Capítulo 14 – Primeira Ponte
O domingo amanheceu com um silêncio espesso. Clara preparava a infusão de ervas enquanto Júlia, ainda de pijama, trocava olhares silenciosos com Marcos, que parecia inquieto. Ele havia dormido pouco. A carta estava pronta desde antes do amanhecer, rabiscada com mãos trêmulas e coração exposto.
Depois do café, Clara deu o comando:
— Vamos para o quarto. Hora da leitura.
O ritual era claro. Marcos se ajoelhou sobre o tapete bege, com o laço branco ainda no pulso. Júlia sentou-se ao lado da cabeceira, com o caderno das observações apoiado no colo. Clara, de pé, assumia o papel da maestra.
— Leia — disse ela. — De onde vem, para onde vai.
Marcos respirou fundo e começou:
“Hoje, ao ser tocado sob o olhar de duas mulheres, senti que não era mais um homem comum. Não pela dominação, mas pela nudez que vai além do corpo.
Quando Clara pressionou meu ponto mais escondido, não foi só carne. Foi memória. Vergonha. Desejo. Tudo ao mesmo tempo.
A presença de Júlia me expôs como um espelho — não pelo olhar dela, mas pelo meu reflexo no olhar dela. Eu me vi frágil, excitado, pequeno, verdadeiro.
Senti vergonha... mas também alívio.
Eu entendi que não preciso ser o homem que sempre achei que precisava ser. Só preciso ser inteiro diante de vocês. E inteiro... às vezes, é ajoelhado.”
Ao terminar, ele abaixou a cabeça. O silêncio que se seguiu foi longo, mas não vazio. Júlia tinha os olhos brilhando, como se algo estivesse sendo desbloqueado dentro dela.
Clara então se aproximou de Júlia, colocou a mão sobre seu ombro e disse:
— Agora é sua vez.
— Minha? — ela murmurou, surpresa.
— Sim. Você vai tocá-lo. Comanda mínima. Observação ativa. Mas com as mãos. Eu vou dizer quando parar.
Júlia hesitou, mas Clara foi firme:
— Não é sobre desejo, Júlia. É sobre posição. Sentir o que se move entre três presenças. Com coragem.
Júlia se levantou. Aproximou-se de Marcos com passos lentos, como quem atravessa uma ponte fina. Ele ergueu o olhar, trêmulo.
Ela esticou a mão e tocou seu rosto com os dedos leves. Desceu até o pescoço, sentindo o pulso acelerado. Clara observava tudo com os olhos semicerrados, como se cada gesto fosse parte de uma coreografia secreta.
Júlia deslizou a mão pelo peito de Marcos, depois pelas costelas, e parou abaixo do umbigo. Hesitou.
— Continue — disse Clara.
Com delicadeza, ela encostou a mão aberta na virilha dele, sem apertar. Apenas presença. E então, pela primeira vez, Marcos gemeu baixo ao toque de outra mulher que não Clara.
Ela retirou a mão como se tivesse encostado numa corrente elétrica.
— Basta — disse Clara.
Marcos caiu de lado, respirando como quem voltava à superfície depois de minutos submerso.
Júlia deu um passo para trás, atordoada.
Clara se aproximou dela, de frente, e perguntou com a voz baixa e direta:
— O que você sentiu?
— Achei que fosse sentir culpa... mas senti... ternura. E uma coisa... viva. Quente. E medo. Medo de gostar demais.
Clara tocou o rosto da babá com a ponta dos dedos. Os olhos de ambas se encontraram com intensidade.
— Então chegou a hora de você escolher se vai continuar só olhando... ou se vai aprender a estar dentro. Dentro da casa. Dentro do ritual. Dentro de si.
Júlia mordeu o lábio. Seus olhos voltaram para Marcos, ainda deitado no tapete, com a respiração ofegante.
— Eu quero entender. Quero ir até onde der.
— Então vamos com calma — disse Clara. — Amanhã, voltamos à terapeuta. E você vai contar a ela o que sentiu. Sem filtro.
Júlia assentiu.
Clara se afastou e voltou a observar o corpo do marido no chão. A vulnerabilidade dele a encantava — não como submissão, mas como entrega. Cada gesto, cada tremor, era um idioma que ela estava aprendendo a dominar com fluência.
Ela se ajoelhou ao lado dele, o acariciou na nuca, e sussurrou:
— Hoje você atravessou uma nova porta. E do outro lado... não se volta igual.
Marcos não respondeu. Apenas fechou os olhos. Um traço de lágrima escorria no canto. Ele havia cruzado mais do que limites — havia cruzado a si mesmo.
Clara olhou para Júlia e disse, como quem selava um novo pacto:
— A casa mudou. Você sente, não sente?
Júlia apenas balançou a cabeça em silêncio.
Sim.