeca, né? É claro que não foi só uma vez... você ficou morando um tempão lá.
Ela se encolheu, calando-se por um instante e eu pedi desculpas, porque não precisava ter me alterado, embora fosse quase impossível me conter depois de ouvir que a minha namoradinha de infância, adolescência e a mulher que eu queria desposar, havia se deitado com outro, um outro que eu nunca gostei, mas passava a odiar naquele momento:
- Não foi só uma vez... – Ela mesma continuou, apertando as mãos, sem coragem de me encarar: - A gente fez bastante. Bastava a tia sair que a gente fazia e quando ela passou a ficar mais por causa da doença, a gente começou a fazer fora, em motéis.
- Hotéis?
- Não, motéis... Cê sabe, é tipo um hotel, mas só pra quem quer fazer essas coisa.
Não falei nada, mas saber eu não sabia, só imaginava. Ela estava mesmo decidida e voltou a falar:
- Só que ficava caro, né? Ir todo dia em motel não dava. Então, um dia, ele me levou na casa de um amigo dele, Fernando... e a gente fez... lá.
- Na casa do outro?
- É. Pior é que esse Fernando quis cobrar um pedágio...
- Tô entendendo não... – Resmunguei.
- O Leonardo me disse que o Fernando deixaria a gente fazer as coisa lá sempre que a gente quisesse desde que eu fizesse um agrado nele.
- Nele quem, no tal Fernando?
- Isso...
Nossinhora! Senti um calafrio me percorrer a espinha e terminar na nuca. Olhei em pânico para ela, mas ela nada de olhar para mim. Ela nem chorava mais, seus olhos só ficavam molhados numa tristeza de dar dó:
- No começo foi só... um boquete.
- Cê chupou ele!?
- Sim, eu... – Ela me encarou, curiosa: - Cê sabe o que é um boquete?
- Ara! Claro que sei, sô.
- Cê já andou ficando com outra, Paulinho?
- POPARÁ! Não fui eu que te abandonei. Ocê mentiu e fugiu com aquele lá. Eu toquei a minha vida. Então, o que eu fiz ou deixei de fazer, não é da sua conta. – Falei com uma voz mais seca do que necessário.
Ela se calou e voltou a olhar na direção do lago. Então, suspirou e balançou a cabeça, concordando:
- Tá certo! Cê tá muito certo... A errada fui eu. Desculpa. – Suspirou novamente e disse: - Então, começou com boquete, mas na quarta ou quinta vez, ele quis mais.
- O tal Fernando?
- É... Ele quis me tomar também e o Leonardo concordou.
- Cê deixou o tal Fernando te usar também?
- E não foi só ele. Teve também o Gustavo, o Felipe, o Antônio...
- Como é que é!? Cê se deitou com todos eles? Mas por que? Por que ocê não falou pra sua tia o que tava acontecendo?
- Eu tentei... Depois da primeira vez com o Fernando, eu disse que não queria mais, mas ele me convenceu de que era coisa rápida com ele e assim a gente teria um lugar para a gente se “conhecer” ainda melhor. Num dia em que fomos lá, o Gustavo e o Felipe também tavam, eu disse que não iria fazer, nem com ele, nem com ninguém. O Leonardo aceitou, ou fingiu... Então a gente começou a beber, a fumar um cigarrinho magrinho e só sei que quando me dei conta, já tava com o Gustavo em cima de mim, eu pelada e ele dentro...
Eu escondi meu rosto entre as minhas mãos, horrorizado com a confissão. A Emilinha não só tinha me abandonado, como também se entregado as mais libidinosas experiências da sua vida. Ela estava mais rodada que a velha Rural Willys do Barnabé, talvez só perdesse para a Vivi da casa de Madame Cícera, mas só talvez... E o pior, agora ela não queria mais parar:
- Nesse dia, eu me lembro do Gustavo e do Fernando, mas acho que o Leonardo e o Felipe também fizeram comigo.
Eu queria brigar com ela, mas sabia que se fizesse isso, ela se calaria e, pelo jeito, ela ainda tinha mais a contar, mas acabou se calando, talvez esperando alguma reação minha, que veio:
- Foi só isso?
Ela demorou um pouco a responder, mas quando falou, me fez tremer:
- Não.
- Não!?
- Não... – Ela deu-me uma olhada de canto de olho e continuou: - Depois de uns tempos... Sei lá! Acabei sendo convencida pelo Leonardo e pelos outros que aquilo era normal, coisa de cidade grande. Então, quando eu e o Leonardo ia lá fazer as coisa, eu já fazia com o Fernando também e com os outros se também tivessem lá. Às vezes com um, com dois,Uai... – Resmunguei e desdenhei da novidade: - Ia ser mesmo. Se tinha dois ou três lá, é claro que eles iriam querer fazer na vez deles, né?
- Né... – Ela balbuciou, balançando a cabeça afirmativamente.
- Né, Emilinha!? – Insisti.
- Depois de um tempo não tinha essa de vez. Eu chegava lá e já ia fazer com quem quisesse fazer, às vezes só com um, com dois, comJuntos!? – Eu a interrompi.
Ela balançou afirmativamente a cabeça, mordendo os lábios e ainda confirmou de boca:
- Sim, juntos...
- Nossinhora! Não tô... acreditano nisso. – Comecei a coçar a cabeça desesperadamente: - Cê deitou com eles todos juntos, de uma vez? Mas como?
- Cê ocê já sabe como se faz com uma mulher, então sabe que mulher pode fazer de várias formas, Paulo! – Ela falou brava comigo, me olhando, mas logo se virou para o lago: - Desculpa! Fiz! Fiz besteira de tudo que é jeito: com a mão, com a boca, com a minha rosinha, com a minha bunda... Fiz. Fiz. Pronto! Já pode me chamar de puta, porque eu fui!
As palavras dela caíram sobre mim como uma pedra. Afinal, não era apenas controle o que o tal Leonardo teve sobre ela, foi mais intenso, profundo, e a marcaria por toda a vida. Ainda assim, havia algo mais, algo que ela não dizia diretamente, mas que pairava em seus gestos, no jeito como seus ombros se encolhiam enquanto contava aqueles absurdos para mim. A ideia de que ele a obrigou a se submeter, não apenas a ele, mas a outros, me revirava o estômago. Meu sangue ferveu, mas o Coronelzinho, agora homem feito, segurou as rédeas, sabendo que pressioná-la só a machucaria mais:
— É... Parece que ele te machucou de verdade?
Ela não respondeu de imediato. Seus olhos marejaram e ela suspirou profundamente:
— Ele me fez sentir que eu não era mais eu, ou de mais ninguém. — Disse, por fim, a voz tremendo: — E às vezes, nos piores momentos, eu achava que era minha culpa, que eu tinha escolhido aquilo, que merecia expiar os meus pecados daquele jeito, fazendo outros.
A confissão foi suficiente para plantar em mim uma semente de raiva, ódio mesmo contra o talzinho. A imagem dela, sorrindo forçada diante de todos, sendo exibida como um troféu, e dos amigos também para depois se entregar como um objeto a eles, me doía. E, no entanto, havia também uma parte de mim, a parte moldada pelas advertências de meu pai e de Barnabé, que se perguntava se ela não estaria usando aquele sofrimento para me prender de novo. Seria ela uma vítima, como parecia, ou estaria tentando, com lágrimas e palavras escolhidas, criar alguma conexão que outrora tivemos?
— Por que cê tá me contando tudo isso agora? — Perguntei, a voz saindo mais dura, inconformada com a verdade nua e crua.
Ela finalmente me encarou, os olhos brilhando com lágrimas que não caíam:
— Porque eu não quero que você vá embora pensando que eu sou quem eu era antes de abandonar ocê. — Disse, a voz firme, apesar do tremor: — Eu errei com você, Paulinho. Errei feio! E o que aconteceu em Beagá... me mudou. Eu não sou mais aquela menina boba que acreditava em promessas. Só quero que você saiba que... que eu ainda te amo. Amo demais da conta, muito mesmo, a ponto de querer que você vá embora e me esqueça, e que tente ser feliz.
A palavra “amo” caiu sobre mim como uma flecha e eu, desprevenido, não soube como desviar. O menino Paulinho queria abraçá-la, prometer que tudo ficaria bem, mas o Coronelzinho, o homem que endurecera o couro debaixo do sol quente, hesitava. Era amor ou era uma tentativa de me segurar, de me fazer ficar? A sombra do que ela sofrera, misturada com a possibilidade de manipulação, tornava tudo confuso:
— Emilinha, eu... vou embora. — Confessei, as palavras saindo com dificuldade: — Uma parte de mim até quer ficar e te proteger, mas a outra... a outra deixou de te querer quando você beijou ele, usou o presente dele e não me escolheu. E agora, ouvindo tudo isso, que você se entregou e... e... e depois quis... eu não sei se é pena, raiva, ou algo mais, mas eu só não posso...
Ela assentiu, como se já esperasse aquelas palavras:
— Eu não te peço pra ficar, Paulinho. Só te peço pra não me julgar como sei que todo mundo de Passa-Vinte faz nas sombras, mesmo sem saber o que eu passei. E, se um dia você puder, quem sabe, me perdoar, de coração, eu ficarei muito gradecida.
O silêncio que se seguiu era pesado, mas necessário. Era como um carimbo selando de vez o nosso fim. Levantei-me, ajustando o chapéu, e ofereci a mão para ajudá-la a se levantar:
— Vambora? — Perguntei com um resquício de sorriso, tentando aliviar a tensão: — O pai vai querer fazer um café para comer com aquelas broas.
Ela sorriu, um sorriso triste, e aceitou minha mão, mas ao chegarmos em Passa-Vinte pediu-me para deixa-la em sua casa. Ela desceu e se foi para dentro, sem olhar para trás. Fui para a minha casa, mas a conversa ficou gravada em mim, como uma ferida remexida por uma faca de serra, sem chance de cicatrizar sem deixar uma marca muito da feia. Meu pai, sentado à mesa ao lado de Barnabé, olhava umas anotações sobre a reforma da casa e ao me ver, ofereceu um café, estranhando a cesta em minhas mãos:
- Uai! Emilinha tá aí?
- Não. Ela já se foi, e acho que para sempre.
Barnabé, com seu jeito expansivo, fez um comentário jocoso qualquer sobre a broa estar com cara boa, mas sem o calor que reservava aos amigos de confiança.
Naquela noite, enquanto arrumava minhas coisas para a viagem, as palavras de Barnabé duelavam com as dela, ecoando advertências e medos que eu já carregava. Emilinha, com sua confissão, havia plantado em mim uma raiva cruel: era ela uma vítima, precisando de proteção, ou uma mulher que se entregou consciente aos prazeres da carne? Eu não sabia, mas esperava não ter mais o que descobrir, pois o meu coração, esse eterno sofredor, não teria condição de aguentar mais uma decepção.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO SÃO FICTÍCIOS, E OS FATOS MENCIONADOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL SÃO MERA COINCIDÊNCIA.
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