A segunda amanheceu com céu cinza, como se o luto tivesse contaminado até o tempo. Rancho da Serra despertava devagar, em respeito à partida de uma de suas filhas mais antigas — e mais queridas.
Na casa de janelas verdes, o cheiro de café coado se misturava ao das flores frescas empilhadas sobre a mesa da sala. As vizinhas sussurravam orações entre uma xícara e outra, enquanto Gael mantinha o semblante duro, os olhos secos por fora, mas desfeitos por dentro.
Mateus estava sentado num canto da sala, com o braço engessado apoiado em uma almofada, apertando uma foto antiga da avó com ele no colo. A pequena moldura de madeira tinha marcas de dedo, suor e saudade.
Stefani coordenava tudo com firmeza: falava baixo com os funcionários da funerária, cumprimentava os vizinhos que chegavam, evitava os olhares invasivos.
Lá fora, Arkan observava tudo da calçada, com as mãos nos bolsos e a barba por fazer. Estava de preto, mas de maneira despretensiosa. Apenas seus olhos denunciavam o luto — e algo mais.
Flashback
Gael, com uns sete anos, febril e tremendo, era colocado nos braços de Cacilda, que preparava um pano molhado para baixar a temperatura.
— Vai passar, meu amor… Vai passar. — dizia ela, soprando levemente a testa do menino.
Ao fundo, o rádio da cozinha tocava baixinho “Mutante”, de Daniela Mercury. A canção preenchia o espaço entre a febre e o amor.
— Se eu morrer, mãe? — perguntou Gael, com a voz embargada.
— A gente só morre quando não é amado, e você... você nunca vai morrer, GaelHomenagem na Escola Professora Maria DulceNa quadra coberta da escola municipal Professora Maria Dulce, cadeiras brancas foram alinhadas com cuidado. Coroas de flores se acumulavam num canto, ao lado de um banner simples: “Obrigada, professora Cacilda. Por cada lição de afeto e firmeza.”
Ali, onde tantas vezes ela ensinara equações, chamou atenção, leu bilhetes de alunos e enfrentou o tempo, agora havia silêncio.
Mateus foi levado por Arkan, que o acompanhava com discrição. O garoto usava a mesma camisa xadrez do velório em casa, agora amassada e com cheiro de flor. O olhar perdido, tenso. Quando viu o retrato da avó no centro do salão, o quebrou num choro contido, mais de saudade que de dor.
Gael chegou alguns minutos depois. Vestia calça de linho bege e camisa azul clara, o rosto ainda sem lágrimas. Stefani o conduziu até o púlpito improvisado. Os professores estavam todos presentes. Alunos também. Alguns mais velhos, outros agora pais, vinham se despedir de sua eterna mestra de matemática.
Úrsula e Pedro chegaram por obrigação — e para manter as aparências. Mas ninguém os saudou com entusiasmo. Elisa, ao fundo, ficou ao lado de Mateus, segurando sua mão. As amigas não ousaram interromper.
Flashback
Cacilda chega em casa mais cedo. Entra e ouve passos apressados no quarto. Gael, então com 15, tenta fechar a porta, mas ela já a empurra, desconfiada.
Pedro estava ali. A camisa meio aberta. Gael, em choque. O silêncio do quarto se partiu com o coração da mãe.
— Você… você está com o filho do chefe do seu pai?
Gael não conseguia responder. Cacilda soltou a bolsa e, por um instante, desabou sentada na cama.
Mas não gritou. Não brigou. Apenas murmurou:
— Pedro, vá embora. Preciso conversar com meu filho.
— Sim, professora Cacilda.
— Gael, sente ao meu lado meu filho.
— Você ama esse rapaz ? - disse Cacilda.
— Sim mamãe. Eu amo tudo no Pedro. Ele me trata com tanto carinho, e temos tantos sonhos.
— Esse menino é rebelde demais. Tem certeza de que ele gosta de ti ? Só quero que ninguém te machuque, Gael… Só isso.
— Ele me ama !!! Tenho certeza disso, ele é mais do que demonstra ser mamãe.
— Só tenha cuidado, esse mundo é cruel, e fique em alerta com seu pai. Ele é um homem de costumes antigos, peço um tempo para prepará-lo melhor. E o mais importante só conte quando estiver pronto. Te amo meu filho.
De longe, a rádio tocava “Mutante” mais uma vez. Cacilda ficou ali, imóvel, entre a aceitação e o medo do que viriaGael subiu no púlpito. A voz saiu seca.
— Minha mãe era como essa escola: firme por fora, mas cheia de frestas por onde entrava o sol. Ela me ensinou a perdoar — mas não me ensinou a esquecer. E é por isso que hoje, além de agradecê-la… eu prometo continuar. A viver. A lutar. A amar, mesmo com raiva.
Uma pausa.
— Obrigado, mãe.
A plateia aplaudiu de pé.
Do fundo da quadra, Felipe observava Gael com uma expressão fria e estava acompanhado de Verônica e Pepe.
O vento traz cheiro de terra molhada. As nuvens carregadas cobrem o céu de Rancho da Serra. Gael caminha devagar até o banco de madeira sob a jabuticabeira, afastado do burburinho da quadra da escola. Senta-se, passa as mãos pelos joelhos, os olhos vidrados no chão de pedras irregulares.
Não chora. Ainda não.
Está cansado demais para isso.
Som ambiente: o miado de um gato distante, uma cigarra solitária. Ao fundo, na caixa de som discreta deixada por algum vizinho, "Mutante" toca baixo — quase imperceptível, como memória.
Ele fecha os olhos. E a lembrança o engole.
FLASHBACK
Gael, com 16, está sentado na maca. O olho roxo, o lábio rachado. Um corte pequeno na testa com pontos. A respiração curta de tanto segurar o choro.
Cacilda entra apressada, ainda com o uniforme de professora e os cabelos presos de qualquer jeito. Ao ver o filho, ela trava. O tempo congela.
— Mãe… — Gael começa, hesitante, a voz embargada. — Ele descobriu ! Não sei como...
Ela caminha até ele. A mão trêmula toca de leve o rosto inchado do filho.
— Foi o Felipe?
Gael assente com a cabeça. Um silêncio denso se instala.
Ela fecha os olhos por um instante. Inspira fundo. Abre os olhos, agora repletos de uma raiva silenciosa e uma decisão firme.
— Meu Filho me perdoa por não estar lá. Me perdoa por acreditar que aquele monstro iria mudar. Ele nunca mais vai encostar um dedo em você, Gael.
— Mãe, ele… ele vai te deixar sem nada se você ficar do meu lado.
Cacilda segura o queixo do filho com delicadeza, forçando-o a encará-la.
— Eu sou sua mãe. E se ele pensa que vou deixar o amor da minha vida sozinho nesse mundo… então ele não sabe com quem se casou.
Ela beija sua testa com cuidado.
— A partir de hoje, somos só nós dois. E isso é mais do que suficienteGael abre os olhos. As mãos estão cerradas. Seu peito arde. Mas o olhar, ainda que abatido, tem algo novo: firmeza.
Ele respira fundo. Pela primeira vez desde que a mãe partiu, ergue o rosto para o céu.
Um fiapo de sol rompe as nuvens. Quase simbólico.
Mas Gael não acredita mais em sinais.
Ele apenas se levanta e caminha lentamente até a quadra, saindo do jardim dos fundos. Os ombros ainda curvados pelo peso do luto, mas o olhar... já mais endurecido. Não vê Stefani de imediato, parada à sombra de um ipê, observando a entrada principal.
Ela está com o vestido preto simples, sandálias baixas e os olhos levemente borrados de rímel. Quando percebe Gael, endireita-se e cruza os braços.
— Você se escondeu, né? — diz com a voz baixa, mas familiar. — Sabia que ia te achar naquele banco da jabuticabeira.
Gael suspira, cansado.
— Precisei respirar. Nem pra isso tem espaço nesse velório.
Stefani o acompanha com o olhar enquanto ele se aproxima.
— Você viu quem chegou? — ela pergunta, com um sorriso cínico no canto da boca.
— Vi. De relance. Achei que fosse alucinação. — Gael responde, sem nem precisar dizer o nome.
Stefani cruza os braços com mais força.
— O Felipe teve a audácia de aparecer de terno, como se fosse o viúvo enlutado. Quase levou um copo d’água na cara de dona Neide. E Pedro... veio logo atrás, feito sombra. Só faltou trazer a Úrsula de véu preto.
Gael solta um riso seco, sem humor.
— Rancho da Serra é isso, né? Aqui todo mundo enterra com flores… e apunhala com as mesmas mãos.
— Ele chegou a falar com você? — Stefani pergunta, cuidadosa.
— Não. E se tentar... não sei do que sou capaz.
Eles ficam em silêncio por um momento. O burburinho do velório chega abafado pela lateral da capela. Um pássaro passa voando e pousa no telhado.
— Ela ia odiar tudo isso — diz Gael, olhando de volta para a capela. — A falsidade, os discursos. Ela odiava discurso. Preferia bolo de milho e prosa no quintal.
Stefani sorri, com olhos marejados.
— Você tá parecendo ela. Esse jeito de não deixar ninguém te dobrar.
Gael fecha os olhos por um instante.
— Ela me ensinou. Na dor. Na luta. No silêncio também.
— Você não tá sozinho, tá? — Stefani diz, mais firme. — E eu sei que você quer virar bicho agora, morder o mundo. Mas a gente vai estar aqui. Até o último suspiro da tua raiva.
Gael a encara, tocado.
— Obrigado, Stef. De verdade. Mas eu acho que chegou a hora de mostrar pra esse lugar quem eu sou. Não mais o filho da professora Cacilda. Mas o homem que ela criou.
Ela engole em seco e assente, respeitando o tom.
— Vai doer, viu?
— Eu conto com isso — responde ele, sombrio.
Flashback
Enquanto Gael e Stefani caminham lentamente em direção à quadra, a cena começa a desbotar, e os sons do presente se distanciam. A imagem se transforma: agora estamos em Santo André, alguns anos antes.
Gael, mais jovem, veste roupas simples, mochila nas costas, caminhando pelo campus da faculdade. O céu está claro, e o murmúrio dos estudantes conversa animadamente ao redor.
Ele para diante do prédio de artes visuais. Olha para o letreiro e suspira.
No banco próximo, uma mulher de expressão serena e cabelo preso em coque ajeita alguns livros – é Cacilda, mais jovem, segurando uma xícara de café.
Gael se aproxima e senta ao lado dela.
— Mamãe — ele começa, hesitante.
— Oi, meu filho. Chegou cedo hoje. — Ela sorri com aquele brilho doce que sempre o acalmava.
— Tô com medo. Tenho medo de não conseguir. A faculdade é difícil, e eu não quero te decepcionar.
Cacilda pega as mãos dele entre as suas.
— Gael, olha pra mim. Você não vai me decepcionar nunca. A faculdade não é um bicho de sete cabeças. É só o começo de uma estrada.
Ela aponta para o horizonte.
— Eu tô aqui pra você. Sempre estive. E você é mais forte do que imagina.
Gael sorri, mas o olhar ainda carrega insegurança.
— Obrigado, mãe. Eu vou fazer você orgulhosa.
Cacilda o abraça.
— Já sou, meu filho. Já sou.
A imagem vai se desfazendo, a música ambiente toma corpo — e logo voltamos a entrada da quadra onde Gael respira fundo, segurando firme a mão de Stefani.
A quadra da escola está silenciosa como jamais esteve. As cadeiras escolares foram alinhadas em fileiras, e uma lona branca cobre parcialmente o teto, filtrando a luz do fim de tarde. O som abafado de passos e murmúrios se espalha entre os rostos conhecidos. Vizinhos, professores, ex-alunos e antigos colegas de Cacilda estão ali — muitos de olhos baixos, outros com lágrimas discretas nos cantos dos olhos.
O corpo de Cacilda repousa em um caixão de madeira clara, adornado com flores simples do seu próprio quintal: margaridas, lavanda e ramos de manjericão. Uma coroa enviada pela diretoria da escola repousa ao lado, com um laço em lilás escrito "Com eterna gratidão".
Gael atravessa o corredor formado entre as cadeiras, cada passo mais pesado que o anterior. Chega até a frente do caixão, senta-se em uma das cadeiras de plástico ao lado e encara o rosto sereno da mãe.
Seu semblante está endurecido, mas os olhos… estão marejados, sem piscar. Por um instante, ele parece esperar que ela vá abrir os olhos e reclamar de alguma besteira — do sapato apertado, do som baixo, da flor que ela não gostava. Mas nada disso vem. Só o silêncio.
Flashback
Santo André, alguns anos atrás...
A luz do pôr do sol entrava suave pela janela da cozinha, espalhando reflexos dourados nos móveis antigos e nos pratos dispostos com esmero sobre a mesa. Gael ajeitava nervosamente os copos, alinhando-os uma última vez. O cheiro de frango assado com batata se misturava ao feijão fresquinho que borbulhava no fogão.
— Mãe, tenta ser gentil, tá? — disse Gael, meio sorrindo, meio suplicando.
— Eu sempre sou, ora essa. — respondeu Cacilda, surgindo com o avental florido e um pano de prato nas mãos. — Mas se esse namorado seu me tratar mal, eu viro bruxa de verdade.
Antes que Gael pudesse retrucar, a campainha tocou.
Ele foi até a porta com o coração acelerado. Respirou fundo e abriu.
Do outro lado, Caíque estava com um buquê simples de flores do campo e um sorriso contido. Ao seu lado, Mateus, um garotinho de três anos com olhos atentos e cabelo desgrenhado, se agarrava à perna dele, segurando um boneco de pano já surrado.
— Boa noite, dona Cacilda. — disse Caíque, estendendo as flores. — Eu sou o Caíque. E este aqui... é o Mateus, meu filho.
Cacilda ergueu as sobrancelhas, surpresa. Fitou os dois por um instante. Desviou o olhar para Gael, que deu um sorriso tímido, quase envergonhado.
Ela então se abaixou até ficar da altura de Mateus e disse, com doçura:
— E você é o príncipe da história, é isso?
Mateus assentiu com a cabeça, tímido.
— Esse é o Leãozinho. — murmurou, mostrando o boneco.
Cacilda pegou o brinquedo com delicadeza.
— Que sorte a minha ter dois leõezinhos entrando na minha casa hoje.
Ela se levantou, olhou para Caíque com olhos firmes:
— Você é pai… e está com o meu filho. Então, escuta: se fizer qualquer um dos dois sofrer… eu volto pro Butantã e puxo seu pé até o fim da vida.
Caíque engoliu seco. Sorriu.
— A senhora pode ficar tranquila. Eu vim pra somar.
— Então entra logo antes que o frango fique seco. — disse ela, já dando as costas e voltando pra cozinha.
Caíque e Mateus entraram. O menino correu pela casa como se conhecesse cada canto, e Gael, naquele instante, sentiu — talvez pela primeira vez em muito tempo — que o mundo podia, enfim, começar a se ajeitar.
Cemitério Municipal de Rancho da Serra – Final de tarde 2025.
A multidão silenciosa ocupava os caminhos estreitos entre os túmulos. Flores silvestres enfeitavam o caixão modesto, coberto com uma colcha de crochê branca que Cacilda mesma havia feito anos atrás. Os vizinhos, ex-alunos, professores da escola municipal e antigos colegas de profissão, todos vinham prestar o último respeito àquela mulher que atravessara a vida com dignidade, força e generosidade.
À frente, quatro homens seguravam com firmeza as alças do caixão:
Gael, com o semblante duro como pedra, sustentava o peso do mundo — e da morte da mãe.
Pedro, calado, ao lado oposto, carregava o luto com constrangimento e consciência do passado que os separava.
Arkan, solene, de expressão firme, andava ao lado de Gael, sem dizer uma palavra — mas presente como se fizesse parte daquela história há muito tempo.
Pepe, em silêncio, engolia a raiva e o ciúme, mas seu gesto era de respeito. Carregava o corpo de quem, mesmo em silêncio, havia lhe acolhido mais do que muitos vivos.
Antes de abaixarem o caixão Gael ouviu uma voz familiar interrompeu o murmúrio do vento entre os túmulos:
— Gael…
Ele virou e viu uma mulher mais velha, com cabelos tingidos de vermelho escuro, óculos de armação quadrada e um vestido preto simples. Era Ruth, irmã mais velha de Cacilda.
— Tia Ruth…
Ela o abraçou com força. Chorava sem pudor.
— Sua mãe era luz, menino. E você… é a faísca dela.
Ele assentiu, sem conseguir responder.
Flashback
Jardim Europa, São Paulo — 5 meses antes.
Gael estava ajoelhado no banheiro da antiga casa alugada, mãos tremendo, os olhos inchados de tanto chorar. A morte de Caíque o havia deixado sem rumo. Ele chorava com o corpo, com o estômago, com a alma. O Mateus dormia em um quarto ao lado, alheio ao abismo em que o pai havia mergulhado.
Cacilda entrou devagar, como sempre fazia quando percebia que o filho estava prestes a desabar por dentro. Sentou-se no chão frio, ao lado dele, e passou os dedos pelos cabelos de Gael, como fazia quando ele ainda era uma criança doente, com febre, pedindo para não ir à escola.
— Filho… você ainda está aqui. E o Mateus também. Ele precisa de você inteiro. — disse com a voz baixa, mas firme.
— Eu não consigo, mãe… — sussurrou Gael, trincando os dentes. — Era com ele que eu queria passar o resto da vida. Era ele quem fazia tudo ter sentido.
Cacilda segurou o rosto dele entre as mãos:
— Então encontre um novo sentido. Por você. Por mim. E pelo filho de vocês.
Naquela noite, Gael dormiu com a cabeça no colo dela. E por alguns dias, o luto parecia menos cortante.
Mas foi só uma trégua curta. Algumas semanas depois, Cacilda começou a sentir fortes dores nas costas e no abdômen. No início, culpou o estresse. Depois, a alimentação. Só procurou um médico quando passou a sentir cansaço extremo e não conseguia mais dar conta nem das tarefas simples.
O diagnóstico veio como um trovão seco: câncer em estágio avançado, metástase espalhada, poucos meses de vida.
Gael implorou por alternativas. Buscaram tratamentos particulares, procuraram especialistas, experimentaram medicamentos importados, chá de raízes de toda parte, mas a doença avançava com a mesma fúria que ele sentia por dentro.
Foi então que Cacilda, certa manhã, serviu café e falou com a tranquilidade de quem já sabia o que dizer há muito tempo:
— Gael... quero ir embora daqui. Quero voltar pra Rancho da Serra.
Gael ergueu os olhos, confuso.
— Mas a gente tá com os médicos daqui, o hospital…
— Eu não quero hospital. Eu quero o cheiro das hortênsias da pracinha. O fogão à lenha da escola velha. Os cachorros dos vizinhos latindo o dia todo. Quero morrer onde fui mais feliz. E onde você também foi, mesmo que tenha esquecido por um tempo.
Gael tentou argumentar, mas os olhos dela diziam mais que qualquer diagnóstico.
— Lá foi onde você aprendeu a correr. Onde eu e seu pai ainda nos dávamos as mãos. Onde eu dava aula e voltava pra casa de bicicleta. Onde você chorava no primeiro dia de aula e eu fingia que era só alergia de poeira. Lá foi onde tudo era mais leve. É onde eu quero fechar os olhos. Me leva?
Ele apenas assentiu, os olhos cheios d’água. E naquele mesmo mês, voltaram para Rancho da Serra, comparam uma casa simples perto da pracinha, onde seriam muito felizes enquanto pudessem.
2025
O caixão desceu lentamente. A terra caiu como um sussurro seco. Gael ficou ali, de pé, até todos irem embora. Ruth levou Mateus consigo. Pepe tentou se aproximar, mas foi contido por um olhar de Gael, que parecia não querer mais palavras, nem conselhos.
Arkan se aproximou devagar, sem fazer barulho. Parou ao lado dele e disse, num tom baixo:
— Ela teria orgulho de quem você é agora.
Gael fechou os olhos. Respirou fundo. A dor já não latejava — agora queimava, contínua, controlada.
— Eu vou fazer esse lugar me engolir…
Arkan olhou para ele com respeito. Depois estendeu a mão.
Gael hesitou. Mas aceitou.