Capítulo 6 – Vozes que Curam
O bebê chegou numa madrugada fria, trazendo com ele um cansaço novo e um amor feroz. Clara chorou ao ouvir o primeiro choro — e Marcos chorou ao ver Clara chorar. Mas depois daquele momento de luz intensa, vieram as sombras sutis da adaptação.
A rotina virou um relógio quebrado. Clara mal dormia. Amamentar era exaustivo, dolorido. Seu corpo — aquele corpo que antes dançava desejo e curvas — agora doía até para levantar da cama. Marcos tentava ajudar, mas seus gestos, embora bem-intencionados, muitas vezes esbarravam em silêncio, irritação, exaustão.
E o fogo? O fogo ainda morava em Clara, mas agora misturava-se à culpa, ao medo, à sensação de estar desconectada de si.
Foi ela quem sugeriu:
— Acho que precisamos conversar com alguém.
— Um terapeuta? — ele perguntou, surpreso.
— Uma terapeuta. Feminista. Quero alguém que entenda o que eu estou passando. Que entenda a pressão que o mundo joga nas costas de uma mulher quando ela vira mãe… e também a carga que você carrega como homem tentando reaprender.
Marcos assentiu. Ele não entendeu tudo, mas confiava nela.
A sala da terapeuta era clara, com almofadas no chão e uma estante cheia de livros com títulos como O Corpo da Mulher como Território Político e Masculinidades em Trânsito. Clara se sentiu segura ali. Marcos, desconfortável no começo, mas curioso.
A terapeuta, Luísa, era direta e serena.
— Quero começar perguntando a vocês dois: o que mudou no desejo de vocês desde o parto?
Clara respirou fundo.
— Tudo. Eu ainda sinto desejo, mas é como se estivesse guardado num armário alto. Eu preciso de carinho antes do toque. De escuta antes do tesão. E de não me sentir apenas um corpo cansado.
Luísa assentiu.
— E você, Marcos?
Ele hesitou, mas falou:
— Eu sinto falta dela. Do jeito que ela me olhava antes. Do toque. Mas não quero forçar nada. E ao mesmo tempo… fico perdido.
A terapeuta sorriu com empatia.
— Marcos, você já começou a desconstruir algo valioso: a ideia de que desejo é uma corrida com largada automática. Clara está redescobrindo o próprio corpo — e você, se quiser, pode fazer parte disso, mas não com pressa. Com presença.
Clara olhou para ele, tocando sua mão.
— Lembra do “coelhinho”?
Ele sorriu, sem jeito.
— Lembro.
— Aquilo foi mais do que uma brincadeira. Foi um momento em que você ouviu meu corpo. Agora… talvez a gente precise aprender a ouvir outras linguagens. Como o silêncio. O cansaço. O toque sem intenção de chegar em algo.
Luísa completou:
— O desejo feminino, especialmente no pós-parto, não desaparece. Ele muda de forma. Ele passa a nascer de outros gestos: quando você lava a louça, quando troca uma fralda sem que ela peça, quando a deixa dormir um pouco mais. Erotismo é também cuidado. Intimidade não é só pele — é segurança emocional.
Marcos respirou fundo.
— Então, o que eu posso fazer?
Clara apertou a mão dele e sorriu.
— Você pode começar me ajudando a lembrar que eu sou mais do que mãe. Que eu ainda sou mulher. E depois… talvez, um dia, eu volte a abrir as pernas e sussurrar o que você deve fazer. Mas não como antes. Como agora. Como a gente é hoje.
Na volta para casa, o bebê dormia no bebê-conforto no banco de trás. Marcos olhou para Clara no semáforo. Ela estava descabelada, com olheiras fundas, mas ainda assim linda. Forte. Real.
— Obrigado por me levar lá hoje — ele disse.
— Obrigado por ter vindo — ela respondeu.
E pela primeira vez em semanas, entre o cansaço e o caos, ela segurou a mão dele com desejo. Não de corpo. Mas de presença.
O fogo não tinha se apagado.
Apenas aprendia a queimar de outro jeito.