Capitulo 32 - Manhã gloriosa!
Théo:
– A escola tem sido ótima, sabia? – disse com um sorriso no rosto. – Recuperei meus amigos e tenho me divertido muito com eles. Não é mais aquela coisa superficial de antes, em que eu usava uma máscara de felicidade.
Olhei para ele, que mantinha os olhos no chão, silencioso, mas atento.
– Em casa as coisas também mudaram. Mamãe, finalmente, parece estar me aceitando. Ela brinca comigo, me abraça quando chego... Sonhei com isso durante toda a minha vida, e agora virou realidade. Até meu relacionamento com o Daniel está diferente. Não que fosse ruim antes, mas eu sentia inveja dele, porque ele pode dizer que teve um pai. Eu não tive. Meu pai foi um verdadeiro filho da puta comigo. Isso abriu feridas tão profundas que eu acabei me tornando infeliz. Cheguei, inclusive, a sentir raiva do meu irmão por causa de uma inveja doentia.
Sorri, ao perceber que isso já não me afetava mais.
– Pobre Dany... – murmurei. – Ele não teve culpa de nada, mas mesmo assim desejei que ele fosse infeliz. E esse desejo acabou se realizando, porque ele viu o pai como eu sempre o enxerguei: um homem frio, doente, que apontou uma arma pro próprio filho. Um pai que preferia rejeitar os filhos homossexuais simplesmente por medo da própria homossexualidade. Um homem que achava certo atormentar as pessoas que deveria proteger, achando que, na mente distorcida dele, aquilo era o melhor para nós.
– Já pensou que, talvez, na mente dele, ele realmente acreditasse que Deus condenaria os filhos ao inferno? – ele ergueu os olhos azuis e me encarou.
– Uma forma bem estranha de tentar fazer os filhos seguirem a vontade de Deus – comentei com um sorriso irônico.
– Você acredita em Deus, Théo? – perguntou ele, aquela figura raquítica do outro lado da mesa.
– Não – respondi com firmeza.
– Por quê?
– Porque não faz sentido – dei de ombros. – Esse Deus que pregam como soberano e infinitamente bom... mais parece um garoto mimado. Dizem que ele salva as pessoas, mas só as salva do Diabo. E quem criou o Diabo?
– Dizem que o Diabo era um anjo que se corrompeu pela inveja – respondeu com voz baixa e arrastada. – Ele queria ser maior do que o Senhor.
– A Bíblia diz que, no princípio, só existia Deus – continuei, e ele assentiu. – Então foi Ele quem criou tudo, inclusive a inveja. E se Ele sabe de tudo, também sabia que Lúcifer se deixaria contaminar por ela, mas mesmo assim o criou. Na minha visão, Deus quis ter um inimigo pra se divertir jogando com as almas humanas. Ele é um mimado que exige adoração eterna e castiga quem não o obedece. Criou o Diabo sabendo que isso traria sofrimento e morte. Para mim, Deus é mais cruel que o próprio Diabo.
– Se é nisso que você acredita... – ele deu de ombros. – Mas, afinal, por que está aqui? Da última vez, você disse que queria que eu apodrecesse nesse lugar. Que eu não merecia perdão. Mudou de ideia?
Olhei para o homem que um dia eu temi e percebi o quanto ele havia se deteriorado. Perdera aquele porte físico invejável que qualquer jovem de vinte anos desejaria ter, mesmo ele já beirando os cinquenta. Seus cabelos loiros e brilhantes estavam agora grisalhos e opacos. A pele, pálida e marcada pelo tempo. Meu pai parecia estar se desfazendo diante dos meus olhos.
– Deixei pra trás toda a inveja que sentia do Bernardo. Abandonei o ressentimento que guardava da minha mãe. Abri espaço para a felicidade, para o amor. Mas ainda precisava vir aqui. Precisava saber como me sentiria ao te ver.
– E o que sentiu?
– Nada – respondi, sorrindo. – Não me importa se você vai sair amanhã, se vai apodrecer aí dentro ou se vai continuar se consumindo até a morte. Nem a raiva que eu sentia por você existe mais. Eu só quero viver em paz, sabendo que você não tem mais nenhum poder sobre mim. O que sinto agora é apenas pena. Pena de alguém que passou a vida sendo amargo e infeliz.
– Então vai ser assim, filho? – os olhos dele se encheram de lágrimas.
– Sinto muito, mas meu pai morreu no dia em que encontrou o filho na cama com o vizinho – falei, levantando-me do banco de concreto, sentindo como se tirassem uma tonelada das minhas costas. – É uma pena nunca tê-lo conhecido. Talvez a gente se desse bem.
– Sinto muito por ouvir isso, Théo – disse ele, com tristeza. – Mas, como falei da última vez: eu te amo. Sempre tive inveja da sua coragem de ser quem é. Adeus, filho.
– Adeus, Jorge – respondi, recusando-me a chamá-lo de pai.
Deixei-o no pátio. Dois guardas logo se aproximaram para levá-lo de volta à cela. A cada passo em direção à saída, meu coração batia mais forte. Eu sentia que, enfim, estava livre para viver minha vida sem dor. Corri para abraçar Samuel assim que o vi do lado de fora da penitenciária. Ele retribuiu o carinho, achando que eu fosse chorar... mas eu apenas ri. Ri de alívio. Ri de liberdade. Eu estava livre da negatividade que me perseguiu desde criança. Livre para viver sem mágoas. Livre para ser, finalmente, feliz.
– Obrigado por ter vindo comigo – falei.
– De boa – ele respondeu, beijando minha testa. – Mesmo quando você me acorda no meio da madrugada, depois de uma festa, e eu ainda tô meio bêbado.
– Me desculpa por isso – pedi. – Mas eu precisava fazer isso.
E eu realmente precisava. Depois da festa, fomos pro quarto dele e fizemos amor. Foi ótimo, e como sempre, me senti em paz. Mas não sei se foi a maconha, a vodca ou algum pensamento claro que surgiu de repente... eu simplesmente sentia uma urgência enorme de ver Jorge mais uma vez. Precisava saber se ele ainda teria o poder de me derrubar como antes – ou se, dessa vez, eu sairia por cima. Fiquei feliz por sair vitorioso.
– Eu sabia que você precisava – ele disse, me dando um selinho demorado. – Eu te amo.
– Também te amo – respondi, beijando-o de volta. – Agora vamos parar em algum lugar pra comer, porque eu tô com uma fome do caramba!
Samuel sorriu, e seguimos de mãos dadas até o carro, em busca de algo gostoso pra matar a fome — e brindar à liberdade.
...
Bernardo:
Acordei no dia seguinte com o celular tocando em algum canto do quarto. Tentei me levantar rapidamente, mas os braços fortes e acolhedores ao meu redor dificultavam a missão. Virei o rosto e vi Daniel ainda dormindo profundamente, completamente nu, com o corpo colado ao meu. Um sorriso brotou nos meus lábios — nada daquilo tinha sido um sonho. Ele havia voltado. Meu amor estava de volta.
Tirei, com cuidado, o braço dele da minha cintura e me desvencilhei das cobertas. Estava nu, e minha barriga, assim como minha bunda e as coxas, estavam sujas de esperma seco. Olhei de novo para Daniel, e ele continuava em um sono pesado, completamente alheio ao toque insistente do celular. Devia ser culpa da vodca — mas, sinceramente, eu não me importava, desde que ele estivesse ali, comigo.
– Alô? – atendi com a voz ainda carregada de sono.
– Be? – era meu pai. – Quando é que você volta?
– Semana que vem, pai – respondi, passando a mão no cabelo bagunçado. – Tá com saudade?
Ele deu uma risadinha do outro lado da linha.
– Estava pensando em a gente viajar amanhã. Como as provas já acabaram, queria que você viesse hoje pra casa.
Notei um tom meio hesitante ali. Tinha alguma coisa por trás daquele convite.
– Viajar pra onde? – perguntei, curioso com a decisão repentina. Ele não tinha mencionado nada antes.
– Bahia – respondeu direto. – A gente pega o avião amanhã.
– Assim, do nada, pai? – falei, me sentando na poltrona do canto do quarto. – Nem sabia que o senhor queria ir pra lá.
Percebi um suspiro mais pesado do outro lado da linha.
– Tá bom... vou ser honesto – ele disse, meio derrotado. – Tô fazendo terapia desde que... bom, desde que aconteceu tudo aquilo com sua mãe. Meu terapeuta achou que uma viagem poderia nos fazer bem. Pra mudar de ares, esquecer um pouco das coisas.
Sinceramente, nunca imaginei meu pai em uma sessão de terapia. Nem como alguém que lidaria bem com um filho gay. Mas ele sempre foi uma surpresa atrás da outra.
– O Daniel pode ir com a gente? – perguntei tentando soar o mais casual possível.
O silêncio que se seguiu foi tão longo que me fez repensar se a ligação tinha caído. Dizer que ele ficou em silêncio por "um momento" seria eufemismo — passou quase um minuto calado.
– Vocês voltaram? – ele perguntou por fim. Sabia do término, mas não o motivo real. Só comentei que a gente não estava mais funcionando.
– Voltamos ontem à noite – respondi, olhando mais uma vez para Daniel, que ainda dormia tranquilo na cama. – E então? Ele pode ir?
– Pode – respondeu, mas com uma hesitação que me surpreendeu. Sempre que Daniel foi à nossa casa, os dois se deram bem.
– Valeu, pai – falei ainda sonolento. – Vou arrumar minhas coisas. Te espero aqui depois do almoço.
– Combinado – ele respondeu, num tom mais sério. – Até daqui a pouco, filho.
– Até, pai. Um beijo.
Desliguei e deixei o celular sobre a escrivaninha. Voltei pra cama e me deitei ao lado de Daniel. Encostei minha testa na dele e deixei nossas respirações se misturarem. Sorri. Enrolei uma mecha do cabelo loiro dele entre os dedos, fazendo e desfazendo cachinhos. Ainda era difícil acreditar que ele estava ali. Que tínhamos nos reconciliado. Que ele me perdoou. Era tão irreal que temi acordar sozinho no meio da noite e perceber que tudo não passou de sonho.
Olhei para o anel dourado no meu dedo anelar direito — o mesmo que ele me deu na noite anterior. Uma peça simples, mas carregada de um significado imenso. Era a prova de que nosso amor podia vencer qualquer barreira.
– Bom dia – Daniel murmurou, sem abrir os olhos. – Estava sonhando com você.
Aqueles olhos azuis se abriram e me olharam com tanta doçura que me fizeram corar.
– Eu também sonhei contigo. Mas não gostei do sonho – falei, acariciando seu rosto, que ficou confuso.
– Por quê?
– Porque o Daniel dos meus sonhos não chega nem perto do real.
Ele sorriu e me beijou com carinho.
– Ainda não acredito que estamos juntos de novo – comentou, com um sorriso enorme.
– Nem eu – respondi, dando mais um beijo demorado. – Meu pai me ligou. Disse que vamos viajar pra Bahia. Quer vir com a gente?
– Quero muito, mas fico com receio de deixar o Théo sozinho. Ele vai ter que ficar essa semana pra fazer recuperação de história.
Verdade. As provas terminaram na sexta, mas a escola faria uma semana de aulas extras para quem ficou de recuperação. Théo era um deles.
– Seu irmão se vira bem sozinho, Daniel – argumentei. – E ele nem vai ficar de fato sozinho. O Fábio e o Leonardo também ficaram pra recuperação. Ele vai ter companhia.
Pensei rapidamente no Gabriel, que estava em recuperação em química, física, matemática e inglês. Pobre Gabriel… mal conseguia manter o braço longe de machucados — estudar era pedir demais. Mas achei melhor não mencionar meu amigo gótico naquele momento.
– Não me leva a mal, Be. Eu quero ir, mas conheço o Théo. Tenho quase certeza de que ele vai fazer alguma besteira ficando aqui.
– Daniel... o Théo já não é mais criança – rebati. – Ele consegue se cuidar.
Ele ficou pensativo, mas logo bufou, aceitando minha lógica.
– Você tem razão – admitiu, se rendendo. – Acho que tá na hora de deixar ele crescer. Afinal, ele é responsável.
Gritei de empolgação e me joguei em cima dele, enchendo-o de beijos.
Daniel ligou para a mãe, avisando da viagem. Ela prometeu lhe dar algum dinheiro para a passagem e para os gastos, mas não tanto quanto eu achava necessário. De qualquer forma, meu pai cobriria a hospedagem e as refeições. Arrumamos nossas coisas e encontramos nossos amigos no almoço. Estávamos famintos, já que nem café da manhã tomamos. Chegamos tarde demais pra isso.
Todos estavam presentes, exceto Nick — mas ninguém perguntou por ele. Samuel e Théo apareceram um pouco depois, dizendo que tinham saído pra dar uma volta. Ninguém questionou.
Daniel contou ao irmão sobre a viagem, e Théo nos desejou boa sorte, sem se abalar com a ausência dele. Percebi que isso afetou Daniel, mesmo que ele não dissesse nada. Ainda enxergava o irmão como um menino que precisava de proteção.
Por volta de uma da tarde, meu pai avisou que já estava em Caxias. Descemos para o pátio com as mochilas nas costas para esperá-lo. Estávamos sentados num banco de madeira quando vimos alguém se aproximando, capuz vermelho cobrindo parte do rosto. O moletom destoava totalmente do estilo gótico de Gabriel.
– Posso falar contigo um instante? – ele perguntou.
– Claro! – levantei, deixando minha mochila com Daniel, que não pareceu gostar muito de me ver indo com outro garoto.
Gabriel me levou até perto do portão de grades, longe dos outros.
– Vocês voltaram? – perguntou, sem jeito.
– Ontem à noite – respondi, sorrindo. – Ele cantou pra mim e me pediu em namoro de novo – mostrei a aliança.
– Fico feliz por você – respondeu, mas sua expressão dizia o contrário.
– Obrigado... Mas posso te fazer uma pergunta?
– Fui eu quem te chamou, né? Vai em frente – tentou brincar, mas a voz soava fraca, abatida.
– O que você estava fazendo com o Nick?
Os olhos verdes de Gabriel se voltaram para o chão, depois para mim.
– Eu gosto dele – confessou, apertando o braço com força.
Inacreditável. Toda vez que ele ficava nervoso, fazia isso. Como não percebia?
– Desculpa ser eu a te dizer isso, mas o Nick não presta – contei tudo: o que ele fez com o Théo, e o que tentou fazer comigo na noite anterior. – Ele não é nem metade do que finge ser.
– Eu sei – disse, ainda tentando digerir tudo. – Ele me contou tudo hoje de manhã.
Fiquei em choque. Esperei que o Nick mentisse, como fez com Théo. Mas, por algum motivo, ele foi honesto com Gabriel.
– E mesmo assim você gosta dele? – questionei. – Ele traiu o Théo várias vezes!
– Assim como você traiu o Daniel com o namorado do irmão dele – rebateu. – Ninguém aqui é inocente.
– Não é a mesma coisa, Gabriel – falei, me sentindo atacado. – Eu me arrependo. O Nick se gaba das coisas que faz.
– Ele me disse isso também – chutou uma pedra no chão. – Mas também disse que nunca conheceu ninguém como eu.
Revirei os olhos diante da ingenuidade dele.
– Tá de brincadeira, Gabriel! – explodi. – Ele fala isso pra qualquer um. E depois que conseguir o que quer, vai te largar pelo próximo!
Ele ia retrucar, mas uma buzina nos interrompeu. Um Pálio 2008 prateado se aproximava. O rosto de Gabriel ficou branco como vela. Ele tremia. E apertava ainda mais o braço.
O portão abriu, e o carro estacionou diante de nós. O motorista era um rapaz jovem, com traços muito parecidos com os de Gabriel.
– Entra no carro, Gabriel – disse com autoridade.
– Já falei que não vou pra casa, Gustavo! – ele gritou.
Gustavo saiu do carro e me encarou como se eu fosse lixo. Esperei a qualquer momento que sacasse uma faca. Meu corpo tremia, e minhas pernas quase cederam.
– Não perguntei o que você quer! – ele agarrou o braço do irmão e o empurrou pra dentro do carro.
– Solta ele! – tentei impedir, mas ele me empurrou com força e caí no chão.
– Escuta aqui, viadinho – Gustavo se abaixou, gritando. – Se chegar perto do meu irmão de novo, eu acabo com você!
– Vai abaixando a bola aí, parceiro! – Daniel apareceu, irritado. – Se encostar nele de novo, quem vai acabar contigo sou eu!
Gustavo apenas riu e ignorou o aviso.
– Faz o que eu mandei, moleque – disse pra mim, dando de costas.
Entrou no carro e foi embora, deixando apenas uma última imagem de Gabriel, pálido e triste, olhando pela janela traseiraContinua...