Eu nunca imaginei que em 2020, um ano que me parecia tão atarefado, no meio de uma semana qualquer, às oito da manhã, eu estaria debaixo do chuveiro fazendo amor com minha muié.
Era para ser só um banho rápido para iniciar o dia, mas, quando me dei conta, já estava devorando o pescoço de Júlia enquanto meus dedos saíam e entravam dentro dela. Foi bem rápido e, logo, já estávamos prontas para seguir com a nossa nova rotina.
Eu não tinha muito o que fazer naquele dia, somente uma reunião à noite com o Psiquilord e, após, eu iria passar a madrugada no hospital. Já Juh ia dar aula no lugar de uma professora que, infelizmente, havia sido contaminada.
— Grava as crianças quando eu apareceeeer? — Ela pediu, de forma meiga.
— Não contou pra eles? — Perguntei, rindo.
— Não. Tenho certeza que não esperam por isso — Juh disse.
— Gravo, sim — Falei, dando um selinho nela.
Geralmente, o trabalho da gatinha era mais interno. Ela supervisionava as diversas aulas que aconteciam, registrava e planejava com os professores semanalmente. Então, aquilo era algo novo e diferente.
Milena e Kaique estavam na sala, e eu me posicionei na escada, sem que eles me vissem. Não tinha como eu ouvir a aula, eles estavam de fone, mas foi bonitinho demais vê-los conversando sobre Among Us, um joguinho que eles estavam usando bastante para se distrair, e, do nada, olharam para a tela, provavelmente por reconhecerem a voz da mamãe.
Primeiro, eles se surpreenderam. Porém, logo esboçaram um sorrisinho e responderam à chamada, timidamente.
~ Sinceramente, nem pareciam meus filhos palhacinhos 🤣
Voltei para o quarto e deitei de maneira que não atrapalhasse a professora. Fiquei lendo alguns relatórios, me preparando para a noite. Porém, de vez em quando, me distraía observando minha esposa. Foi no mínimo curioso… Mesmo dentro de casa, no improviso do ensino remoto, com cada criança trancada num quadradinho da tela, com ruídos, Brad latindo lá embaixo, e os alunos inicialmente distraídas do outro lado da tela, ela conseguiu fazer a turma toda se entreter. Juh tem o dom de transformar um conteúdo frio em conversa viva. Nessa aula, usou exemplos que faziam sentido, conectava o assunto com a realidade deles, puxava o nome de um aluno, perguntava sobre algo que havia acabado de dizer, relembrava um desenho, uma música, um meme. Ela fazia com que cada um se sentisse parte daquilo.
— Você é apaixonante — Falei baixinho, encantada.
Ela apenas sorriu.
No momento em que ela começou a contar o conteúdo como se fosse uma historinha, eu comecei a gravar. Queria postar no story como minha gatinha é fantástica em tudo que se propõe.
Júlia estava explicando como o Brasil deixou de ser uma monarquia e virou uma república, e usou o meme "Já acabou, Jéssica", com uma montagem na tela com Deodoro da Fonseca utilizando um óculos escuro naquela pose icônica.
Soltei um riso e tentei voltar aos meus papéis. Porém, quando a turma inteira começou a rir, eu retornei a minha atenção. Ela conseguia se divertir com os alunos, mas também sabia exatamente a hora de guiar de volta, de aprofundar, de ensinar pra valer. E tudo isso com a interação deles.
~ Minha muiezinha é foda 👌🏽
Quando aquela aula terminou, Juh virou para mim com um olhar de quem queria saber o que eu tinha achado.
— E aí??? Fui bem??? — Ela perguntou, animadinha.
— Amor, eu tinha que ler tudo isso aqui — Falei, mostrando os documentos. — Mas sua aula foi tão espetacular, que não consegui me concentrar neles — Nisso, levantei-me para dar um beijinho nela.
— Agora tenho que fazer isso mais duas vezes — Ela disse, me dando mais um beijo.
— A mesma mulher que me faz gozar às oito da manhã, ensina História com meme de forma maestral às nove... — Falei e recebi um tapinha, enquanto cheirava seu pescoço.
Ouvimos passos rápidos na escada e olhamos para a porta do quarto. Logo, dois rostinhos sorridentes apareceram.
— Mamãe, a senhora nem contou pra gente — Mih disse, se jogando no meio das pernas de Juh.
— Queria fazer surpresa. Gostaram? — Ela perguntou, abraçando os dois.
— Simmmm! — Responderam.
— A senhora podia dar aula sempre — Kaká falou.
— Você em ação não tem pra ninguém — Disse-lhe, com um sorrisinho.
— Acho que será somente hoje mesmo — Júlia nos respondeu.
— Mas me tirem uma dúvida — Falei, pensativa. — Vocês são sempre quietinhos assim ou foi porque a aula foi da mamãe? — Perguntei, rindo.
— Kaká não é quieto — Mih disse, rindo e apontando para o irmão.
— Eu fiquei tão surpreendido com a mamãe na tela que nem consegui brincar — Meu filho se explicou.
— Huuuuuuuuuuuuuum — Mih e eu dissemos, como se estivéssemos suspeitando dele, que riu.
— Agora vão fazer a atividade que tenho mais aulas — A gatinha se despediu.
Porém, eles acabaram ficando por ali mesmo. Eu, dessa vez, me concentrei mais nos relatórios e também passava o olho para ver se eles realmente estavam fazendo e enviando as atividades.
Antes de Juh terminar, Milena foi até a cozinha, encheu uma garrafinha de água pra ela e depois se aninhou no colo da mamãe, com a cabeça encostada na perna, onde sabia que a câmera não pegava. Vi Júlia passar a mão de leve nos fios do cabelo dela, enquanto continuava falando com a turma.
— A mamãe e Mih são iguais — Observou Kaique, fazendo com que agora eu olhasse para ele.
— São... — Respondi, entendendo perfeitamente ao que ele se referia.
— Acho fofinho — Ele disse, com um sorriso.
— E eu acho nós dois parecidos — Falei, fazendo com que ele me fitasse.
— Acha? — Perguntou, sentando no meu colo e sem conseguir esconder o entusiasmo.
— Nós somos observadores, atentos e não perdemos uma oportunidade de fazer uma piadinha — Falei, apertando as bochechas dele, enquanto Kaká ria.
— Chega de papel e atividades, é hora de ficar dando carinho a seu filhinho — Ele disse, me agarrando e dando muitos beijos onde conseguia.
— E o que eu digo pro meu chefe se ele me questionar algo que está aqui e eu não souber responder? — Questionei, enquanto o amassava, enchendo de dengo.
— Que aconteceu uma emergência com seu bebê — Kaká sussurrou, convencido.
— Relaxado, agora você é o meu bebê, né? — Brinquei, me jogando por cima dele e dando inúmeros beijinhos.
O restante do dia correu de um jeito tranquilo, do nosso jeitinho. Almoçamos juntos, depois, fizemos um FaceTime com a família; ligamos para os avós, para os tios, para os priminhos que estavam todos entocados em suas respectivas casas.
Os gêmeos apareceram na tela, agora mais gordinhos, e era impossível não sorrir ao ver como estavam crescendo tão rápido. Mesmo que o contato fosse só por vídeo, Mih e Kaká ficavam radiantes só de vê-los. Eu também… mas, por dentro, doía. Não poder visitá-los, não poder pegar no colo, sentir o cheirinho... aquilo machucava. Mas a gente sabia que era o certo. Evitar o contato, se proteger, proteger os outros.
No fim da tarde, desci até a área de serviço para repor a ração de Brad. Foi quando senti dois bracinhos me abraçarem pela cintura com força. Tanta força que eu precisei parar o que estava fazendo.
— Mih? — Chamei, olhando pra baixo.
Ela não respondeu. Só chorava. Os olhos fechados, a cabeça enterrada em mim e as mãos segurando o cós do meu short como se eu pudesse desaparecer a qualquer segundo.
— Ei… ei, calma… o que foi, meu amor? — Perguntei, tentando me virar para olhá-la, mas ela só balançava a cabeça.
— Mãe… não vai trabalhar… por favor… não vai… — Milena repetia, entre os soluços.
Larguei tudo e a peguei pela mão com delicadeza, levando-a até o sofá. Ela se encolheu no meu colo, escondendo o rosto no meu ombro, enquanto eu passava a mão em suas costas, tentando entender a origem daquele medo todo.
— O que houve, minha filha? — Insisti, agora com mais calma, acariciando seus cabelos com carinho.
— Esse vírus… — Ela sussurrou, com dificuldade. — E se a senhora pegar? — Perguntou.
Aquela preocupação, aquele medo dela… não era algo que eu pudesse simplesmente jogar fora com um “não se preocupe”. A verdade é que eu não podia prometer que não aconteceria.
Respirei fundo, sentindo o peso daquela responsabilidade que eu já conhecia tão bem, mas que agora vinha com um par de olhos assustados me lembrando do que estava em jogo.
— Calma, filha… tá tudo bem comigo nesse momento, e isso que importa, certo? — Comecei, com a voz mansa, olhando nos olhos dela. — O trabalho da mamãe é muito importante. Você sabe como a saúde mental tem sido afetada, não sabe? Cada dia chegam mais pacientes no hospital e na clínica... e eu preciso estar lá. Preciso ajudar essas pessoas — Falei.
Ela apenas assentiu, bem trêmula.
— Mas eu juro que me cuido, tá? — Continuei, segurando seu rostinho entre as mãos. — Eu uso máscara, luva, álcool, tomo todos os cuidados. E, quando volto, faço tudo direitinho antes de ver vocês. É cansativo, mas vale a pena. Porque eu amo vocês demais. E vou fazer de tudo pra continuar bem aqui, do seu ladinho — Disse, fazendo carinho em seu cabelo.
Ela me olhou, ainda com os olhos vermelhinhos, mas agora mais calma. Se aninhou novamente no meu colo e me abraçou forte.
— Promete que vai continuar se cuidando? — Me perguntou, melancolicamente.
— Prometo. Por mim, por você, por todo mundo aqui e por todo mundo lá fora — Falei, com firmeza.
Ali ficamos por alguns minutos, só nós duas, até Brad se enfiar por entre nossos pés.
— Brad tá dizendo: “ei, ainda quero minha ração” — Brinquei, e ela sorriu.
— Vamos colocar — Mih propôs, e nós fomos.
Não tinha resposta fácil para o que Milena sentia, era a realidade... Depois ela me contou que foi uma notícia contabilizando as mortes que a impactou, nós duas ficamos conversando um pouquinho, onde reforcei os cuidados que devem ser tomados, e ela ia repetindo, como se quisesse garantir que eu também seguisse.
À noite, fiz a reunião com o Psiquilord. Pensei que fosse uma daquelas conversas técnicas, ele sempre gostava de estar por dentro das coisas. Mas logo percebi que não era isso.
— E aí, como anda a família? — ele perguntou, com um sorriso leve no canto da boca. — Achei engraçado outro dia seu filho apareceu querendo aprender a fazer um barquinho.
Soltei uma risada curta, meio surpresa pela lembrança.
— Ah, Kaique estava na aula de artes naquele dia. Digamos que ainda estamos nos adaptando a essa nova realidade — disse, rindo.
Falamos sobre como era viver o cotidiano com a família mesmo em meio ao trabalho, e logo estávamos rindo das situações que aconteciam durante as reuniões online.
Como se estivesse seguindo um roteiro, meu filho entrou naquele instante, enrolado até a cintura em uma toalha, com espuma por todo o cabelo.
— Mãe, o chuveiro parou do nada! Posso usar o do quarto? — perguntou, com seu jeitinho expressivo de sempre.
— Vai lá, Kaká — respondi, tentando não rir.
O Psiquilord gargalhou. Era mais um daqueles momentos do home office a que nos referíamos.
Eu me empolguei, como sempre acontece quando falo deles. Falei da aula de Júlia, da preocupação de Mih, das conversas e do bom caos que é ter uma casa com dois filhos.
Foi aí que eu retribuí a pergunta: — E por aí? Como tá a sua família?
Eu sabia que ele era casado, só nunca havia ouvido falar sobre filhos. Imaginei que, se tivessem, eram bem reservados.
— Minha esposa está bem. A gente não tem filhos... Adiei tanto por causa do trabalho e, quando percebi... o tempo passou... — o Psiquilord falou, em um tom triste, nada habitual para ele.
— Às vezes a gente se entrega tanto nas demandas... — falei, e ele assentiu.
— Mas posso conhecer o resto da sua tropa? — perguntou, mudando totalmente o clima.
— Claro! — respondi, sorrindo.
Quando fui levantar, lembrei que eu estava apresentável apenas da cintura para cima.
— Outra cena que apenas esse tempo atípico poderia proporcionar — falei, ficando de pé e deixando que ele visse.
— Não acredito, doutora! — ele exclamou, mostrando que estava de camisa social e short, e nós dois rimos.
Chamei Mih e Juh e, de cara, ele me zoou.
— Sabia que, mesmo sem te conhecer, todos aqui no Rio que Lore já tenha trocado uma palavra sequer também te conhecem? — ele falou para Júlia, que riu.
— Ela fala MUITO do senhor também — Juh enfatizou.
— Podem ir parando por aí — falei, rindo.
Kaká apareceu também, agora seco e vestido, e se juntou a nós. O Psiquilord tinha muito jeito com crianças, completamente espontâneo e natural. Realmente uma pena não ter conseguido se tornar pai.
Quando desligamos, permanecemos um pouco no quarto.
— Mãe, eu quase pedi para ele deixar a senhora trabalhando em casa... Porque ele pareceu tão legal, mas sei lá, vai que ele te demite — falou Milena.
— Fica tranquila, amor. Vamos viver um dia de cada vez — disse-lhe.
Ela explicou o porquê pra Júlia e Kaique enquanto eu me arrumava para ir ao hospital. Já estava dando o meu horário, eu queria passar na clínica antes.
Me despedi com mil e uma recomendações dos meus três amores e fui trabalhar.
No máximo uma semana depois, testei positivo.