Três dias de pura loucura. Era assim que Cauê descrevia os ensaios técnicos dentro do Bumbódromo. O calor, os ajustes de última hora, a tensão nos bastidores e o cansaço acumulado transformavam tudo num redemoinho de emoções. Para piorar — ou melhorar, dependendo da perspectiva — a equipe de música do Garantido ainda precisava produzir conteúdo para as redes sociais. Lives, vídeos curtos, bastidores... Era um espetáculo dentro do espetáculo.
Naquela correria, Cauê não tinha visto a sombra de Jonas desde o início dos ensaios no Bumbódromo. Ainda assim, os dois trocavam mensagens rápidas e prometeram a si mesmos uma semana de fuga para um lugar isolado — com muito beijo, muitos abraços e uma dose generosa de sexo e descanso.
Outra pessoa que ele quase não via era a mãe. Milena passava os dias na Casa dos Itens, concentrada com as demais figuras centrais do bumbá. Cauê estava especialmente curioso para vê-la, pois entre todas as mulheres que representariam os itens femininos, Milena era a mais velha. Sabia que ela estava se desafiando.
Com o coração apertado e curioso, ele correu para o camarim das itens femininas. Encontrou Milena sentada em frente a um espelho iluminado, rodeada por amigas que falavam animadamente. Um cabeleireiro trançava seus cabelos com paciência e cuidado. A expressão de Milena era de serenidade — ela parecia em paz.
Cauê suspirou aliviado.
— Está tudo bem por aqui? — Perguntou, sorrindo.
Milena sorriu de volta.
—Está sim. Ganhamos um dia no spa, acredita? Massagem tailandesa, esfoliação, hidratação, chá de ervas... Fiquei até com vontade de dormir no meio do tratamento.
—Eita, chique! — Respondeu Cauê, rindo. — A senhora está maravilhosa.
—Você está tranquilo? — Perguntou ela, com ternura, enquanto olhava o filho pelo espelho.
—Sim. A senhora é quem devia estar mais nervosa...
—Não, filho. Estou falando da sua música. Você está bem com isso?
Cauê assentiu. Depois respirou fundo.
—Claro. Eu nunca fiz um ato de amor desses. Estou nervoso, mas muito feliz.
As mulheres do camarim, que escutavam em silêncio, suspiraram e sorriram. Algumas bateram palmas discretamente.
—É isso mesmo, Curumim! — Soltou Isadora, a cunhã-poranga do Garantido. — Não existe forma errada de amar.
—Então, te desejo toda sorte do mundo, Cauê. Saiba que sou muito feliz em ser a tua mãe. — Declarou Milena, com os olhos marejados. O beijou no rosto com carinho. — Agora vai. Vou fazer a maquiagem e não quero chorar.
Cauê sorriu, abraçou a mãe e desejou sorte. Antes de sair, viu a médica especialista em voz preparando uma inalação para Milena. O cuidado com cada item era minucioso.
Seguiu para o camarim dos músicos, onde o clima era outro: tenso, focado. Os últimos detalhes de som e figurino estavam sendo organizados. O grupo abriria o ensaio com uma performance especial — a música composta por Jonas em homenagem ao amor de Cauê. Nas redes sociais, a social media do Garantido anunciava com orgulho: "Uma homenagem especial ao Dia do Orgulho LGBTQPIA+."
Enquanto se trocava, Cauê se pegava emocionado. Havia se dedicado muito para chegar ali. Ver aquela música tomando vida, no coração do Festival, era uma vitória pessoal — e coletiva.
O Bumbódromo, dividido entre as cores azul e vermelha, já se preenchia. Às 15h, o item 19 — a galera, como era carinhosamente chamada — entrava com força. Era o povo, apaixonado, que enfrentava o calor amazônico de peito aberto e alma vibrante. Cada canto do estádio ganhava vida.
—É incrível, não é? — Comentou William, ajeitando o figurino dos músicos, ainda desconfortável com as roupas justas e decoradas.
—Sim. — Respondeu Cauê, observando a arquibancada se encher. — É uma energia muito boa.
— O seu figurino chegou. A gente passa o som em trinta minutos. Vai logo se trocar. — Pediu William.
—Pode deixar! — Cauê correu de volta para o camarim.
Do outro lado do Bumbódromo, Jonas também havia chegado cedo. A pedido do pai, Otaviano, ajudava a orientar detalhes técnicos da apresentação do Caprichoso. Mal sabia da surpresa preparada na passagem de som do Garantido, e a correria o afastara das redes sociais naquele dia.
Enquanto revisava as marcações com os dançarinos, foi interrompido por uma presença inesperada. Alexandra entrou na sala com passos firmes, vestindo a camisa da equipe técnica do Garantido. O silêncio foi imediato. Todos pararam para observá-la.
—Com licença, Jonas. Preciso falar com você. Um minuto.
—Comigo? — Perguntou ele, surpreso.
—Tem outro Jonas Benevides no recinto? Anda logo — Ordenou ela, já perdendo a paciência e o puxando pelo braço.
Jonas foi levado para fora sem entender nada, mas o coração acelerado já indicava que algo muito maior estava prestes a acontecer.
***
Graças a Deus, o fim daquela tarde em Parintins trouxe um vento gentil, varrendo o calor sufocante e aliviando os torcedores que já ocupavam as arquibancadas do Bumbódromo, ansiosos pelo espetáculo que se aproximava. As cores dos bumbás flutuavam como bandeiras de guerra e esperança, misturadas ao som de marujadas, tambores e risos. A festa estava só começando, mas os corações já pulsavam no ritmo da paixão amazônica.
Jonas e Alexandra caminhavam com pressa pelos corredores extensos do Bumbódromo, como quem carrega um segredo nas mãos. Por onde passavam, olhares curiosos se viravam: não era comum ver o filho do presidente do Caprichoso em meio à equipe do Garantido. Havia algo de solene naquela mistura de cores rivais, algo que fazia até o ar parecer mais denso.
— Olha, eu não quero confusão e... — Começou Jonas, inquieto.
— Cara, tu estava certo. — Alexandra interrompeu, a voz mais suave que o habitual. — A gente estava sendo babaca contigo e o Cauê. Mesmo sendo inimigos na arena, eu não tenho nada contra ti. Então, só aproveita, ok?
— Aproveita o quê? — Jonas franziu o cenho.
— Sem perguntas, curumim. — Ela apenas sorriu.
Antes que ele insistisse, ela o empurrou levemente na direção da arena, e a luz do fim de tarde o envolveu por completo quando passou pela entrada.
Foi como entrar em outro mundo.
Jonas ficou paralisado por um momento, os olhos arregalados, como um menino diante da primeira aurora. Não era seu primeiro festival, longe disso — ele crescera entre batuques e lendas —, mas algo naquela cena o atravessou com força. A plateia vibrava, as arquibancadas tremiam com a energia dos aplausos, bandeiras vermelhas e azuis dançavam ao vento, e a cultura do povo se erguia como um gigante feito de som e luz. Ele sorriu, encantado.
— Quer amor maior que esse? — Pensou. — Um povo que para tudo para cantar celebrar sua cultura.
Mas sua contemplação se quebrou ao ver o que havia à sua frente: a equipe de música do Garantido em formação, todos olhando para ele. Jonas piscou, confuso. Olhou de volta para Alexandra, que já havia sacado o celular do bolso e começava a filmar. Ela deu um sorriso de canto e apontou para frente.
Então, sob as luzes vermelhas e douradas que se moviam como espíritos festivos pelo Bumbódromo, Cauê deu um passo à frente.
Respirou fundo.
Seu coração batia acelerado, não pelo tamanho da multidão, mas porque aquele momento carregava algo íntimo e corajoso. Ele não ia apenas cantar — ia se expor, se abrir, declarar.
Vestia o traje tradicional dos músicos do Garantido na primeira noite de apresentação: um deslumbrante conjunto vermelho, cravejado de paetês prateados que reluziam a cada movimento. Arabescos bordados em linhas brilhantes serpenteavam pelo tecido como rios encantados. No centro do peito, estampado com orgulho, o boi branco de olhos doces — símbolo maior de sua fé, cultura e amor — o Garantido.
Na cabeça, um chapéu vermelho de aba larga, também cravejado de pedrarias, coroado por um pequeno boizinho branco, como um guardião do coração que batia forte.
Cauê levantou acenou para Jonas e aproximou o microfone dos lábios. No meio do rugido da torcida e dos tambores, sua voz cortou o ar.
— Boa tarde, galera. Eu me chamo Cauê Alencar.
A multidão respondeu com aplausos e gritos. Cauê sorriu, mas seu olhar já procurava uma única pessoa no meio da arena.
— Esse aqui na minha frente... — Ele apontou para Jonas, que ainda tentava entender o que estava acontecendo — ... é o meu namorado, Jonas Benevides. Oi, amor.
Jonas engoliu em seco.
— Oi. — Disse, mas sua voz se perdeu no mar de euforia ao redor. Ainda assim, deu passos tímidos até Cauê, como quem caminha sobre um palco que não esperava pisar.
— Jonas, hoje é 28 de junho. É celebrado o Dia do Orgulho LGBTQPIA+. — Contou Cauê, se aproximando. Com ternura, tocou o rosto de Jonas com uma das mãos. — Por muitos anos, eu tive vergonha de ser quem sou. Mas ao chegar em Parintins, eu não imaginava o que me esperava. Até um rapaz bêbado cruzar o meu caminho...
A plateia riu com carinho, acompanhando a confissão.
— Eu sempre me perguntei o que queria fazer da vida, qual caminho seguir... mas contigo, eu só tive certezas. Eu sei o quanto você enfrentou dentro de si mesmo para estar aqui agora. E eu estou muito orgulhoso. Orgulho de você. Orgulhoso de nós.
Jonas piscou, e os olhos marejaram. O mundo parecia ter parado.
— Enfim... eu fiz uma música para você. — Concluiu Cauê, caminhando até os músicos e pegando seu violão.
Silêncio.
E então, a primeira nota soou, doce como um afago. A toada que seguiu não era só melodia, era confissão. Cada acorde era um pedaço de memória, cada verso, um fragmento de história costurado com emoção. E naquela arena que já viu tantos duelos, nascia um novo tipo de vitória: a coragem de amar, à vista de todos, com os pés no chão da tradição e o coração livre no céu amazônico.
***
No calor de Parintins, num bar à beira da rua,
Entre batuque e risada, a confusão fez a sua.
Te vi num canto sozinho, com olhos de quem fugia,
De um passado que doía, mas ninguém mais percebia.
Te falei com jeito torto, tu riu sem acreditar,
Entre um gole e outro afeto, começamos a dançar.
Na jukebox, uma toada que falava de paixão,
E sem querer, teu silêncio me prendeu o coração.
Teu toque era brando, mas tinha ferida,
Tua boca sorria, tua alma escondida.
De noite em noite, fui ficando em tua vida,
Mas entendi: teu amor... ainda era partida.
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No espelho dos teus olhos mora um nome calado,
Um rosto que o tempo não deixou desbotado.
Ele se foi, mas ainda te abraça em pensamento,
E eu me apaixonei por um amor em contratempo.
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Não te culpo, nem reclamo do que não me dás,
Teu carinho é metade, mas me acalma e me faz.
Mesmo sabendo que teu peito tem dono ausente,
Te cuido inteiro, mesmo sendo só presente.
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Se um dia teu céu abrir pro sol me alcançar,
Se teu peito cansar de só lembrar e chorar,
Eu estarei ali, com meu mundo na mão,
Cantando a toada que não coube na canção.
***
Jonas não conseguiu esconder a emoção. Em pé de frente a Cauê, o coração disparava a cada acorde dedilhado pelo namorado. As luzes do bumbódromo pareciam se apagar ao redor, deixando apenas o foco sobre o músico do Garantido, seu violão e a letra que — como flecha certeira — atravessava a multidão e cravava fundo no peito de quem ouvia.
A canção não era apenas bonita. Era íntima. Era sobre ele.
Cauê terminou a última estrofe com a voz trêmula e o rosto corado. O silêncio durou apenas um segundo antes que a plateia explodisse em aplausos e gritos. O som era ensurdecedor, mas ele mal o ouvia — estava tomado por uma onda de vergonha e euforia que o fazia parecer flutuar. Suas mãos tremiam, o coração batia tão forte que parecia querer sair do peito.
Sem dizer nada, tirou o violão dos ombros e o entregou a William, que o recebeu ainda em êxtase, sorrindo como quem sabia que acabara de assistir a algo inesquecível.
Então, sem pensar, Cauê correu. Subiu no pequeno desnível que separava o palco da lateral e foi ao encontro de Jonas. Os dois se abraçaram forte, como quem se reencontra depois de muito tempo, e ali mesmo se beijaram — um beijo real, sem medo, sem cerimônia. Um beijo celebrado por aplausos ainda mais altos.
O momento foi breve, mas eterno. Naquela fração de tempo, raízes se fincaram em solo fértil, alimentadas pela coragem e pelo amor. Em questão de minutos, vídeos e fotos da cena já circulavam pelas redes. Os comentários se multiplicavam: elogios, lágrimas, corações vermelhos e azuis lado a lado. A história de um músico do Garantido e do filho do presidente do Caprichoso emocionava até os mais céticos.
Mas aquela era apenas a primeira emoção do dia. Havia ainda duas apresentações pela frente. Dois espetáculos para entrar na arena e defender, com garra e paixão, as cores que carregavam no peito. O festival ainda não havia acabado — mas, para eles, um novo capítulo da vida acabava de começar.