29 (Jarbas)
Eu amo esses caras, todos eles, cada um deles.
Atender o pedido de Xica era impossível disse isso a ela, abrir a porta como se estivessem voltando de um passeio de fim de semana, impossível, ainda mais depois de saber que Israel acertou o olho de Camila, impossível.
Tem de haver festa, tem de haver comemoração, música alta, iluminação especial, roupa de festa, bolo e discurso, pompa, garantia de bebedeira, certeza de sexo dos mais depravados. Quando Xica veio me contar que estava sentindo falta de macho, pau no cu lavando ela por dentro, de ser chamada de vagabunda, peito sendo mordido esmagado, tapa na cara, dormir de conchinha, que olhava para Conrado no refeitório e sentia vontade de chupar o pau dele na vista de todo mundo, ele lhe pegando pelo cabelo e a levando para onde achava melhor, mandando os amigos fazerem fila pra lhe comer a bocetinha.
Ela então olha pra mim e diz que adora estar casada com Cássia, era isso: perfeito, o toque, o sexo, o gosto, o cheiro, mas principalmente conversar, fazer planos, fazer uma piada e não ter que explicar, saber que ela entendeu, era isso, sentia a falta de Camila, muita, muita, queria que ela parasse de se prostituir numa relação que foi bonitinha em dois dias, mas depois tinha um gay (não um bi, não um hétero permissivo, não um gay aberto a possibilidades), um gay hétero-fóbico (se isso existe), mas convenientemente machista quando lhe interessa, misógino, um cretino, boçal, mesquinho, inseguro, depressivo e medroso, cagão. Acho que o bojo era isso, claro que ela foi bem específica e o quinto dos infernos foi o melhor lugar para o qual ela o mandou.
“Brigaram por conta de Ricardo, eu nem sei seu interesse nele”, era disse e continuou expondo que Camila disse que eu era de outro nível, nunca iria arriscar absolutamente nada por qualquer um que fosse, meu negócio era manter o amor de Noah e Otto e se algo perturbasse minimamente isso, eu iria descartar como pilha velha, só esperando um local adequado para o descarte. Nada contra Rick, mas ele se iludia quando achava que havia chance. Israel perguntou se era assim que ela pensava sobre si mesma em relação a Felipe; ela não gostou da afronta, mas devolveu com outra, “Claro que sim, você e eu estamos no nível de baixo, ou ele não ficaria feliz com nossa partida”.
Israel lhe acertou, mas ela estava com uma panela no fogo e usou a panela quente para o atacar, a coisa não deu bom. Ele veio ao hospital, ele estava pronto para fazer um carnaval, ele queria processo, Xica estava assustada, Camila estava em pânico desde o dia anterior e Cássia louca sem saber como lidar com a situação, nenhuma das duas sabia.
Liguei para Daniel e pedi um favor urgente, buscar Camila e Cássia na casa de Xica, mostrar onde desovamos Alex e Pepeu e era onde iria parar qualquer otário que encoste nas nossas meninas daquele instante adiante, eu iria mandar Felipe, Xica e Conrado direto para o barco, disse que Daniel tratasse de deixar as três bem comidas, muito comidas. O resto eu resolveria. Xica ia falar, mandei ela ficar na minha sala, não falar com ninguém sobre o assunto que conversamos, eu iria pedir para ela tratar Felipe e Conrado muito bem, ela estava de folga o resto da semana. Fui procurar Felipe e fui objetivo, disse que os compromissos dele estavam suspensos até o dia seguinte, disse que ele precisava confiar em mim e resolver uma louca em minha sala. Conrado encontrou nosso irmão recebendo um bolagato da mulher por quem ainda está apaixonado, abriu um sorriso e o zíper.
Parte um resolvida. Parte dois, Israel. Mandei todo mundo sair do quarto, fui obedecido imediatamente, como não seria, entrei sem dar um boa tarde, um oi, um por favor. Ele notou que eu queria quebrar um pescoço, perguntou se eu iria ouvir a versão dele, “Aquela que começa com você vindo me dizer o que aconteceu antes de qualquer outra pessoa? Não, eu prefiro aquela onde eu descubro que você é responsável por Alex e Pepeu, ou aquela outra onde você vai fazer um percurso como o deles, ou outra história, onde a gente entra em um acordo e eu nunca mais vou saber de você, talvez você queira conhecer a Europa, ser o zelador de algum imóvel de meu marido, um que ele deteste e nunca queira ir lá. Vou falar a todos do hospital o que você fez a Camila, espero que se eles souberem onde a história começa, não fiquem tendenciados a acreditar que a vítima é você, que ela deverá pensar na melhor maneira de se defender de um agressor. Temos um acordo?”
Contei a Noah e ele disse que ia conseguir despachar o patife para Noruega, lá também não gostam de violência contra a mulher, num país com esses índices de fem1nicídi0 ninguém tem o direito de ficar isento, quem não é ativamente contra, é a favor.
Naquele fim de expediente Ricardo me ligou, disse que não podia continuar a trabalhar para mim, ia voltar ao restaurante, estava tudo uma bagunça e Camila foi muito gentil, mas estava esgotada e pediu uns dias. Eu falei que em uma realidade paralela outra versão de mim era muito louco por ele, como nessa, mas eu era solteiro e podia começar uma história saudável para nós dois. Ele disse que o irmão pediu para ficar conosco, o trabalho é mais leve, somos boas pessoas e pagamos bem. Claro. Houve uma pausa grande sem palavras e depois eu desliguei. Fiquei mal pra caramba, Gaspar entrou em minha sala, eu precisava desabafar, e ele é um ouvinte atento e não me interrompeu, apenas pontuava com um “entendo”, depois que desabafei ele me abraçou. Eu o beijei e ele correspondeu, Uchôa nos levou de volta, contei o acontecido, Gaspar pergunta se eu escolhi a forma como eu iria contar isso a Danilo, Camila iria dizer a Felipe, ia ser um choque, dizer para Danilo e depois a Túlio... Eu não sabia como dizer, foi Gaspar quem disse, eu estava lá, ele suavizou muito sem mentir, disse que eu propus a Israel começar vida nova em outro lugar, talvez algum lugar mais formal como ele, Europa... Ele passa a dizer que ele está a bem, duas queimaduras no braço, duas tolices (verdade, até porque, ele fugiu da reação, bater em mulher indefesa é uma coisa, numa que revide é outra).
Elas chegaram gargalhando já quase nove da noite, um dos quartos esperando por elas, jantaram, foram tomar banho e dormir; Israel acabou indo para outra capital, gostava de ser advogado, tinha casos para concluir, sabia que eu não estava brincando, não o queria ver por perto, ele não procurou Felipe ou Danilo, até porque Uchôa e Daniel os cercaram de uma vigilância e cuidado enormes.
As meninas moram conosco, trepam conosco, estão em um quarto só delas, livres. Somos nove, enquanto tomavam banho naquela noite de segunda eu deixei bem claro entre nós, contei e disse, somos nove, Felipe, repetiu e depois Daniel e todos repetiram, Conrado foi o último, respirou fundo e comunicou pesaroso e resignado, “Somos nove”.
Na terce tatuagem, elas passaram o dia em casa, saíram depois do almoço e foram buscar suas coisas, Daniel e Danilo as acompanharam, Cássia esvaziou a casinha dela das coisas que ela ainda estimava, ia alugar. Voltamos a ter uma cozinheira.
Cássia estava feliz, chegou quando eu estava me despedindo do artista, combinamos terminar no sábado, faltava pouco, quinta livre. Cássia perguntou se podia tomar banho comigo, no começo não disse nada mas depois abriu o verbo, falou sobre sua vida depois de nossa separação, disse que não se arrepende, eu nunca tatuaria a cara dela em mim, mas isso não era um problema, sempre me amou, foi melhor assim e ela se achava com razão, mais velhos e maduros estamos novamente juntos, mas numa distância segura para ela não acreditar em fadas como Camila fez. Contou sobre sua vida com Xica e como ela é louca por Camila, “Você acha que isso vai funcionar, Binho?”, fazia muitos anos que ninguém me chamava assim, Aluízio e ela, mas ela nunca soube, “Funciona muito bem pra mim, obrigado, por que não pra você?”
Noite de pizza no sábado em que eu terminei a tatuagem, Danilo e Lipe são mestres. Foi muito bom, a gente se divertiu, Noah e Otto e poucas dezenas de fotos ao lado de minhas costas, “No dia em que tirei mais fotos, minha cara não aparece, é foda.”, amigos de longa data de Otto vieram, casais com filhos adolescentes, ele parecia uma criança, depois havia um senhor idoso, tio... Eu não tenho tantos amigos, talvez uns quatro, mas ele é campeão nisso, “Você é o primeiro ou segundo namorado de Otto?”, “Ele é meu marido, ele é meu e eu sou dele, claro, somos como não sei, não sei dizer como nosso equilíbrio se compara, Noah e ele são parte de mim”, isso foi repetido até cansar, Noah disse que era o amante principal e as pessoas nem se importavam, fiquei puto era uma mentira, ele disse que eles não podem entender, tudo tem de ter um chefe, uma hierarquia, ele deu o que eles queriam, porra, Noah, porra.
Otto me deitou depois do banho, era mais de duas da madrugada, eu estava esgotado, ele me e beijou e repetiu o quanto me amava, disse que o tatuador ia ganhar uma grana para por Noah e eu desenhados em suas costas, Noah estava chupando minha piroca ainda molenga, “eu não queria me tatuar, mas sei, lá, vocês dois ‘são parte de mim’”, Noah falava fazendo piada de minha voz, eu ri, ri demais, puto de raiva dele, grato por ele ser ele, Otto senta em meu pau, cavalga um pouco, chupo o pau de Noah, ele empurra até eu engasgar, “preciso de sua baba”, cuspo na mão dele, ele me beija rapidinho antes de forçar seu caralho junto ao meu no cu de Otto. Que delícia, Otto se controla para não soltar mais que suspiros trancados, a casa está quase silenciosa, eu sinto o pau de Noah escapar, Otto se inclina, me afundo no cheiro de sua barba, Noah mete rola outra vez, Otto se ergue um pouco, eu belisco forte seus mamilos, braço de meu francês ao redor do pescoço do aniversariante, “tu se amarra em ser putinha, né?”, cara linda, boa de dar tapa, seguro o pau de Otto e esfrego o polegar contra a boquinha da cabeça, ele geme, está cansado sei que vai gozar rápido, goza, depois Noah giza dentro dele, o cu de Otto convulsiona em nossas picas, Otto se liberta e despeja a porra de Noah sobre a dele, eu me masturbando com Otto chupando meus ovos e Noah limpando o cu arrombado dele, eu achei a cena tesuda demais, mais gala sobre aquelas gozadas em meu peito e barriga, Noah vem lamber e me beijar, sem desperdício, Otto sugava engolindo tudo o que podia, era seu aniversário, era seu direito. Desmaiei, acordei todo sujo, fui mijar, mas estava cansado demais para o banho, voltei para o meio dos dois, o sol levantava, mas eu levantei às nove, feliz, roupas de cama para lavar, ducha para despertar, abri persianas e cortinas e janelas e portas e o sorriso.
Passamos o dia e a noite no barco, passamos a noite desancorados, Conrado contratou um marujo, passamos a noite jogando jogos de tabuleiro, foi divertido, as meninas estavam felizes, nuas de brinco, estavam felizes, vestindo um casaco de neve quando a noite caiu, exibindo corpos que foram esculpidos, meu caralho entre os peitos de Cássia, ela se esforçando para prender minha rola entre as tetas e minha atenção nela, eu e um uísque e um charuto e Felipe e Gaspar chupando os mamilos de Camila, vinho descendo comediante na pele dela até eles pararem com a boca, Xica jogando canastra, olhava para mim satisfeitíssima. Sim, isso também ganhou uma fotografia em minha memória.
Segunda é dia de trabalho, embora tenhamos chegado tarde naquele domingo, levantamos cedo na segunda, milhões de coisas para fazer, Túlio liga pedindo o telefone de meu tatuador, hétero casado com filhos, ele acha melhor que eu passe o telefone de Sérgio e Otávio, horas depois diz que levou um toco, são monogâmicos, não tenho como não rir, ele fala que achava idiotice ter alguém, mas agora isso parece indispensável, tinha medo do envelhecer, falo de Ricardo, mas seria melhor ele saber que não temos mais contato, não achamos que é positivo para nenhuma parte. Ele fala em viajar, sempre se esquecia que era rico e trabalhava para evitar o ócio, mas uns meses fora poderia ser bom, falo que em um mês e meio os garotos vão conhecer a família de Bryce no Canadá, será fim de primavera e início de verão, ele diz que vai ligar para Bryce, ver um hotel simpático. Conversamos por mais de meia hora, ele agradece e desliga.
Otávio diz que não tenho mais agenda, pergunto se ele estava bem, (não falo o nome de Bruno mas essa era a pergunta), ele diz que sim, ganha bem, o trabalho é leve, é cansativo, mas era confortável demais, somos pessoas boas, mas somos ainda melhores como chefes, diz que sente falta de saber de Bruno e aí lembra que Bruno não está vivo, e tudo volta a doer, tem evitado falar disso com Sérgio, pediu muito a ele, ele se doou ainda mais, mas parece precoce estar bem, bem em um relacionamento quando tem um luto dentro de si. Otávio me diz que gostaria de estar só, mas precisa de Sérgio financeiramente, que se sente obrigado a não magoá-lo, a ser bonzinho e tentar, e é difícil. Outras vezes se acha um egoísta sortudo. Enfim pessoas sendo pessoas.
Minha promessa a Aluízio parece ter se cumprido, o ex dele saiu de nossa casa três vezes, chega. Ele entra na minha sala com o fantoche dele, estava feliz, estavam felizes, me vieram falar sobre a compra de uns equipamentos, peço uma série de documentos, coisa do departamento de finanças, eles ficam de providenciar, gastos, gastos...
Roger chega, estava esperando por mim por um bom tempo, queria me pedir uns trocados para a comissão de formatura, estava envergonhado, eu nego, peço que faça uma conta corrente e me passe o número para receber uma mesada, fazer por ele algo como o que acontece com Marcos e Murilo, ele se sente envergonhado, Conrado entra para me pegar, diz que fez o mesmo por mim, e nós éramos muito, muito, muito pobres, estava na hora de eu retribuir esse benefício a outra pessoa, talvez no futuro, Roger encontre algumas boas pessoas a quem possa ajudar, Conrado e eu somos irmãos e eu me sinto um padrasto, um segundo pai para Roger, pelo menos o sinto como um enteado, um filho bastardo que chega tarde em minha vida e se sente envergonhado de ocupar o seu lugar.
Nunca vou saber agradecer essas palavras de Conrado. Ele dá um dinheiro para Roger pegar um táxi e o manda fazer a droga da conta.
Vamos até o aeroporto, pegar Januzs, o garoto polonês, ele vinha com um “amigo” refugiado, Murilo estava zero a vontade de o receber em sua casa, mas era temporário, sério que era. Ele me pergunta porque essa caridade não é feita por mim, “porque em algum momento é hora de Túlio precisar de uma casa, e sair e voltar, e tornar a se sentir independente e voltar, por isso...”
Aconteceu que Pavlo é um soldado ucraniano desertor e tinha um pé inutilizado, e era quase tão bonito quanto Januzs, o primeiro estava debilitado, mas era grandão como Bryce e o segundo era um magricelo mas não um twink, Januzs explicava em um inglês sofrível que seu amigo chegou à Polônia a pé e acabou arrumando uns trocados para pegar um trem até onde pudesse ir e acabou em Amsterdam, ficou uns dias na escada do prédio com o pé piorando, sem banho, comida ou teto; sabia que não estava na posição de oferecer ajuda, mas... Pavlo era melhor em falar inglês, perguntou como podia trabalhar para pagar por essas despesas, as suas e a de seu amigo, “for you and your boyfriend...”, ambos olharam envergonhados para o chão, estávamos a caminho do carro, Bryce coçou o saco, disse que era um aniversário feliz o que teria em vinte dias. Sorri para o safado. Deixei ambos na casa de Bryce, mas contei umas coisas a ele.
Felipe e eu fizemos uma promessa a Noah, salvaríamos o hospital, mas a gente ia se comprometer a tirar um ano ou dois para não trabalhar, passar pelo menos seis meses sem pisar no hospital, sem resolver nada dele, e ele estava nos cobrando, expandir para cirurgia oftalmológica foi o que o fez nos dar um prazo, dois meses e estamos na quinta semana. Decidimos que vamos viajar, pegar o iate e ir, subindo o litoral até o Caribe, México, Europa, ficar um tempo na França que ele finge não sentir falta.
Para isso, Xica ia ficar no meu lugar e ele, Bryce, no de Felipe, em algum tempo isso pode mesmo vir a ser definitivo, ele podia contar com Camila, ela é ótima com burocracia e números, Bryce sentado no nosso escritório, estava lívido, ofereci água, pergunto se ele estava bem. “Eu não tenho experiência, eu não vou poder...”, “Você está namorando Murilo, e ele junto ao irmão vão abocanhar mais de trinta por cento cada um do hospital, provavelmente metade, nunca falamos sobre isso, mas Noah parece querer seguir Felipe e escolher vocês como herdeiros. Murilo te ama, muito inclusive, detesta medicina, faz para te impressionar. É claro que eu preferia deixar isso nas mãos de alguém mais competente, entretanto você é mais que capaz e mais que de confiança, você vai estar cuidando do seu patrimônio, só uma questão de tempo, e você pode pedir conselhos, a Mauro, Sérgio, a Noah... Menos para mim.”
Jantou conosco, o pai estava eufórico, estava querendo telefonar para a mãe do garoto, para seus irmãos e tios, “Diretor geral”, “Diretor interino” ele corrigia, Felipe corrige, “Diretor geral, e não corrija seu pai.”
As semanas seguintes foram corridas, fazer essa transição do comando do hospital, arrumar uma tripulação, deixar Cássia sob a governança de nossa casa, preparar o iate, arrumar o roteiro, provisões, acalmar, tentar ter calma.
No meio dessa bagunça fica bem nítido, Gaspar queria calma, queria ficar com o filho, essa era a intenção inicial e essa prevalecia, no meio dessa confusão Túlio embarca, Daniel e Otto fazem a maior festa, Noah e Uchôa o levam até a garagem, eles demoram um tempo por lá, mas é legal, Danilo avisa que vai descer e Daniel informa, “Ninguém desce, eles vão levar o tempo que for necessário. Ainda mais você, que está em estágio probatório para fazer parte desse clubinho de três, mas não desce nem na marra.” O clubinho éramos Conrado, Felipe, eu e agora, Danilo? Xica diz que não pode opinar mas sempre teve medo e tesão por essa firma obtusa de nós três nos comportarmos.
Uma discussão. Uma enorme discussão, Cássia dizendo que Aluízio e aquela que não mencionamos o nome sempre falavam sobre essa relação de Contado e eu, com inveja, com a sensação de haver uma certa exclusividade. Otto diz que não sente assim, mas como se houvesse dois clubinhos, e obviamente não adiantava se inscrever em um deles, Conrado só fazia gargalhar, Felipe a tentar desqualificar esses depoimentos, e eu estava perdido entre essas duas coisas. Uchôa sobe, diz que Túlio se comprometeu a fazer o mesmo que Danilo, “senhoras e senhores, eu serei em algumas horas um homem rico, porque é bom ele passar tudo, já que eu li o testamento. Assim, Túlio fica sem ter muito como fugir, não é?”, contrariado ele diz que sim, Felipe pergunta porque Uchôa fez a merda de aceitar um idiota desses em sua cama, “Porque a única pessoa idiota o suficiente além de mim para ser trouxa de querer dois bananas como vocês dois só Camila, mas ela vai achar melhor estar dentro da administração do hospital e fazer um nome profissional e não seguir dois coroas meio broxas, de mais a mais as duas periquitinhas da casa ao lado podem não durar, e nesse caso essas três putas vão pular em cima de jovens que duram metendo bem mais tempo que nós, ou elas não vão esperar essa sorte e fazer o jogo acontecer.” Fiquei bobo com essa análise e a certeza que se seguiu com a cara de paisagem das três vagabundas, sorte do caralho dessa gurizada, tomara que as meninas fiquem para ter aula de como ser puta.”
Dormi agitado aquela noite, faltavam cinco dias, choveu forte e eu desci para ver o pó que era meu irmão, encontrei Danilo na mesa com as quatro caixinhas, ele me perguntou se eles iriam conosco, não, porque a gente vai mas vai voltar. Eu nunca senti tanta falta deles, dos quatro, eu ia sentir falta de ver Uchôa deitar no chão para uma soneca depois do almoço, de nossa piscina e de cada cantinho de nossa casa, eu já fiz e refiz a mala umas seis ou sete vezes, mas o que eu queria levar é o box do meu banheiro coberto de boas memórias, eu estava com medo de ser enganado e de não voltar, por isso os quatro ficam, eu me abracei a Danilo e chorei, ele disse que entendia, mas eu não estava partindo só, porra, o que será que ele viveu sem ter vivido?
Quando amanheceu ele e eu estávamos abraçados no sofá, pegamos um dos vinhos chiques de Felipe mas ele não se importou, tomou o restante no gargalo; exceto por Noah, Danilo e Daniel, todos estávamos apreensivos com essa viagem, Gaspar nos chamava de provincianos, Fabrício pediu para ir conosco, nunca teria condições de sair do Brasil, talvez nem do estado, disse que era bom em executar ordens, e o que lhe faltava em experiência lhe sobrava em determinação e o que ele chamou de capricho (zelo pela qualidade do serviço que ele faz) e é verdade, Noah pergunta a Conrado se cabia mais um marujo, “com esse fecha”.
Fabrício, um outro rapaz de nome Zé que tinha experiência com mecânica e iria substituir a função de Bruno, e um capitão para dar suporte a Conrado que só fazia trajetos curtos e em boas condições durante o dia.
Por falar em Bruno, chamei Diogo e Otávio para conversar, também Túlio, Conrado, Daniel e Noah, perguntei o que faríamos, precisávamos sepultar nossos mortos, Otávio perguntou qual a chance de vendermos nossa casa, “chance zero”, por sugestão dele retiramos umas pedras pusemos os quatro ali, um pouco de água depois de ouvir o que cada um de nós tinha a falar, os garotos estavam ali, todos nós que moramos ou orbitamos aquela casa, depois as pedras no lugar, terminou o dia e eu sentia aqueles quatro no entorno da árvore que está no centro da casa, eu estava feliz.
Partimos com a certeza de que seria apenas um ano, fez um dia lindo, na verdade foi uma semana inteira de tempo firme, um vira-lata caramelo, só que preto surgiu para acompanhar brincando e pulando sobre nossa bagagem no dia de partir, Bryce brincou com ele, não sei de onde tirou umas coisas e deu para ele comer, Conrado perguntou se ele ia adotar, Murilo disse que obviamente não. Abraços e zarpamos, uma hora depois latidos, o infeliz do pulguento estava conosco, não sei onde se escondeu, falei que o cachorro não podia ficar, Otto me abraça e diz que “o pedreiro estava nervoso, pergunta o que eu pensava em fazer e olhou para o mar, foi ali que me arrependi por Alex, Pepeu e os outros, ele me abraçou forte. Soltaríamos o sarnento no próximo porto, não aconteceu assim.
Amon, nome de um personagem no livro que eu lia, Amon me adotou, a mim e a Conrado, por isso os caras o chamam de servente de pedreiro, Amon não desceu no primeiro porto, nem poderia, Fernando de Noronha, comeu restos de comida durante dias e um polvo que pescamos.
Ração e outras coisas para uma coisa que eu sempre quis ter quando menino e nunca pude, meu cachorro.
No dia seguinte de nossa saída do arquipélago Fabrício me pergunta se podia me fazer uma pergunta (já fez), dali pra frente era pura comédia, ele parecia que ia me confessar um crime: disse que traiu a confiança de todo mundo, principalmente a minha, eu o levei até o lado de fora, era início de noite, não estava tão frio, mas ventava, ele e eu precisávamos de privacidade.
Disse-me que foi ficar com o irmão por ordem do pai, ninguém gosta de Ricardo, o mais novo dos filhos biológicos (Fabrício tem uns vinte e poucos e é negro retinto como Túlio), que o pai queria confirmar que foi a casa de aberrações que pôs seu filho que já era torto a perder. “Tirando os beijos na boca que dr. Uchôa dá nos filhos biológicos, contei tudo o que via e ouvia. Meu pai pediu para lhe agradecer o que o senhor tentou fazer por meu irmão, e o que fez, por ter me dado um trabalho mais leve, eu fui pedreiro, olha minha mão...”, ele agradecia como um personagem de anime, bem caricato, se desculpou por ter obedecido o pai, mas ordem de pai era ordem de pai, o pai dele mandou ele ajoelhar e implorar para vir, mas ele achou melhor fazer de um jeito que ia dar resultado – sendo honesto, perguntou se eu o mandaria de volta, eu disse que iria deixar ele não no Caribe, mas no México que era mais longe, bati no ombro dele para mostrar que era brincadeira, mas ele ficou nervoso de verdade.
Ordens de pai, eu me prostituí mesmo quando não tinha idade nem de bater punheta sozinho, ordens de pai, sei como é. Ele me olhou calado e me deu um soquinho no ombro. Sorri pra ele.
Ele me diz que Zé perguntou a ele se ele era donzelo, não, frequentou as putas, depois teve uma vizinha assanhada e uma namorada, Zé propôs troca-troca. Ele suspira e me pergunta quando me tornei gay, sempre fui, só era difícil sair daquele universo de meu pai, onde eu era obrigado a fazer o que não queria e a... ele zombava que eu não era homem, éramos quatro, só pude me salvar e ao mais novo. Eu chorava é claro, mas estava em paz comigo e com o mundo. Ele me pergunta se era gay, porque estava sem sexo há mais de seis meses e a proposta de Zé era tentadora.
“Relaxa garoto, ele é um cara uns dez anos mais velho que você, não tem nada de errado, lembre a ele que você precisa que ele seja honesto, depois de duas ou três vezes vai rolar sentimento, o que não quer dizer amor, existem mil sentimentos entre duas pessoas que transam juntas. Use camisinha, seja discreto se não tiver a fim de ter de responder perguntas. Faça tudo o que você quiser e nada do que não quiser, respeite os limites dele e os seus. Se você está na seca e quer saber qual é... Assista um pornô com ele, você pegando na sua e ele na dele, se rolar você pega na dele e ele na sua, seja leve, engraçado, veja se é só curtição ou se rola uns carinhos, beijos, não faça se não for a hora. Lembre a ele que você vai viajar de trem, de carro, se hospedar em casas e hotéis e ele não vai muito longe do barco, vão se ver pouco quando chegarmos a nosso destino, é um ano e vocês vão passar semanas sem se verem. Pra ele não construir ilusões pra ele e principalmente pra você.”, fui até a cabine e dei a ele as quinze camisinhas que eu tinha, ele só havia usado uma vez, eu acho que Zé era mais experiente nisso, ia ajudar nisso.
Dois dias depois a mesma coisa, nós dois para conversarmos, “Contei a Noah, Otto e todos os outros sobre sua ‘traição’, eles mereciam e precisavam saber, mas não contei sobre sua vida íntima”, ele disse que imaginou Conrado, Danilo e Daniel começaram a chamá-lo de Iscariotes, eu ri, era obra de Conrado com toda certeza. Ele me agradeceu, disse que se deixou levar quando disse mais ou menos metade do meu discurso e Zé o beijou, disse que só uma puta tinha lhe feito boquete e Zé fez muito melhor, depois que ele gozou o cara engoliu e lhe deu um beijo no rosto, “eu pedi para fazer o mesmo, é grande, o meu é maior, mas na boca é um troço enorme, presta não, mas depois que a pessoa começa, quem consegue parar? Zé perguntou se podia ficar em minha cama até eu dormir, mas quem dormiu foi ele e quem mudou de cama fui eu, eu só vim lhe agradecer, ele ouviu todo o discurso hoje e disse que a gente ia se entendendo, quando chegasse na França a gente tocava a vida separado, e se a gente estivesse livre e perto voltava a se pegar”, “Então pega e não se apega”. Rimos, ele passou a ser uma companhia uma ou duas noites por semana.
Meu cachorro come ração, faz suas necessidades numa caixa de areia de gato, e mija na plataforma do jet-ski porque Conrado e eu urinamos no mar, e em três dias o bicho tava educado. Ninguém dá notícias sobre o funcionamento do hospital, no início eu queria voltar a nado pra casa, mas estamos bem.
O Caribe é maravilhoso, veterinário, mercado, terra firme, hotel, massagem. Depois vieram as coisas do Caribe, culinária, cultura, sua gente, souvenires; passamos quase três semanas, era para aproveitar, e eu esqueci do hospital.
Gaspar não veio porque teve uma piora generosa, ele estava com metástase e não sabíamos, nem desconfiamos, os filhos foram lá pra casa passar uns dias com ele, os últimos dias com o pai, ficamos de voar quando chegássemos no México, mas não deu tempo. Que coisa terrível, que pesadelo sem sentido é não estar presente num momento como esse, ele deixou uma carta, ele pedia para ficar na árvore, agradecia por ter tido os melhores meses de sua vida, só seria melhor se pudesse ter voltado a ser quem era não meses atrás, mas décadas antes, agradeceu por não estarmos presentes para tentar lutar até o fim, era o fim, ele queria mais, mas teve o bastante e um pluszinho extra, não podia reclamar.
No México Amon foi adotado novamente, um senhor se afeiçoou a ele em um parque, nós o vimos mais duas vezes antes de ir embora, o idoso morava só e tinha netinhos que o visitavam com alguma frequência. Talvez os próximos hotéis não o aceitassem, mas gostei de ter cachorro, já estou pensando noutro. Vejo Uchôa deitar depois do almoço no chão ao lado do sofá, como era lá no começo, Túlio se deita ao lado dele e dormindo se agarram e trocam beijos, eu acho lindo, essa é a liberdade que tomamos na frente do capitão que nos acompanha, ele elogiou a condução de Conrado durante a travessia de uma tempestade no dia seguinte à nossa saída do México, ele também estava navegado à noite, estava ensinando a Danilo.
Recebemos notícias do Brasil, Pavlo teve de amputar o pé, Bryce já tinha vivido essa experiência anteriormente, ia ficar tudo bem. Januzs não conseguiria visto, teria de voltar em alguns dias para tentar novamente. Pavlo fica como refugiado. As meninas de Marcos passaram por um susto, menstruação atrasa dez dias, mas no dia que fazem o teste ela desce, deu negativo, Marcos diz que é lamentável, quer ser pai, Roger não, Bryce pensa em ser tio, pai talvez não, Murilo diz que nós próximos dez anos definitivamente não, mas talvez depois. Parece que Marcos estava redesenhando a casa, vértice de um triângulo com duas mulheres. Xica e as outras estão focadas em trabalhar e estudar, possivelmente temerosas com a violência de Israel, se ele bobinho pode, imaginem os ousados. Finalmente notícias do hospital, faturamento igual, mas uma pequena guerra de egos com alguém tão jovem mandando em todo mundo, mas resolveu, sozinho, e as coisas estão como antes, agora estamos a um dia de atracar nos Estados Unidos, vamos comprar mantimentos, abastecer, trocar a água e seguir, quase sem parada.
Assim, preciso aproveitar mais, acabei de gozar dentro da bundinha de Otto, agora ele dorme, poxa, que felicidade, nós nos amamos, todos nós, a viagem vai seguir, acho que por hora: isso é tudo‐É isso por enquanto.
Talvez, tenha continuidade, talvez não.
Deixem sua opinião se é conveniente rever Conrado, Jarbas, Felipe e a machosfera gay deles.
Comentem.