Pov Francisco
Nunca fui de falar muito. Sempre fui mais de ouvir o barulho do vento nas árvores, os cascos dos cavalos no chão, o silêncio entre uma palavra e outra. A cidade me cansa. Gente demais falando tudo ao mesmo tempo, querendo ser notada. A fazenda é onde o mundo para de gritar.
Era uma noite como qualquer outra quando a caminhonete apareceu na estrada de terra, levantando poeira seca do caminho. Quando vi que era a Bárbara, só imaginei que ele estaria com ela, seria como qualquer amigo dela que já pisou aqui. Eu estava pronto para odiá-lo, só não imaginei que ele, logo de cara, faria meu coração acelerar feito um cavalo indomado fugindo pelo pasto.
Samuel desceu do carro devagar, como quem está medindo o terreno. Calça preta, camiseta justa e um olhar que parecia varrer cada canto com curiosidade e cautela. Tinha algo nele que me travou o peito, e não foi só porque era bonito. Era o jeito como ele olhava as coisas - como se estivesse esperando que tudo surpreendesse.
Não fui receber na porta. Não era descaso, era proteção. Proteção minha comigo mesmo.
Fui avisado que ele estaria ali por um tempo, um mês de suas férias da faculdade. Era estranho pensar que fiquei mexido, ainda mais sabendo que a mãe dele casou com o meu pai. Mais um laço de família inventado pelo tempo. Eu podia lidar com isso. Ou pelo menos achava que podia.
Só que Samuel não era o que eu esperava.
Não era só educado. Era sensível. Engraçado. Um rapaz tão novo, que cuidava da mãe com um carinho que eu não lembrava de ver em homem nenhum, a muito tempo. De certa forma ele lembrava um Francisco que eu por muito tempo não pensava. Não tinha vergonha de ser gentil. E isso me desconcertava mais do que qualquer beleza que ele tivesse. E ele tinha. Muita.
O problema é que eu não sabia onde enfiar esse sentimento novo.
Ver ele andar pela varanda, todo dia pela manhã, cabelo bagunçado, camisa grudando no corpo por causa do calor, sorrindo fácil com a Bárbara... aquilo começou a me incomodar de um jeito estranho. Um nó que subia e descia no estômago e eu fingia que era fome ou ressaca.
A primeira noite que ficamos sozinhos na sala, depois do jantar, eu me peguei observando o jeito que ele segurava a taça de vinho, o modo como o lábio tocava o vidro, e pensei em coisas que nunca tinha pensado com homem nenhum. Nunca. Nem em segredo.
O pior era saber que ele percebia.
Samuel me olhava com aquele jeito sereno de quem entende mais do que diz - um olhar que sussurrava "eu sei", sem jamais julgar. E era isso que me desmontava por dentro. Não foi a última vez que me perdi naquele olhar... na verdade, acho que me perdi nele por completo. Lembro de vê-lo voltando do rio com Bárbara, usando apenas uma sunga. A pele ainda úmida reluzia sob o sol e as gotas escorriam lentas pelas curvas suaves do seu corpo, seguindo o contorno até desaparecerem na única peça de roupa que ele vestia. Aquilo me tirou o fôlego. Nossos olhos se encontraram e, por um instante, o tempo pareceu ceder - eu não conseguia fazer outra coisa senão seguir, em silêncio, cada passo dele, sentindo meu peito bater mais forte a cada movimento.
Quando ele fez aquela primeira massagem em mim - por causa da tal dor na coxa - foi a primeira vez que eu me permiti sentir o toque dele sem fugir. Mas era demais. O cheiro dele. O calor firme e ao mesmo tempo delicado das mãos. A forma como ele se aproximava sem invadir, como se tocasse não só a pele, mas algo mais fundo, que nem eu sabia nomear. Eu interrompi tudo. Levantei e saí do quarto como um covarde. E fui mesmo. Um covarde.
Porque, no fundo, eu já sabia. Sabia que existia algo ali, crescendo em silêncio, e que me atravessava quando ele estava por perto. Mas admitir isso era como perder o controle - e eu fui criado pra não perder o controle de nada. Só que perto dele... perto dele eu esquecia até como se segurava a respiração.
Passei os dias seguintes tentando fingir que nada aconteceu. Mas aconteceu.
Aí teve o Rafael.
A aparição dele, do nada, me fez entender que o que eu sentia por Samuel não era só curiosidade. Era possessão. Raiva. Inveja. Quando vi aquele beijo no rosto, aquele riso leve que ele arrancou do Samuel, me doeu. Por dentro. Uma dor seca, funda. E eu odiei isso.
Eu lido com todos os sentimentos da mesma forma: me calo, engulo, finjo que não há nada ali. Sempre funcionou. Mas com o Samuel... estava ficando difícil. Mesmo quando ele não estava no meu campo de visão, era como se ocupasse todos os espaços dentro de mim. Bastava um silêncio mais longo, uma sombra qualquer na varanda, e lá estava ele - nos meus pensamentos, no meu corpo, nas minhas reações. E o pior era saber que o Rafael também o via. Que o meu melhor amigo o queria. Isso me corroía por dentro. Me fazia querer odiá-lo. Odiar os dois. Mas era só mais uma fuga. Porque o que doía de verdade... era o que eu estava sentindo por ele.
Odiar o Rafael era fácil. O difícil era odiar a parte de mim que queria estar no lugar dele.
Comecei a disputar sem perceber. Tirava a camisa quando sabia que Samuel ia passar por perto. Chamava ele pra ajudar com as tarefas mais idiotas. Qualquer desculpa pra ter ele por perto. E ainda assim, era ele quem parecia me dominar. Quando ele estava rindo com o Rafael, eu me sentia invisível. E quando ele me olhava com aquele silêncio, eu me sentia exposto.
Tentei ser frio, tentei ser rude, mas quanto mais eu empurrava, mais eu queria ele perto.
Quanto mais eu me afastava, mais ele era gentil. E, quando percebi que era ele quem começava a se afastar, fui eu quem começou a me aproximar - morrendo por dentro a cada decisão. O meu cérebro gritava para não ir, para manter distância, seguir firme. Mas o coração... o coração implorava por qualquer migalha de presença. E, naquela batalha silenciosa, meu coração estava vencendo.
Dormir - mesmo depois de dias longos de trabalho, com o corpo exausto - virou um tipo de tortura. Eu me virava na cama, tentando não pensar, mas pensava. Pensava nele nos braços do Rafael, nos beijos que aquele desgraçado dava em seu rosto, nos abraços, nas risadas fáceis. E cada pensamento desses roubava meu sono como um ladrão cruel.
Eu queria ser o motivo dos sorrisos dele. Queria dar os abraços apertados, os beijos demorados, sentir o cheiro da pele dele na curva do pescoço. Eu queria... e precisava fazer alguma coisa.
Então eu continuei. Continuei inventando dores na coxa que já não existiam, só pra tê-lo ali. Só pra sentir suas mãos fortes e cuidadosas me tocando. Só pra ouvir sua respiração perto da minha. E isso aconteceu em mais de uma noite - em várias, pra ser honesto. E eu amei. Amei o toque. Amei o calor. Amei a presença dele sobre mim, massageando não só músculos cansados, mas lugares que doíam de um jeito que eu não sabia explicar. Amei o beijo. Aquele beijo. Os lábios macios, hesitantes e famintos ao mesmo tempo.
Mas, ao mesmo tempo em que o desejo me dominava e eu cedia, algo me puxava pra fora. Me empurrava de volta pra um lugar frio e seguro. Era nesse instante que o cérebro ganhava - e o coração perdia.
E lá estávamos nós, naquela cabana no meio do mato, a chuva batia no telhado de zinco como se o tempo inteiro do mundo estivesse acontecendo lá fora, mas ali dentro, dentro daquela cabana abafada e úmida, tudo estava suspenso. Era só eu e ele.
Samuel tirou os chinelos e caminhou até o centro da sala, ainda molhado, a pele branca brilhando sob a luz cinza que vazava pela janela. O tecido da sunga colava no corpo dele, e por um instante, eu quase virei as costas, quase corri de novo daquilo que eu sentia. Mas não consegui.
Fiquei ali, parado, observando. Sentindo tudo dentro de mim arder.
Meus pés começaram a se mover como se tivessem vida própria. Um passo. Depois outro. Meu peito batia tão forte que era como se o coração estivesse tentando fugir da minha indecisão. E quando me dei conta, eu estava ali, parado a poucos centímetros dele.
Ele me olhou. Não disse nada. E o silêncio me deu permissão.
Aproximei meu rosto devagar, fechei os olhos por um segundo e aspirei o cheiro que vinha da pele dele. Era como chuva, sabonete neutro e calor. Um cheiro limpo e simples, mas que me acertou como uma pancada no peito. Como se dissesse: "é isso que você quer, é aqui que você quer ficar."
Eu toquei seu ombro com a ponta dos dedos, devagar. Ele não recuou. A mão deslizou até a nuca, e quando encostei minha testa na dele, deixei que o resto do mundo desabasse.
O beijo aconteceu sem anúncio. Não houve hesitação, nem pressa. Meus lábios encontraram os dele e tudo pareceu se encaixar. O gosto era leve, morno, íntimo. Era como atravessar uma porta que eu sempre soube onde estava, mas nunca tive coragem de abrir.
Minhas mãos tocaram as costas dele, e senti a pele quente sob os dedos. Cada músculo dele parecia feito sob medida. E ali, no meio da chuva, no silêncio da cabana, com a boca dele na minha, eu me permiti.
Me permiti sentir o corpo dele contra o meu, me permiti desejar. Me permiti deixar o medo de lado por alguns minutos e apenas existir com ele. Ser com ele. Porque tudo naquele toque - naquela pele molhada, naquele beijo - me dizia que eu estava exatamente onde devia estar.
Foi a primeira vez que não me culpei por querer.
E foi bom.
Bom de um jeito que doía.
Porque nada nunca tinha sido tão certo e tão confuso ao mesmo tempoSe está gostando da história, comenta aqui e deixe seu voto.