Fomos deitar e eu a abracei bem forte, e logo Juh, que sempre adormece facilmente nos meus braços, ficou ali por um bom tempo fazendo carinho no meu rosto.
— Amor... — A ouvi dizer quando eu já estava quase pegando no sono.
— Oi, gatinha — Respondi, bem sonolenta.
— Você já ouviu falar em inseminação caseira? — Me questionou.
No mesmo instante, o sono se esvaiu e ligou o sistema de alerta do meu corpo. Definitivamente, eu não esperava por isso.
— Por que isso agora, amor? — Perguntei.
— Estava aparecendo muitos vídeos pra mim... — Ela falou, triste.
— Você quer tentar engravidar novamente, é, Júlia? — Perguntei, em um tom sério.
— Não era pra eu ter perguntado isso agora — Juh falou, sem paciência.
— Por isso você estava assim, reflexiva? — Questionei.
— Eu não tinha certeza se deveria perguntar, mas agora já vi que cometi um erro, deixa pra lá, esquece... — Juh disparou, insatisfeita.
— Vamos dormir, depois a gente conversa melhor — Falei, fazendo carinho em seu rosto.
— Se tá fazendo carinho em mim, não tá brava — Júlia disse, com um ar de riso.
— Eu estou é assustada — Falei, sorrindo e dando um selinho nela.
Eu, Lorena, a mulher mais pró-diálogo que já viveu no planeta Terra, estava evitando uma conversa com a minha esposa, que coincidentemente é a muié que eu mais gosto de conversar.
~ Podem printar, isso não é algo fácil de acontecer 🤣
A tentativa de retomar o sono foi em vão.
Por mais que eu mantivesse os olhos fechados e respirasse fundo, o pensamento insistia em correr pra um lugar que eu não queria visitar naquela noite. Eu sabia que era só encostar a mão no braço dela, puxar pra perto, sentir aquele cheirinho no pescoço dela e o sono voltaria. Sempre voltava, mas dessa vez, não.
O corpo dela estava ali, quentinho, grudado em mim, porém minha cabeça estava quilômetros de distância. A pergunta que ela me fez ainda ecoava como um sussurro irritante:
"Você já ouviu falar em inseminação caseira?"
Eu já tinha ouvido falar, porém sabia poucas informações e tudo que eu sabia sobre não me agradava. Achava perigoso, risco de transmissão de doenças infecciosas, e não é uma questão regulamentada juridicamente no Brasil. Imagina você estar lá com seu filho e bater um cara na sua porta solicitando o exame de DNA e exigindo a paternidade... Fudeu, né?!
Se a questão fosse inseminar, realizava a inseminação artificial em clínicas especializadas que oferecem maior segurança e acompanhamento profissional. Porra, uma das melhores amigas de Júlia é especialista!
Mas o problema maior não era a técnica, era o significado por trás daquilo. Juh aparentemente queria tentar de novo, e só de pensar nisso, meu peito apertava. Pra mim era impossível ouvir aquilo e não lembrar da última vez, de como tudo tinha sido cruel.
Lembrei das noites que a gente passou abraçada, chorando, da quantidade de sangue perdida, da correria no carro, do hospital, da clínica, do medo, da expressão dela, da minha gatinha pálida, fria, fraca… E eu vivendo completamente desesperada, mesmo em silêncio, sem saber o que fazer além de segurar a mão dela e implorar pra que aquilo passasse.
Eu tinha feito uma promessa pra mim, pra ela e pra gente: nunca mais!
Prometi que não deixaria ela passar por aquilo de novo, que eu mesma não passaria, porque a dor de quase perdê-la e a dor de perder nossa filha eram marcas que eu ainda carregava, mesmo depois de todo esse tempo. Até então, a gente estava alinhada nisso, dividíamos a mesma certeza de que não íamos mais mexer nessa ferida e que, se fosse o caso de termos mais filhos, eles viriam através da adoção.
Mas parece que as coisas haviam mudado, pelo menos pra ela.
Eu estava ali, deitada ao lado da mulher que eu mais amo nesse mundo, com o coração acelerado, a mente ligada no 220v e o medo gritando dentro de mim.
Fechei os olhos com força, tentando fugir de um pesadelo, mas era real e tinha começado com uma simples pergunta antes de dormir. Definitivamente, eu não queria ter aquela conversa, porém também me sentia mal por Juh ter hesitado em me perguntar justamente por saber que essa seria a minha reação.
Eu geralmente não fujo de diálogos, sempre tento conversar pra resolver. Na verdade, isso é uma regra subentendida do nosso relacionamento... Como fugir justamente disso? Simplesmente não dá!
Resolvi levantar pra beber um copo d'água. Eu não estava com sede, só queria me acalmar sem precisar tomar qualquer medicação.
Comecei a mover lentamente o meu braço, que estava em cima de Juh num abraço, e fui surpreendida pela mãozinha dela me puxando de volta.
— Não conseguiu dormir também? — Ela me perguntou, virando-se de frente pra mim.
— Não... — Falei, colocando as mãos nas têmporas.
— Vem cá, amor — Ela me chamou, carinhosamente, para seus braços, e eu fui — Esquece tudo que eu disse, tá? Desculpa, eu não queria mesmo te deixar assim — Juh pediu.
Talvez Júlia seja a única pessoa que consiga deixar essa muié faladeira sem palavras.
Eu sentia muitas coisas naquele momento, inclusive queria tranquilizá-la dizendo que ela não tinha feito nada de errado, contudo, não conseguia. A minha mente estava acelerada, o meu corpo trêmulo... Era óbvio o que estava prestes a acontecer.
— Vou pegar o seu remedinho e vai ficar tudo bem — A gatinha me informou, levantando.
Eu apenas aceitei os cuidados e, voltando aos braços dela, apaguei.
Despertei com o celular apitando. Ainda com o corpo pesado de sono, demorei alguns segundos para processar o que estava acontecendo até perceber que era o despertador me chamando pra realidade.
Eu estava completamente grudada em Juh, não sei como ela conseguiu dormir a noite inteira naquela posição. Fiquei uns instantes imóvel, apreciando aquela cena. Eu sempre gostei desses pequenos momentos, mas como o tempo não para, comecei a me mover devagarzinho, com o maior cuidado do mundo, numa verdadeira operação de fuga silenciosa, só pra não acordá-la e consegui, prosseguindo direto para o banho.
Quando voltei para o quarto, reparei que ela tinha começado a se mexer. Se virou de barriga pra cima, espreguiçando-se e estendeu os braços na minha direção, pedindo colo. Obviamente que eu fui até ela. Tem coisas nessa vida que são irresistíveis e essa é uma delas.
Ficamos naquela carícia matinal por um bom tempo, abraçadas em silêncio, sentindo o cheiro uma da outra. Vez ou outra eu depositava um beijinho em seu pescoço, que respondia apertando o abraço ou intensificando o carinho nas minhas costas.
— Você tá se sentindo bem, amor? — Ela perguntou, com a voz ainda rouca de sono.
— Só com um sono miserável — Respondi, bocejando.
— Desculpa... — Juh disse, tentando olhar agora mim.
— Não... Eu queria ter te dito isso ontem, mas não consegui... Gatinha, você não fez nada de errado. Se tem algo pra conversar, a gente conversa e resolve da melhor forma. Lutamos para construir essa ótima comunicação no nosso relacionamento, e só porque o assunto ainda é desconfortável pra mim, não quer dizer que a gente vai evitar — Falei, acariciando o rosto dela.
— Eu podia ter escolhido um momento melhor — Juh comentou, pensativa.
— Quem ficou insistindo pra você falar logo fui eu — Respondi, dando um sorriso de canto.
— A culpa é sua então, curiosa — Ela brincou, me puxando novamente para um abraço gostoso.
Não resisti e dei uma mordidinha no pescoço dela. Ela soltou um gritinho surpreso que me fez rir alto.
— Tão bom ter uma relação leve assim — comentei, ainda rindo.
— Não vai trabalhar não, amor... Fica, vai — Juh pediu, daquele jeito manhoso.
— Nem começa — falei, me esforçando pra levantar antes que ela resolvesse me segurar de novo.
Ela riu também, sem insistir, mas com aquele olhar pidão que quase me faz mudar de ideia.
O dia se transcorreu normalmente. Tive muitas reuniões com grupos diferentes e, ao sentir o cansaço no corpo, pedi para gravar a formação do dia seguinte. Geralmente eram ao vivo, porém havia essa opção. Abri um fórum de perguntas e, conforme fossem chegando, eu ia respondendo diretamente da minha cama no outro dia.
Ao chegar em casa, fui para o banho. Lembro de deixar a água fria bater por um bom tempo nas costas e, depois, desci para relaxar um pouco. Os três já tinham jantado, porém me fizeram companhia.
— A vovó veio aqui e trouxe mousse! — exclamou Milena.
— É... Eu vou ter que conversar com eles mesmo... — falei, olhando para Juh.
— Não deixa a gente sem os docinhos da vovó, mãe — lamentou Kaká.
— Se a vovó ou o vovô ficarem doentes, é muito mais perigoso para eles — expliquei, e os dois pareceram entender, mas não responderam nada.
Nós jogamos juntos e, zoando, fizemos a gatinha ser expulsa de duas salas, sendo inocente.
— Desisto — ela disse, saindo do jogo.
— Se irritou, neném? — perguntei, rindo.
Juh estava no sofá e eu no tapete. Me joguei por cima dela, percorrendo o corpo com beijinhos, enquanto ela prendia o riso.
— Não dá pra jogar com vocês — ela reclamou.
— A mamãe não sabe perder — falei para as crianças, que riam.
— Perder eu sei, mas vocês estão roubando — Júlia nos acusou, com certa razão.
— Só sei roubar beijo — disse, e juntei os nossos lábios.
— Ah não, vamos jogar mais uma vez — Kaká falou, me impedindo de roubar outro beijinho da mãe dele.
— Apenas mais um — deixei sob aviso, e os dois assentiram.
E ali, naquela última partida somente nós três, Juh abriu o TikTok, e, de dez vídeos, onze começavam com a introdução assim:
"Veja como foi o nosso processo de inseminação caseira"
"Veja quais vitaminas tomar após a inseminação"
"Tudo sobre a nossa inseminação caseira"
A muié ia pulando desesperadamente, mas acabava sempre aparecendo outro, até que ela desistiu.
Quando as crianças finalmente foram dormir, me servi de uma dose de whisky e fui até ela.
— Começa você, amor... Fala sobre o que te fez mudar de opinião, é o que eu mais quero saber — Pedi.
Juh tomou o copo da minha mão e, antes que eu reagisse, virou a dose inteira de uma vez só. Logo começou a tossir sem parar, fazendo careta.
— Que negócio ruim! — Ela exclamou, lacrimejando, com a voz rouca e levando as mãos até a garganta.
Não aguentei e soltei uma gargalhada, balançando a cabeça negativamente.
— Isso tudo é para tomar coragem? — Falei, tomando o copo de volta e sentando por trás dela, deixando nossos corpos juntos.
— É o tipo de conversa que teríamos na praia — Ela disse.
— Verdade... — Confirmei, em um lamento.
Júlia respirou fundo, encostando a cabeça em mim e me fitando com seus olhos intensos.
— Amor... Começou sem querer, eu caí em um vídeo de uma família e tinha parte dois, fui atrás e tinha muito mais partes e eu só fui assistindo... Nunca tinha ouvido falar e as mães foram explicando como tudo aconteceu, as dificuldades que enfrentaram e eu fui... Me identificando... — Juh finalizou.
— O que causou essa identificação, amor? — Eu quis saber.
— A primeira história parecia muito com a nossa, tentaram os métodos artificiais e não conseguiram e tiveram um resultado positivo, com um processo mais simples com a inseminação caseira... Foram aparecendo muitos, muitos videos. Juro, eu pulo um, aparece outro e isso acontece porque... O algoritmo entendeu que eu me interessei pelo assunto... Eu pesquisei mais e sempre acabo assistindo... - Júlia disse.
— Eu vi você pulando loucamente vários vídeos - Falei, soltando um sorriso.
— Em como algumas histórias pareciam com a nossa... Em como elas davam certo. E aí foi me batendo uma saudade de quando a gente tentou misturada com... Esperança... Sei lá, vai que assim dá certo... Eu fiquei com medo de te magoar, porém não consegui não sentir. E por mais que eu soubesse das opiniões que já expusemos... Aquilo não saiu mais da minha cabeça, mexeu comigo, amor... - Ela disse, com os olhos cheios de lágrimas.
— Eu nunca te pediria para não sentir algo tão... bonito... Te entendo e fico feliz por todas essas famílias que conseguiram realizar-se... Mas entender não é o mesmo que aceitar, não é? - Falei e Juh assentiu.
— Você já tinha ouvido falar sobre? — Ela me perguntou.
— Já, porém não sei se isso é bom, já que tudo que eu sei me faz não gostar da ideia - Informei.
— Eu queria somente dividir o que eu estou sentindo com você. Nem sei se eu conseguiria tentar de novo, mesmo que você dissesse: "adorei a ideia". Para mim era importante que você soubesse que isso mexeu comigo, mesmo que eu não soubesse por onde começar... — Juh disse, em um sorriso e me puxou para um selinho.
— Você é adorável, gatinha... Falando por mim agora, eu não me sinto pronta... Acho tudo lindo, mas mexe em uma dor conhecida e que eu não sei se eu tenho forças pra encarar de novo... Você sabe... Por tudo que vivemos... — Deixei claro.
— A gente pode falar sobre ou te machuca? Sem decisão, sem plano, só falar... — Júlia perguntou, revelando uma pequena animação.
— Podemos — Falei, sorrindo de canto ao observar as expressões dela.
— Depois quero entender tudo que você não gosta nessa via, agora vamos para cama? Estou ficando com sono — Juh falou ao levantar, erguendo a mão para mim.
— Eu estou morta de cansaço, amanhã vou acordar um pouco mais tarde para poder descansar — Falei, seguindo-a.
— Você quer uma massagem? — Juh propôs, virando-se para me beijar no meio da escada.
— Eu nunca negaria suas mãos percorrendo o meu corpo - Falei maliciosamente, sugando seu lábio inferior.
— E o cansaço? — A gatinha questionou, passando o rosto no meu pescoço.
— Amanhã tem... — Falei, apertando a bunda dela.
— Tem... — Confirmou, recebendo minha língua em sua boca.
A gente ainda ficou conversando enquanto a massagem rolava, fui até comunicada que teria terapia no dia seguinte.
Com a quantidade de acontecimentos recentes, foi algo que acabou ficando de lado e as consequências dos meus filhos atos, já estavam surgindo.
No fim, foi uma ótima conversa e nada, absolutamente nada, do que eu imaginei na noite passada aconteceu. A ansiedade tem esse poder de transformar um assunto em um monstro de sete cabeças, pinta cenários catastróficos que não existem, cria diálogos inteiros que nunca foram ditos e coloca um peso absurdo em algo que, na prática, acabou sendo leve, respeitoso e cheio de carinho.
É claro que a ideia mexeu com a Juh, isso ficou óbvio para mim. Eu via nos olhos dela, na maneira como a gatinha segurava minha mão enquanto falava, nas pausas longas entre uma frase e outra, no cuidado que ela teve com cada palavra. Contudo, ela não decidiu nada sozinha, o que aconteceu foi o contrário: ela dividiu os sentimentos comigo, abriu o coração sem medo, mesmo sabendo que era um tema delicado e a gente conversou como sempre fazíamos, uma escutando a outra.
Não houve briga, não teve cobrança, nenhuma das duas impôs nada sobre a outra. Só um casal tentando entender juntas um assunto difícil. E por mais que eu ainda não soubesse lidar direito com tudo isso, por mais que apenas em pensar em reviver certas dores meu peito apertasse… Ter tido essa conversa me fez relaxar, acalmou meu coração de maneira que eu jamais imaginaria.
— Eu te amo, gatinha — Sussurrei, quando Juh finalizou a massagem e depositou um beijo no meu ombro.
— Eu também te amo, amor — Ela respondeu, deitando-se ao meu lado. Agarradinha comigo.
E nos deixamos levar pelo sono, que nós embalou até a manhã seguinte 😏🔥