Um Novo Começo – Capítulo 4
Mais um dia no Amazonas. Esse seria meu terceiro dia aqui... Às vezes, a mente dá um nó. Parece que nem acredito que estou neste lugar, um universo inteiro de distância de tudo que eu conhecia. Longe da guerra, mas ainda sem sentir o gosto da paz. É como flutuar num limbo, perto de quem eu amo, mas cercado por um perigo que ainda não sei medir.
Casa de Kyle e Andrews – Manhã
Eu estava na pequena cozinha, encarando uma caneca de café preto, quando senti a presença dela.
“Como você está?” A voz de Kyle era suave, um sussurro que contrastava com a umidade pesada da manhã. “Ontem foi... complicado, né?”
“É, foi...” murmurei, sem conseguir encontrar mais palavras.
“Você não precisa ser o herói aqui, Biel.” Ela se aproximou, e seus braços me envolveram por trás, o calor do corpo dela atravessando minha camiseta. Era um abraço familiar, um gesto que ela sempre usou para confortar, para proteger. “Dê um tempo pra sua mente se curar. Você é forte, Gabriel. Forte de um jeito que nem imagina.”
Ficamos em silêncio por um momento, apenas com o som do rio lá fora. O abraço dela era um porto seguro, mas também uma faísca. A lembrança da noite anterior, da imagem de Ana em minha mente, se misturou com o cheiro do cabelo de Kyle. Caralho, Gabriel, se controla.
Andrews entrou na sala, já vestido para o trabalho, e parou, observando a cena com um sorriso contido. Ele coçou a barba por fazer, os olhos brilhando com aquela malícia típica dele.
“Opa, sobre o que os pombinhos estão conversando tão cedo?”
Kyle me soltou, rindo, e se virou para ele. “Só cuidando do nosso garoto. Algum problema?”
“Problema nenhum, meu amor,” Andrews respondeu, se aproximando e dando um beijo rápido nela. Ele olhou para mim, o sorriso se alargando. “Na verdade, só tava pensando aqui... descobri que o Gabriel tem um talento nato pra manusear uma vara.”
Meu corpo gelou. Olhei para ele, os olhos arregalados. “Cara?!”
Kyle franziu a testa, confusa, depois caiu na gargalhada. “O quê? Como assim?”
“Vara de pescar, meu bem! Vara de pescar!” Andrews gargalhou alto, me dando um tapa nas costas. “O que você pensou, sua mente poluída? Kkkkk! Nosso menino aqui vai botar pra foder hoje no rio.”
Respirei aliviado, forçando uma risada. Filho da puta.
“Tô indo pro trampo,” Andrews anunciou. “Mano, toma seu café e depois vai lá pro cais pra começar a trabalhar, ok? O Vitor Luis já tá te esperando.”
“Ok, mano,” respondi, ainda me recuperando da brincadeira.
Enquanto Andrews pegava suas coisas, Kyle me abraçou de novo, de lado desta vez, provocativa. Ele nos observou, o riso morrendo nos lábios, mas os olhos ainda dançavam.
“Isso vai ser um problema?” ele perguntou, meio sério, meio brincando.
Kyle ergueu o queixo. “Com medo de perder sua princesa, amor?”
“Eu me garanto, gata,” ele retrucou, piscando. “Sei o material que tenho em casa.”
“Kkkkk, você sempre diz que minha bunda é grandona,” Kyle provocou, o tom de voz cheio de malícia. “Se é tão grande, deve dar pra mais de um, não acha?”
Era o jogo deles. Um jogo antigo, que eu conhecia bem. Ela sempre gostou de provocar o Andrews, e eu era sua arma preferida. Mas agora éramos adultos. O que era divertido no passado, hoje podia facilmente virar um problema de verdade.
“Bem, bem... vamos lá,” intervi, tentando mudar o foco. Me soltei suavemente de Kyle, que fez um biquinho de brava. “Relaxa, mano. A Kyle te ama demais pra querer compartilhar a bunda grande dela com um zé ninguém como eu. Kkkk.”
Andrews finalmente relaxou e gargalhou. “Kkkk, relaxa, mano, eu sei. É como nos velhos tempos. Sei que minha mulher adora uma brincadeira.” Ele olhou para Kyle com uma intensidade que era só deles e saiu.
Cais de Pesca – Manhã
O cais fervilhava com uma energia rústica. Homens de pele queimada pelo sol, com músculos forjados pelo trabalho pesado, preparavam redes e barcos. O cheiro de peixe, rio e diesel se misturava no ar úmido. Fui até o ponto de encontro que Andrews indicou, onde um homem mais velho, de semblante sério e braços como troncos de árvore, me esperava.
“Olá, rapaz. Eu sou o Vitor Luis, o encarregado aqui. Vou te instruir sobre as coisas.”
“Sim, senhor. Estou aqui para servir,” respondi, o hábito militar falando mais alto.
Vitor Luis soltou uma risada rouca. “Kkkkk, calma lá, soldado. Não precisa de tanta formalidade. O Andrews já me adiantou que você é novato na área, mas que entende o básico da pesca. Vou te explicar melhor como as coisas funcionam.”
Pelo menos Andrews não falou da outra ‘vara’ pra ele.
“Sim, senhor... Digo, pode falar, Vitor.”
“Melhor assim,” ele disse, com um aceno. “Olha, é simples. Aqui, toda a pesca vai reunida pro armazém principal. O que você pescar, você deve deixar no seu saco, que vou te entregar. Quanto mais você pescar, mais você recebe em troca lá no armazém. Até aqui, tudo bem, né?”
“Ok, pode continuar.” Simples. Uma meritocracia. Gosto disso.
“O cara que tiver o melhor desempenho na pesca, além de receber mais, também ganha uma cesta básica bônus no fim do mês. O que tiver o menor desempenho... é substituído por outra pessoa na lista de espera.”
Ok, agora não é mais tão simples. É competição. É sobrevivência.
“Entendido.”
Vitor Luis baixou a voz, se aproximando um pouco. “Uma dica extra, garoto. Se esforce ao máximo. Homens com famílias pra sustentar têm prioridade no barco. Você não tem. Na casa, o Andrews é o responsável. Sendo assim, numa eventual situação de corte, você é o mais provável a rodar.” Ele fez uma pausa, me analisando. “Mas... se você for um dos melhores... ninguém mexe com você.”
Entendido. Não basta ser bom. Tenho que ser indispensável. Igual no exército. A missão é outra, mas a regra é a mesma: seja o melhor ou vire estatística.
Rio Amazonas – Pesca
O trabalho era brutal, mas estranhamente familiar. O sol do Amazonas castigava sem piedade, refletindo na água marrom do rio e transformando o ar numa sauna. O barco balançava, e o esforço para manter o equilíbrio enquanto se manejava a rede pesada era uma batalha constante.
Eu já sabia pescar, mas descobri que era melhor do que imaginava. O treino de sobrevivência no exército me ensinou a ler a correnteza, a sentir o movimento sob a água. Mas minha verdadeira vantagem era outra. Enquanto muitos dos homens, trabalhadores fortes e experientes, precisavam parar para descansar, o suor escorrendo em rios por seus rostos, meu corpo respondia com a disciplina de anos de treinamento. Os músculos dos braços e costas se contraíam num ritmo metódico e incansável. Lançar a rede, sentir o peso dos peixes, puxar. Repetir. Era um fluxo, uma meditação violenta. Para eles, era um dia de trabalho. Para mim, era uma missão. E eu não falhava em missões.
Armazém Principal – 17:30h
O cheiro no armazém era ainda mais forte. O lugar era um grande galpão de madeira, barulhento, com homens descarregando sacas e outros fazendo anotações em pranchetas.
Vitor Luis me deu um tapa nas costas quando me viu. “Bem-vindo ao armazém...”
“Eu já estive aqui, Vitor. Fui pegar a cesta básica com a Kyle.”
“Entendo...” ele disse, e seus olhos foram para as sacas que eu carregava. “Olha, garoto... hoje você foi bem. Muito bem, pra falar a verdade. Não tenho dúvidas que, se continuar assim, vai ser o melhor daqui.”
Todos entregavam suas sacolas a um responsável numa balança. A maioria tinha uma saca, talvez uma e meia. O que chegou mais perto de mim tinha duas, e ele me olhava com uma mistura de raiva e admiração. Eu... eu tinha quatro. Quatro sacas cheias até a boca.
O responsável pela contagem, um homem magro de bigode, assobiou. “Kkkk, caralho! Nunca ninguém pescou tanto peixe assim num dia só! Espera um pouco aqui, rapaz.”
Ele entrou numa sala fechada e logo voltou com outro homem. A cara de meia-idade, baixo, barrigudo, vestido num terno caro que parecia completamente deslocado naquele ambiente. O cabelo oleoso penteado para trás, o anel de ouro brilhando no dedo. O rosto era de quem sorria muito, mas os olhos não acompanhavam.
“Kkkk, eu tinha que ver com meus próprios olhos!” a voz dele era untuosa. “Nunca ninguém pescou tanto assim. Mas, olha pra você... Você é forte, jovem. O que um touro como você faz nesse fim de mundo dos infernos, hein?”
“Só vivendo a vida, senhor. Com minha família.”
“Ah, você é o cara que tá morando na casa daquela professora rabuda, né?! Kkkkkk.”
Meu sangue ferveu. A palavra "rabuda" ecoou na minha cabeça, suja e desrespeitosa. Cerrei os punhos, sentindo o músculo do meu maxilar travar. Foi quando senti uma mão firme no meu ombro.
“Ele é como um irmão pra mim, Alberto. Fomos criados juntos,” disse Andrews, que tinha se aproximado sem que eu percebesse. O aperto dele era um aviso claro. Não reaja.
“Irmãos, né? Kkkkk,” Alberto zombou, olhando de mim para Andrews. “Toma cuidado, gringo. Um homem forte desses dormindo na sua casa, com aquela mulher gostosa que você tem... xiii... kkkkk.”
Os dois seguranças parrudos atrás dele riram com desdém. A vontade de apagar aquele sorriso da cara dele com um soco era quase incontrolável. Mas a mão de Andrews no meu ombro e a lembrança da conversa da manhã me mantiveram no lugar.
“Mas... que tal você trabalhar pra mim?” Alberto mudou de tom, agora conspiratório. “Um cara como você não precisa ficar preso a esse bando de perdedor, esses catadores de peixe. Isso aqui no armazém, na organização... é o verdadeiro poder. Eu posso mudar sua vida, garoto.”
“Obrigado pelo convite, but eu recuso.”
Ele me olhou nos olhos, o sorriso sumindo por uma fração de segundo. “Qual motivo um homem teria pra recusar mais conforto e mais dinheiro? Talvez... um baita cu de uma professora, não é, rapazes? Kkkkk.”
A risada ecoou. Eu estava no meu limite. Olhei ao redor. Os outros pescadores desviavam o olhar, o medo estampado em seus rostos. Esse cara não era um problema. Ele era O problema.
“Mas eu tenho que recompensar um desempenho desses,” Alberto disse, estalando os dedos. “Deixa eu pensar... Já sei!”
Ele mandou que três de seus homens trouxessem cinco das cestas básicas mais completas, aquelas que vi no outro dia. Eles as empilharam na minha frente.
“Aí está. Veja isso como um sinal da minha amizade,” ele disse, o tom falsamente generoso. “Mas, se você der uma dessas pra algum desses perdedores, teremos problemas, garoto. Pode compartilhar com quem quiser, menos com esses homens que trabalham na pesca, ou qualquer um de seus familiares. Entendido?”
Ele se virou e saiu, rindo com seus capangas. Andrews me ajudou a carregar as cestas, me dando um olhar que dizia "vamos sair daqui agora". Além das cestas, o homem do pagamento me entregou meu dinheiro, com 400 reais a mais. Um "bônus" do patrão.
No barco de volta, o silêncio era pesado. Ninguém veio falar conosco. Os olhares que recebíamos eram frios, cheios de raiva e inveja. Todos direcionados a mim.
“Não liga pra isso,” Andrews disse, a voz baixa. “O que o Alberto tá fazendo é te pressionar. Ele tenta colocar os outros contra você, pra que você seja forçado a aceitar a proposta dele. Fica firme, mano.”
O barco parou em cada casa flutuante. Antes de eu descer na nossa, Vitor Luis me chamou.
“Olha, não vem trabalhar amanhã, ok?”
“Mas, senhor, eu...”
“Não estou falando pro seu mal, garoto,” ele me cortou, o rosto cansado. “Vou conversar com os homens. Sei o que o Alberto está fazendo e farei eles entenderem. Mas aqui... ter uma cesta básica dessas, uma só, já é um luxo. Ver alguém recebendo cinco assim, na frente de todo mundo? Eles não são pessoas ruins, Gabriel. São homens bons, batalhadores, que ralam todo dia. Vou fazer eles entenderem. Você já recebeu bem hoje, pode aguentar um tempo de molho. Deixa a poeira baixar e a curiosidade dele em você passar.”
Eu entendi. Mas era injusto. Pagar por um crime que eu não cometi.
Casa de Kyle e Andrews – Noite
Quando cheguei, Andrews já tinha contado tudo a Kyle. Ela me olhou com os olhos marejados e me abraçou forte, sem dizer nada por um longo tempo.
“Não liga pra isso, ok?” ela finalmente disse, forçando um sorriso. “Veja pelo lado bom. A gente tem comida pra caralho! Kkkkk.”
“É... kkk,” respondi, sem ânimo.
Jantamos em silêncio. Andrews, sempre o mais piadista, mal tocou na comida, o olhar perdido no vazio. Eu sentia que não era só pela minha situação. Havia algo mais antigo ali, uma ferida reaberta. Ele terminou, murmurou um "boa noite" e foi para o quarto.
Eu me sentei do lado de fora, na pequena varanda, olhando o rio negro sob o céu estrelado. Kyle veio e sentou ao meu lado, encostando a cabeça no meu ombro.
“Quando chegamos aqui,” ela começou, a voz baixa, “o Alberto se interessou por mim. Foi quase um ano de luta. Ele fez de tudo pra prejudicar o Andrews no trabalho, na comunidade. Eu temia pela vida dele. A coisa ficou tão séria que tentaram afogar ele numa das pescarias...”
Meu corpo enrijeceu.
“Quem nos ajudou foi o falecido marido da Carla,” ela continuou. “Ele era um homem influente, o único homem bom que trabalhava no alto escalão do armazém. Ele sabia de algo, um segredo do Alberto, e usou isso pra manter ele afastado de nós.”
“Mas ele morreu... O Alberto não voltou a te perseguir?”
“Não... O segredo que o marido da Carla sabia, foi passado pra ela. A Carla também sabe de algo que o Alberto quer esconder a todo custo. Mas, diferente do marido, ela não ataca. Ela usa isso como um escudo, só pra se defender e viver a vida dela.”
“Lá no armazém... ele citou você de uma forma...”
“Eu imaginei,” ela suspirou, um som pesado, cheio de dor. “Sempre que pode, ele provoca o Andrews. Ele sempre tenta...” A voz dela falhou. She se levantou de repente e entrou, me deixando sozinho com o rio e meus pensamentos.
Quarto de Kyle e Andrews
Andrews estava sentado na beira da cama, as mãos na cabeça, o corpo tenso. Kyle entrou em silêncio, fechou a cortina e se sentou ao lado dele.
“Ei... você tá bem?” ela perguntou, a voz um carinho.
“Tô,” ele respondeu, sem olhá-la. “Não esquenta.”
“Quer desestressar, meu amor?” ela tentou, com um sorriso fraco, começando a beijar o pescoço dele.
Andrews a segurou pelos ombros, gentilmente, e a afastou. “Kyle... hoje não.”
O sorriso dela morreu. “Então desabafa comigo. Fala o que foi.”
Ele finalmente a olhou, e os olhos dele estavam cheios de uma dor que eu nunca tinha visto. “Eu tive que segurar o Gabriel, Kyle. Tive que segurá-lo pra ele não fazer uma besteira quando o Alberto falou de você daquele jeito. E o Gabriel... ele me olhou. Um olhar que perguntava por que eu não te defendia. Por que eu não quebrava a cara daquele velho.”
“Mas eu já contei pra ele o que nós passamos, o perigo...”
“Sim!” a voz dele se quebrou. “Mas o problema não é ele, sou eu! O problema é que eu mesmo me pergunto isso! Por que eu não quebro a cara daquele miserável? Por que eu não soco ele até ver a vida saindo daqueles olhos imundos?” Lágrimas de raiva e impotência escorriam pelo rosto dele.
“Because isso só nos mataria,” Kyle sussurrou, puxando-o para um abraço apertado, o rosto dela contra o peito dele. “Nós dois. Só isso. Você sabe. Amor, se acalma... Você aguentou esse tempo todo. Você me salvou, nos salvou. Você é o homem mais forte que eu conheço, não por lutar, mas por suportar. Se acalma, meu amor... eu tô aqui.”
Eles ficaram abraçados, ela fazendo um carinho em seus cabelos, beijando sua testa, enquanto os soluços dele se acalmavam lentamente no silêncio do quarto.
Casa de Ana e Carla – Noite
Com uma das cestas básicas na mão, fui até a casa delas. A noite aqui era escura de verdade. Bati na porta de madeira. Silêncio. Bati de novo. Ouvi um barulho lá dentro.
A porta se abriu uma fresta.
“Quem será uma hora dessas?” a voz de Carla soou, cautelosa.
“Oi Carla, sou eu, Gabriel. Desculpa a hora, mas eu...”
A porta se abriu completamente, revelando Carla com uma expressão de alívio e surpresa. “Aaaah, meu Deus, é você! Kkkkk, que susto, garoto! Entra, entra.”
Entrei, e senti a tensão no ar. “Tá tudo bem, Carla? Parecia preocupada.”
“Vou te dar um conselho, grandão,” ela disse, fechando a porta. “Se for na casa de alguém à noite por aqui, grite o nome da pessoa de longe. Não bata na porta em silêncio assim. Kkkk.” Do quarto ao lado, ouvi um clique metálico. “Filha, pode sair. Tá tudo bem.”
“Calma, mãe, tô guardando aquilo...” a voz de Ana respondeu, abafada.
Carla sorriu e olhou para a cesta na minha mão. “E o que é isso?”
Expliquei em detalhes o que tinha acontecido no armazém.
“...e como eu não posso compartilhar com os outros pescadores, resolvi trazer uma pra você. Como um agradecimento pelo que fez por mim no outro dia.”
Os olhos de Carla brilharam, mas dessa vez, com uma gratidão genuína. “Gabriel... muito obrigada. As coisas têm sido difíceis... muito difíceis.” Ela pegou a cesta e a colocou sobre a mesa. “Olha, toma cuidado com o Alberto. Acredite em mim, você não vai querer conhecer o lado ruim desse homem. Na verdade,” ela suspirou, “ele nem tem um lado bom.”
Ana saiu do quarto, mas ao ouvir o nome de Alberto, seu rosto se fechou. Ela murmurou um "boa noite" e se retirou novamente. Falar dele mexia muito com ela.
Ficamos só eu e Carla na pequena sala, iluminada por uma única lâmpada amarela.
“Ela ainda sente muito a falta do pai,” Carla disse, a voz baixa, seguindo a filha com o olhar.
“Sinto muito.”
“Não sinta. Ele fez o que era certo.” Ela se virou para mim, e um novo brilho surgiu em seus olhos, substituindo a tristeza. Era aquele brilho que eu já conhecia. Malicioso. Convidativo. “Mas vamos falar de coisas melhores. Você arrumando briga no primeiro dia de trabalho... Já vi que você gosta de causar uma boa impressão.”
Eu ri. “Não foi minha intenção. Parece que o problema me encontra.” E que problema. Ela está me olhando de um jeito que faz o sangue correr mais rápido.
“Talvez você procure por ele,” ela retrucou, inclinando a cabeça, um sorriso brincando no canto dos lábios. A blusa simples que ela usava parecia se moldar perfeitamente ao seu corpo. “Um homem que sabe se defender e ainda é educado a ponto de trazer um presente... você é um perigo, Gabriel.”
Ela não tem ideia. “Só sou um perigo para quem merece, Carla.”
A risada dela foi baixa e rouca. Um som que vibrou direto na minha espinha. “E eu? Eu mereço?” ela perguntou, dando um passo em minha direção. O ar ficou mais denso. O cheiro dela, uma mistura de sabonete floral e do próprio calor da sua pele, me envolveu.
“Acho que você merece coisa muito melhor do que perigo,” respondi, mantendo o olhar fixo no dela.
“Huumm...” ela disse, parando a centímetros de mim. “Mas às vezes, um pouco de perigo é exatamente o que a gente precisa.”
Ficamos ali, suspensos naquele momento, a promessa de algo mais pairando entre nós. Meu corpo inteiro estava em alerta, a atração por ela era uma força magnética, quase palpável. Eu podia ver cada detalhe do seu rosto, as pequenas rugas de expressão ao redor dos olhos, a forma como seus lábios se entreabriam.
Quebrei o contato visual, olhando para a porta. “Já... já está tarde. Eu preciso ir.”
“É,” ela concordou, sem se mover. “Está tarde.”
“Obrigado de novo, por ontem,” eu disse, me virando para sair.
“Gabriel,” ela chamou. Parei e olhei para trás. “Volte amanhã. Minha torneira está pingando de novo. Acho que vai precisar de um homem forte pra consertar.”
O sorriso dela era uma confissão. Assenti com a cabeça, um sorriso cúmplice surgindo no meu rosto, e saí.
Enquanto caminhava de volta para casa sob o céu estrelado, a imagem do corpo de Andrews tremendo de raiva se misturava com o olhar faminto de Carla. Paz. Definitivamente, eu não estava nem perto de encontrá-la. Mas talvez, só talvez, eu estivesse encontrando algo muito mais interessante.