O sol ainda nem tinha esquentado direito quando eu e Bernardo chegamos em frente ao mercadinho do seu João. Estávamos ali pra fazer o teste de trabalho. Já tínhamos vindo no dia anterior conversar com ele, depois que vimos a plaquinha de “Precisa-se de funcionários” na vitrine. Agora, era hora de mostrar serviço.
A gente estava hospedado num apartamento alugado por Pedro. Um lugar espaçoso, bem localizado, com móveis novos e uma vista decente da cidade. Nada de luxo extremo, mas longe de qualquer ideia de simplicidade. Pedro não era nosso amigo. Ele nos contratou como capangas e deixou claro que esperava resultados no tempo dele. Nos deu o básico pra viver com conforto e disse pra nos virarmos. Sem papo, sem laços.
— Vamos fazer isso direito, Pietro — disse Bernardo, ajustando a camiseta no ombro largo. — A gente precisa manter a fachada limpa.
— Eu sei. Se a gente chamar atenção negativa agora, já era.
O mercadinho já estava com as portas abertas, e seu João nos esperava encostado no balcão, com um maço de cigarros no bolso da camisa e uma expressão séria no rosto.
— Pontuais. Gosto disso — disse, com um aceno seco. — Cada um pro seu canto. Pietro, balcão. Bernardo, depósito com Elias.
Bernardo sumiu pelos fundos sem dizer muito. Eu fui direto pro balcão, já posicionado ao lado do caixa. Seu João me passou as instruções básicas de novo: o caderno do fiado, a máquina de cartão velha que fazia barulho demais, e as manias dos fregueses mais antigos.
Comecei atendendo uma senhora que queria margarina e cigarro. Fui rápido, educado. Depois veio um homem pedindo ração pra cachorro. Um moleque comprando doce. O tempo passou voando. Eu respondia com tranquilidade, mantinha o olhar firme, fazia as contas duas vezes. Nada de erro.
Na metade da manhã, Bernardo reapareceu com uma caixa de leite nos braços.
— Esses depósitos são mais quentes que o inferno — murmurou, deixando a caixa sobre o balcão. — Mas tá indo. Elias é gente boa. Mostrou o jeito certo de organizar tudo.
— Que bom. Aqui tá tranquilo. Só tem que ficar ligado nos trocos.
— E nas véia que flertam contigo — ele completou, rindo baixo.
Na hora do almoço, seu João nos chamou num canto.
— Foram bem. Gosto de funcionário que não fica perguntando o óbvio. Continuem assim e amanhã assino carteira de vocês. Trabalho fixo, salário na conta, sem enrolação.
— Pode deixar — falei, firme. — A gente vai manter o ritmo.
— Eu também agradeço, seu João — disse Bernardo, suado, mas satisfeito.
Mas é claro que nem tudo podia correr perfeitamente.
No segundo dia, apareceu um tipo diferente no mercadinho. Alto, magro, camisa arrumada demais pro ambiente. Olhos de quem vive julgando tudo em silêncio.
— Ricardo. Filho do seu João — disse, se apresentando. — Vim supervisionar.
Só de olhar pra ele, dava pra sentir que não ia com a minha cara.
— Tudo certo, Ricardo. Pietro — respondi, direto.
— Eu sei quem você é. Só fica atento com o troco, a anotação do fiado, o jeito de falar. Aqui é comércio, não conversa de barbearia.
Mal disfarcei o olhar torto. Ele se encostou do lado do caixa e ficou ali, feito uma sombra, observando tudo. Cada ficha que eu preenchia no caderno, cada moedinha que eu entregava. Tudo parecia motivo pra anotação no celular dele.
Na hora do intervalo, Bernardo surgiu por trás com uma expressão carregada.
— O tal do Ricardo passou no depósito. Mandou reorganizar as caixas que o Elias já tinha ajeitado. Disse que “precisa mostrar profissionalismo”.
— Parece que o cara tá se esforçando pra mostrar que manda aqui.
— Ou pra mostrar que não gostou da nossa cara.
Continuei o turno focado. Atendi uma fila de cinco fregueses seguidos sem errar um centavo. Falei pouco. Fui direto. Ricardo continuava me observando como se estivesse esperando um tropeço.
No final do expediente, seu João chamou a gente de novo.
— Gostei. Continuaram firmes. Clientes elogiaram o atendimento. Elias falou bem do trabalho no depósito.
— Que bom, seu João. A gente vai continuar dando conta — disse Bernardo, com um aceno discreto.
Ricardo aproveitou o momento pra se intrometer.
— Só fica esperto, Pietro. Teve um cliente que saiu reclamando do troco. Disse que achou estranho.
Seu João virou pra mim com a sobrancelha erguida.
— Isso aconteceu?
— Não que eu tenha notado. Mas posso revisar tudo que anotei. Se tiver erro, assumo.
Seu João apenas assentiu. Não falou mais nada. Mas o sorriso que ensaiava desapareceu.
Saímos do mercadinho em silêncio. O céu já começava a se avermelhar com o pôr do sol.
— Ele tá cavando, Pietro — disse Bernardo. — Vai tentar te derrubar.
— Não vai conseguir — respondi, seco. — Ele pode ser o filho do dono, mas eu vim pra ficar. E ninguém vai me tirar daqui com teatrinho.
Bernardo me olhou de lado.
— Eu fico de olho nele. Qualquer coisa estranha, me avisa.
— Pode deixar. Isso aqui é mais que emprego. É proteção. E eu não vou abrir mão disso por causa de um playboy frustrado.
A gente voltou pro apartamento sem trocar muitas palavras, mas com a certeza de que estávamos jogando um jogo maior. E se Ricardo quisesse guerra, era exatamente isso que ele ia terNaquela noite, o celular vibrou enquanto eu me deitava no sofá para assistir qualquer coisa sem prestar atenção. A mensagem de Pedro apareceu com frieza cirúrgica:
“Amanhã cedo passo no apê de vocês. Preciso conversar pessoalmente e explicar o que quero que façam. Vai ser simples. Rápido. Sem rastros”
Não era um convite. Era uma ordem. E nós dois sabíamos disso. Desde o começo, ficou claro que fomos contratados como capangas. Nada mais.
Estávamos sentados no sofá depois do jantar, com a luz baixa da sala deixando tudo num tom mais calmo. Bernardo mexia no controle da TV, procurando algum filme pra gente assistir, quando eu quebrei o silêncio.
— Pedro mandou mensagem hoje… disse que passa aqui amanhã cedo pra explicar o que vai querer que a gente faça.
Bernardo assentiu devagar, sem tirar os olhos da tela.
— Já imaginava que ele não ia demorar. Tá com pressa de botar o plano em prática.
— É. E parece que agora vai começar pra valer.
Ele largou o controle na mesinha de centro e se virou um pouco pra mim.
— A gente só precisa manter a cabeça no lugar, fazer isso direito… — Ele deu um meio sorriso. — E logo, logo, vamos estar livres dessa história toda. Sem Pedro no nosso pé, sem esses favores pesados que a gente tem que engolir.
— Tomara — respondi, me encostando nele. — Tô começando a ficar cansado disso tudo.
Bernardo passou o braço por cima do meu ombro e me puxou mais pra perto. A TV começou a rodar o começo de um filme qualquer, mas nem prestamos atenção direito. A presença dele do meu lado já bastava pra me distrair.
— Engraçado, né? — ele disse, com a voz baixa, quase num sussurro. — As coisas estão acontecendo tão rápido… esse apartamento, esse plano, esse clima de guerra. Mas ao mesmo tempo, eu olho pra gente aqui, agora, e sinto que, no meio disso tudo, a gente tem algo sólido.
Sorri de lado, encostando minha cabeça no ombro dele.
— Se a gente passar por isso junto, a gente passa por qualquer coisa.
Ele apertou meu braço, como quem concordava sem palavras. E por alguns minutos, deixamos o mundo lá fora pra depois. Só o som baixo do filme preenchia o silêncio!
(...)
Acordei com o som da campainha bem antes do sol dar sinal de vida. Esfreguei os olhos, ainda meio grogue, e fui abrir a porta usando só uma calça de moletom. Quase não acreditei que ele tinha chegado tão cedo, mas mantive o tom profissional.
— Pedro? Chegou cedo mesmo, né?
Ele não sorriu. Nem respondeu com piada. Só disse:
— A gente precisa conversar. Agora. Bernardo tá aí?
Assenti e abri espaço pra ele entrar. O apartamento estava silencioso, iluminado só pelas luzes mornas da cozinha, onde Bernardo já tomava seu café, como se soubesse que algo grande vinha pela frente.
— Pedro — disse Bernardo, direto, mas receptivo —, senta aí.
Pedro se acomodou na poltrona da sala, os cotovelos apoiados nos joelhos, a expressão carregada. Algo queimava por trás daqueles olhos. Eu já tinha visto esse tipo de raiva antes. Só que, dessa vez, vinha de alguém que sabia como transformá-la em ação.
— Eu tô pronto pra dar o próximo passo. E vou precisar de vocês.
Me sentei no braço do sofá, alerta. Bernardo cruzou os braços, prestando atenção.
— Que tipo de passo, Pedro?
— Eu quero acabar com o Mateus — ele disse, direto. — Destruir ele. Publicamente. Já mandei a foto dele pra vocês no WhatsApp.
O silêncio que caiu depois foi denso. Dava pra ouvir os carros distantes na rua lá embaixo. Pedro não esperou nossa reação pra continuar.
— Quero que ele seja preso, humilhado. Vamos plantar drogas e outras coisas na casa dele. Depois, alguém denuncia como se fosse um vizinho preocupado. Mas não é só isso…
Eu o encarei, tentando entender onde ele queria chegar. Bernardo, ao meu lado, também.
— Quero que ele seja pego em flagrante. Numa situação íntima. Comprometedora. Uma que destrua a reputação dele.
— Você quer… que ele esteja transando com alguém na hora da batida? — Bernardo perguntou, sem esconder o incômodo.
Pedro assentiu, frio.
— Exatamente. E pensei que poderia ser você, Pietro. Você é bonito, sabe se insinuar. Mateus parece ser do tipo que cai fácil. Você entra, ganha a confiança dele, grava tudo escondido. No dia marcado, a polícia aparece. E a imprensa também. Quero aquilo transmitido, estampado em todo canto. Quero ele acabado.
Engoli em seco. Não era o tipo de trabalho que me dava orgulho. Mas a gente foi contratado, e esse tipo de cliente não aceita “não” como resposta. Me levantei e fui até a janela, dando as costas por alguns segundos. Respirei. Me lembrei do dinheiro, da proteção que Pedro tinha prometido, e das razões pelas quais aceitei esse acordo.
Me virei e encostei na parede, falando com firmeza.
— Eu topo. Se é isso que você precisa, vou fazer. A gente cuida da plantação das drogas, arma a cena, chama a polícia. E eu dou um jeito no resto.
Bernardo suspirou, se levantando.
— Vai ser arriscado. Mas dá pra fazer. Só temos que cuidar bem do tempo entre a denúncia e a chegada da imprensa. E a pessoa que vai plantar as coisas tem que ser de confiança.
Pedro confirmou com a cabeça.
— Isso deixem comigo. Só preciso que façam a parte de vocês. E, Pietro… grava tudo. Quero ver o olhar de desespero dele quando perceber que perdeu.
Assenti, já me preparando mentalmente para o que viria.
— Vai ser um espetáculo, Pedro. Vai ser o fim dele.
Pedro se levantou, satisfeito. Parecia mais leve. Como se finalmente tivesse colocado a primeira peça do jogo no tabuleiro.
— Obrigado, de verdade. Eu vou fazer com que ele pague por tudo. Pela dor, pelas cicatrizes, pelo silêncio que me obrigaram a manter — ele respirou fundo —. Depois disso, vocês estão livres.
Apertei a mão dele sem emoção. Um acordo era um acordo. E no fim, liberdade era sempre a moeda mais valiosa.
Continua...