Estávamos prontas para dormir quando o celular de Júlia tocou.
— É aquela advogada da adoção — ela disse, ao olhar para a tela.
— Atende! — exclamei, sentando rapidamente na cama.
— Não sei se vai ser bom, você acabou de se acalmar, vai que é uma notícia ruim... Melhor a gente ligar amanhã... — Juh falou.
— Amor, atende!!!! — disse-lhe, com a voz carregada de indignação.
— Se for ruim, amanhã a gente vai ter o dia inteiro para digerir, agora à noite pode atrapalhar tudo — Júlia se justificou.
— Tá bom, então — falei em tom conformado e dei um beijo nela. — Oi! — disse ao atender a ligação, levando o celular da gatinha até o ouvido.
— Não acredito!!!! — ela sussurrou, revoltada.
Foi uma conversa rápida. A advogada queria somente marcar um encontro virtual com a gente. Ainda era cedo, mas como já estávamos prontas para dormir, marcamos para o dia seguinte.
— Amor, não gostei! — Juh disse, brava.
— Não pode se irritar comigo hoje, não — falei, envolvendo-a em carinho e, aos poucos, o perdão foi sendo concedido através de beijinhos.
No outro dia eu não servi para nada. Acabei despertando cedo, mas logo adormeci novamente. Diferente do comum, Juh trabalhou diretamente da cama e eu aproveitei para deitar entre suas pernas, com a cabeça sobre a sua coxa. Peguei no sono sentindo um delicado cafuné no meu cabelo.
— Amor, trouxe um cafezinho para você. Se sente melhor hoje? — a ouvi me perguntar.
Eu me sentia completamente indisposta, sem fome, sem energia. Metade da manhã havia se passado e eu ainda estava exausta. Eu nem percebi quando Júlia saiu debaixo de mim, nem Milena e Kaique conversando, brincando.
Eu me sentia anestesiada por dentro, como se meu corpo tivesse sido esvaziado de qualquer impulso vital. A fome era uma ideia distante, meu estômago parecia não existir. A energia, aquela que normalmente me sustenta, simplesmente havia desaparecido.
Já estávamos na metade da manhã, mas era como se o dia ainda não tivesse começado para mim. A fadiga não era só física, era cognitiva, afetiva e existencial. Estava consciente, mas não presente. Os sons ao meu redor, vozes e risadas de Kaique e Milena pareciam ecoar em outro plano, distante de mim.
Eu nem tenho um sono pesado, porém nem percebi quando Júlia havia saído de debaixo de mim. Minha mente permanecia numa névoa preguiçosa, incapaz de organizar estímulos ou processar reações. Era um esgotamento, um colapso silencioso do sistema. Tudo em mim estava ativo o suficiente para manter o corpo em pé, mas inoperante para qualquer ação significativa. E o pior... Eu sabia exatamente o que era, e mesmo assim, não conseguia sair dali. Não havia alívio em entender.
Saber não cura, rótulo não aquece e diagnóstico não devolve presença.
Eu me preparava para tentar responder, quando a gatinha juntou seu corpo ao meu em um abraço. O calor dela não curou nada, mas me ancorou. Não precisava de explicações, era só a presença dela que eu precisava.
— O que eu faço? — Juh perguntou, após algum tempo.
— Nada, fica... — pedi em um sussurro.
— Você precisa comer um pouquinho — Júlia disse, no meu ouvido.
Sentei um pouco para tentar reagir e fazer o download da alma, mas nada adiantava.
— Vem pra perto — a chamei, batendo no meu colo, e ela veio.
Não sei explicar, porém eu sentia a necessidade absurda do contato com Júlia. Era a única coisa que naquele dia me lembrava que eu ainda estava viva.
— Amor, vamos a um médico... você não está bem... — Juh disse, passando a mão no meu cabelo e me fazendo encará-la.
— Tenho sessões e consulta ainda essa semana, dá para aguentar — respondi.
— Se fosse eu no seu lugar e nesse estado, você ia me deixar levar a rotina exaustiva que você tem até o dia da terapia? — Juh me questionou, assertivamente.
— Tá, iremos até a clínica então — concordei, inicialmente a contragosto, mas valeu a pena pelo lindo sorriso que recebi.
Com minha mulher visivelmente mais animada por ter conseguido me convencer, recebi um beijo e logo depois uma colherada de mamão com aveia e mel na boca.
— Agora é sua vez — brinquei.
— Eca! — ela exclamou com uma careta e eu sorri, passando a mão em seu rosto.
De verdade, eu tenho muita sorte em tê-la comigo.
Eu sempre fico zoando Kaique e Milena quando eles dormem demais e acho que eles entraram no quarto na intenção de fazer o mesmo comigo, porém Juh avisou que eu estava com dor de cabeça. Então subiram na cama contendo apenas um sorrisinho no rosto.
— Coitadinha da mamãezinha — Mih disse, me abraçando.
— Mãe, sua cabeça tá um pouco grande — Kaká observou e eu ri.
— Kaique! — Milena exclamou, chamando a atenção dele.
— Ué, mas tá — ele disse, sem graça.
— Devo estar um pouco inchada — falei, buscando o celular para olhar o meu reflexo.
E nesse momento eu entendi perfeitamente porque Juh insistiu em me levar a um médico. Eu estava com uma aparência tenebrosa, o lado direito do meu rosto estava edemaciado e as veias frontais visivelmente distendidas.
— Verdade, tá mesmo — concordei com meu filho.
Resolvi então levantar para tomar um banho e tentar melhorar aquele estado visual deplorável. Eu sentia zero vontade de sair daquela cama, porém me forcei a prosseguir. Quando retornei, Juh me disse que deixou as crianças com Lorenzo para irmos sem preocupação e demorar quanto tempo precisasse.
Preferi ficar na minha sala e pedi que, quando estivesse tranquilo, Davi chamasse um psiquiatra disponível para me atender.
Sentei na cadeira e, de maneira automática, abri uma gaveta aleatória.
— Ah, não, Lore... Não vai inventar trabalho — Juh falou, fechando de volta.
— Nem tem nada aí, gatinha — falei, achando graça.
— Levanta, deita ali — Juh disse, de maneira imperativa e apontando para um sofá.
— Vou, mas pra você poder ficar mais pertinho — falei, a abraçando e sentindo seu cheiro.
— Acho que não foi uma boa ideia colocar o cérebro para descansar — disse a gatinha, ao sentar.
— É... piorou foi tudo... — comentei.
— Aconteceu o mesmo que acontece com a massa... dobrou o tamanho — ela brincou, me fazendo rir.
Entre um carinho e outro, nós circulamos por diversos assuntos, até chegar no nosso compromisso da tarde.
— Amor... estava pensando sobre o que essa advogada vai dizer... Sendo bom ou ruim, não acho que seja o nosso melhor momento... — Juh disse, cautelosamente, tomando cuidado com as palavras.
— Você tem razão, amor — concordei, sem buscar explicações.
— Não me sinto bem psicologicamente, essa coisa de irmãos mexeu muito comigo. Uma hora estão de boa, outras tiram meu juízo e jogam longe... Quero estar 100% bem quando a gente aumentar nossa família — ela finalizou com um sorriso, acariciando o meu rosto.
— Quer ter dez filhinhos comigo ainda? — perguntei, dando um beijinho de esquimó.
— Quero ter todos os nossos filhos — Juh falou, e me deu muitos selinhos.
Se tratava da nossa saúde mental, foi uma decisão acertada e responsável. Infelizmente, não era o momento.
Nesse exato momento ouvimos batidas na porta e Júlia levou um susto, saltando para longe dos meus lábios.
— Atende para mim — falei, rindo dela assustada.
E ela levantou para recepcionar o doutor. Acredito que Juh imaginou que eu queria privacidade e ia se retirando, mas na verdade o que eu mais desejava compulsivamente era a presença dela.
— Amor, me dá um copo d'água — pedi, como pretexto, e ela retornou.
Deu um tapinha no sofá e a gatinha entendeu, porque se posicionou ao meu lado e entrelaçou nossas mãos.
Tentei ser breve porque não queria atrapalhar o serviço do médico. Eu sabia que as demandas da clínica só cresciam, e a ala de emergência é sempre aquele caos controlado, que não deixa de ser um caos.
Contei sobre o meu tratamento, a medicação que eu fazia uso e relatei como eu havia notado uma piora significativa nos últimos dias. Ele me ouviu atenciosamente e disse que muito provavelmente seria feita a troca do medicamento com o meu psiquiatra.
Eu tinha certeza disso e era o que eu pretendia fazer na próxima consulta, porém como eu basicamente não tive direito de escolha em procurar ajuda imediata ou não... Acabei com um acesso intravenoso no braço.
— Não se pode ter episódios de apatia ansiosa respondendo ao estresse crônico se você estiver completamente apagado — brinquei com o doutor.
— Por isso que dizem que médicos são os piores pacientes — ele disse, rindo.
Agradeci o atendimento e ele se despediu.
— Eu com certeza vou dormir — falei, apoiando meu corpo no braço do sofá.
— Deita direitinho, eu vou ficar aqui o tempo todo, tá? — Juh garantiu, segurando a minha mão.
E eu fiz o que ela mandou. A gatinha cuidadosamente foi deixando tudo mais aconchegante: fechou as cortinas, tirou os meus calçados e, por último, abriu meu cinto.
— Sua safada, querendo se aproveitar de mim — zoei, mordendo o lábio inferior.
— Para de brincadeiraaaa — Juh disse, rindo de mim.
— Mas se quiser, pode... — brinquei novamente.
— Quando eu quiser você vai saber — ela falou, convencida.
— Eita... — Iniciei, mas Juh me deu beijinho e sentou no braço do sofá para iniciar um cafuné.
E entre uma gota e outra, um cafuné, um toque, um beijo... Apaguei, naquele sono típico de pedra. Sem sonhos, apenas fechei os olhos e acordei, como se estivessem passado apenas cinco minutos, mas na verdade já eram quase três da tarde.
Júlia agora estava sentada no chão a minha frente, uma posição "perninha de índio", como ela costuma dizer e mexendo no celular com uma de duas mãos entrelaçada a minha.
Eu já estava sem o acesso e ela passava o tempo com um joguinho. Deslizei meu polegar pelo dorso carinhosamente e sua atenção se voltou para mim.
— Aiii, que bom que você acordou, amor, eu já estava com saudade de conversar com você, sabia? Se sente melhor? — Juh questionou, me enchendo de beijinhos.
— Se eu não estivesse melhor, melhoraria agora — Respondi, a abraçando.
— Eu pedi almoço no Ifood, vou pegar para você. Achei melhor não te acordar para você poder descansar bastante — Juh disse, indo até a minha mesa e voltando com um prato.
E então eu percebi que estava com fome, independente de qual comida fosse, cairia bem.
Enquanto eu me alimentava, ela contava tudo que fez enquanto eu estava apagada. O mais engraçado foi ela dizendo que deu um passeio pelos andares de cima, mas achou assustador e voltou o mais rápido possível.
— Também pedi um atestado para você — Ela disse despretensiosamente.
— Amor... Não é assim que funciona, amanhã eu só trabalho pela madrugada e já me sinto bem... Não faz sentido não ir — Falei, já sabendo que não seria uma conversa fácil.
— Lore, eu não quero discutir. Só acho que um diazinho que você faltar o hospital não vai entrar em colapso — Juh comentou insatisfeita, deitando sobre o meu peito.
— Você não faz ideia do tanto de cosas que acontece em um diazinho - Falei, respirando fundo.
— Odeio o fato de você ter a liberdade de flexibilizar os seus horários porque você acaba trabalhando mais do que deveria, sua carga horária não é normal, amor — Ela disse, chateada.
— Eu até concordo que não é uma carga horária normal, mas te digo com toda certeza de que não é do jeito que você pensa é sim de maneira positiva... Eu já trabalhei muito mais do que isso, hoje em dia tenho um ótimo tempo de qualidade com nossa família — Expliquei.
— Tá bom, tá bom, Lore... — Júlia falou, como s quisesse encerrar logo a conversa.
— Lore, é? Não sou mais amor? — Perguntei, roubando um beijo.
— Não — Ela respondeu, mas em tom bem humorado.
— Gatinha, eu não sou irresponsável... Se eu não me sentisse apta, jamais prejudicaria a vida e o bem estar de outra pessoa — Argumentei.
— Exceto a sua própria vida e o seu próprio bem estar — Júlia disse, séria.
Quando eu me preparava para responder, a advogada nos ligou para informar que o link para nossa reunião estava disponível. Achamos melhor acessar pelo computador do escritório, então nos dirigimos para lá.
Drª. Ivone começou pedindo desculpas pela demora em no dar um retorno e em seguida relatou que revisou linha por linha do processo de adoção de Kaique e não encontrava nenhuma incongruência que pudesse dificultar e travar o novo... Até que resolveu dar uma olhada nas questões básicas!
— Vocês nunca notaram a diferença de idade entre Júlia e Kaique? — Ela perguntou.
Quando se entra em contato com a vara da infância e da juventude, uma das primeiras informações que é passada é sobre a idade. A adotante deve ter dezesseis anos a mais que o adotante, mas como ninguém nunca tocou nessa pauta em relação a nós, nem a psicóloga e nem o juiz... Eu achei que deveria ser algo que apenas uma das partes importasse e para falar a verdade, como nunca mencionaram como um problema, eu não prestei muita atenção.
— Doze anos... — Juh comentou, apertando a minha mão.
— Isso pode de alguma forma tirar nosso filho da gente? — Perguntei, preocupada.
— É muito pouco provável, fiquem tranquilas. O vínculo afetivo construído ao longo desses anos é levado em consideração, e tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente quanto o Código Civil priorizam o princípio do melhor interesse da criança. A justiça evita ao máximo causar sofrimento emocional e instabilidade para uma família já formada. — Disse a advogada.
— Então não existe a chance de alguém tirar o Kaique da gente? — Perguntei, preocupada com a possibilidade.
— Olha, só existiria uma chance mais forte de um processo judicial se Kaique tivesse algum parente biológico interessado em anular o processo de adoção ou se vocês tivessem ocultado informações ou falsificado documentos, mas claramente não é o caso aqui. A culpa foi de quem conduziu o processo, não de vocês — Explicou Drª. Ivone.
— O que pode acontecer agora? — Juh perguntou, com a voz baixa.
— O mais provável é que a vara da infância reconheça o erro e regularize a situação de forma administrativa ou, no máximo, por meio de uma ação de convalidação judicial. É um procedimento para corrigir o vício e garantir a segurança jurídica da adoção.
— E se eles não quiserem convalidar? — insisti, sentindo um frio na barriga.
— Lorena, é extremamente raro uma anulação nesses casos. A jurisprudência brasileira é clara: o vínculo familiar já consolidado fala mais alto. Vocês não devem se preocupar com a guarda de Kaique ser retirada. O foco será corrigir o erro burocrático, não punir vocês. — Ela nos acalmou.
— Então nosso filho está seguro? — Júlia quis garantir.
— Sim, ele está seguro com vocês. Eu vou entrar com um pedido preventivo para evitar qualquer contestação externa e acelerar a regularização. Confiança! Essa situação pode ser desconfortável, mas ela não ameaça o que vocês construíram como família. — Garantiu a advogada.
— Obrigada, doutora. Acho que, vamos esperar um pouco antes de entrar em um novo processo. — Falei.
— Estou com vocês em cada passo. Qualquer novidade, entro em contato imediatamente e quando quiserem iniciar a nova adoção, também podem contar comigo para enfrentar essa nova batalha — Ela nos disse.
— Tá bom… Obrigada mesmo... — Juh respondeu, tentando sorrir.
Desligamos e ficamos um tempo em silêncio. A gatinha veio para o meu colo e dei um forte abraço nela.
— Nada na nossa vida nunca foi facinho, vamos passar pra mais isso — Disse-lhe e demos um selinho.
— Com certeza... — Juh falou, encostando a cabeça no meu peito.
Estávamos visivelmente nervosas, ambas com as mãos geladas.
Fomos para casa e eu não queria, até tentei lutar contra as pálpebras que pesavam, mas o meu corpo não me obedecia. Acabei dormindo mais um pouco.
Eu desejava ficar um pouco mais com Juh, a cabecinha dela estava fervilhando mais do que a minha com certeza, porém não consegui. Despertei mais ou menos uma hora antes do horário que deveria estar na filial e fui tomar um banho.
Enquanto eu me arrumava, ela tentava me convencer a não ir, porém não deu certo. O clima entre nós era apenas de discordância, mas fazíamos de tudo para mostrar uma a outra que, no caso dela era preocupação e no meu responsabilidade.
Foi uma madrugada bem agitada... Mas todas as vezes que consegui pegar no celular havia uma mensagem: "tá tudo bem?" ou "sentindo alguma coisa?" e graças a Deus, correu tudo bem. A única coisa que senti foi saudade do meu amor.
Pela manhã, indo para casa, comprei um pequeno buquê de lavandas para ela. Não encontrei girassóis, contudo, lavanda ganhou um grande significado especial para nós.
PS: Atualmente não há impedimento algum referente a uma nova adoção, mas nós preferimos não tentar novamente... Deu um medindo, sabem? 🫠