Agosto chegara silencioso e cinzento em Rancho da Serra. Quinze dias haviam se passado desde que Gael começara a lecionar no colégio municipal, e a rotina, por mais que tensa, parecia se firmar.
Gael, sempre elegante em seu estilo moderno, vestia uma camisa de linho em tom pastel, calça de alfaiataria bem cortada, e um blazer leve, descontraído, que combinava perfeitamente com a atmosfera informal da cidade. Seu visual transmitia equilíbrio entre sofisticação e simplicidade — o homem que ele era, mesmo em um cenário pequeno.
Na casa de Cacilda, no centro da cidade, Pepe fazia questão de marcar presença. Recém-saído da suspensão pela briga na escola, o rapaz não perdia uma oportunidade de provocar.
Enquanto Gael ajeitava o blazer, Pepe se aproximou sorrateiro, baixando a voz até quase sussurrar no ouvido dele:
— Professor, só pra você saber, não é só na aula que eu posso ser bom aluno... Se quiser, posso te ensinar umas coisas bem mais interessantes.
Gael engoliu seco, fingindo não ouvir. Virou-se com um sorriso amarelo e desconversou:
— Pepe, foco na escola, por favor.
Mas Pepe não desistiria tão fácil.
Na escola, o clima era uma mistura de normalidade e tensão contida. Úrsula lançava olhares frios, visivelmente incomodada com a presença dele. Pedro, por sua vez, surgiu no corredor, com um sorriso meio sem jeito.
— Gael, que surpresa te ver por aqui — disse Pedro, aproximando-se como se a escola fosse seu segundo lar.
Gael cruzou os braços, respondendo com um brilho nos olhos:
— Ora Prefeito, eu trabalho aqui. Mas parece que você tem tempo demais para passear pela escola municipal. Por que não cuida melhor da prefeiturazinha?
Pedro deu uma risadinha e balançou a cabeça.
— A prefeitura pode esperar. Aqui é onde a verdadeira vida acontece, não acha?
Gael revirou os olhos, mas não disse mais nada. O clima entre eles era tenso, uma mistura de passado não resolvido e promessas veladas.
Stefani, a amiga leal e professora de Educação Física, passou pelo corredor e lançou um aceno de incentivo.
— Vai com calma, Gael. A gente sabe que o começo nunca é fácil.
— Como eu odeio esse verme !
— Sabe que ódio e amor andam juntos né !
— Vai se ferrar Stef.
E assim seguia a vida em Rancho da Serra, entre sussurros, olhares e segredos que começavam a fermentar.
Era começo de tarde em Rancho da Serra. O céu límpido deixava o sol filtrar pelas copas das árvores centenárias da praça, formando desenhos de luz e sombra nas calçadas de pedra. O ar cheirava a doce de leite recém-feito e ao vento fresco que descia das serras.
Gael atravessou a rua com passos tranquilos e entrou na pequena sorveteria do centro. A vitrola tocava um bolero antigo, e as cadeiras de ferro fundido, com almofadas desbotadas, davam ao lugar um charme nostálgico e imóvel no tempo.
Foi então que o viu. Felipe Camargo. De terno escuro, sentava-se ereto à mesa do canto, como se estivesse numa reunião e não tomando sorvete com o filho pequeno. Lucas, com o rosto lambuzado de chocolate, ria distraidamente.
Felipe ergueu os olhos e soltou, com um sorriso frio:
— Olha só... o filho pródigo resolveu voltar.
Gael não respondeu. Caminhou até o balcão, sem pressa.
— Mas sabe o que é curioso? — prosseguiu Felipe, num tom baixo, quase gentil. — Alguns homens amadurecem. Outros voltam ao mesmo buraco de onde nunca saíram.
Gael pediu um picolé artesanal. Manteve os olhos fixos no freezer enquanto as palavras vinham como navalhas escondidas em veludo.
— É triste, sabia? Ver um homem da sua idade tentando se encaixar onde nunca foi bem-vindo. Rancho da Serra... não mudou tanto assim. E você também não.
Felipe enxugou a boca de Lucas com um guardanapo e arrematou, como se fosse só mais um comentário qualquer:
— Só espero que você não confunda liberdade com licença. Principalmente perto do meu filho.
Gael pegou o picolé e se virou com um leve aceno para Lucas.
— Aproveita o sorvete, garoto.
Lucas retribuiu o sorriso, sem entender a gravidade que pairava no ar.
Gael saiu, deixando para trás o peso daquelas palavras suspensas entre os potes de sorvete e a vitrola antiga.
Do lado de fora, o vento soprava com mais força entre as ruas estreitas. As belezas de Rancho da Serra permaneciam, mas o passado seguia tão vivo quanto suas fachadas coloniais.
A tarde em Rancho da Serra ganhava tons dourados sob o céu limpo de agosto. Os alunos do primeiro ano seguiam em fila dispersa, subindo e descendo as ladeiras do centro histórico, guiados por professores e monitores visivelmente cansados. A estação ferroviária desativada, com sua estrutura em ruínas, observava tudo à distância como uma relíquia esquecida do passado.
Elisa, de braços cruzados, caminhava entre risadinhas trocadas com as amigas Luiza e Júlia, lançando olhares calculados para Mateus, que andava mais à frente.
— Ele se acha tanto… — murmurou Elisa, — mas vou colocar ele no lugar dele.
— O que vai fazer? — perguntou Luiza, interessada.
— Vamos pregar um susto. Ele vai pensar que ficou preso comigo num lugar abandonado, que nem os professores sabem que existe. Só nós duas lá dentro. Aí vamos ver se ele continua se achando.
As meninas riram.
— A estação?
— Isso mesmo. Fico com ele lá dentro por um tempo, faço um drama, e depois a gente sai. Vai ser hilário.
Mateus, sem ouvir nada, caminhava ao lado de outros colegas, distraído com os casarões antigos e os comentários debochados dos guias. Já estava de saco cheio da viagem. Quando pararam para lanchar na praça, Elisa se aproximou.
— Tá entediado, filhinho do professor? — disse ela, com um sorriso torto.
— Tô mais entediado com você falando.
— Ótimo. Então vamos sair da mesmice. Aposto que você não tem coragem de me acompanhar num desafio.
— Lá vem.
— A estação de trem. Tá abandonada. Eu topo entrar. E você?
— Você só quer que alguém te tire de lá quando desmaiar de medo.
— Tô esperando.
Luiza e Júlia se aproximaram com expressões cúmplices.
— A gente distrai os professores, vai lá com ela — disse Júlia, rindo. — Depois conta como foi.
Mateus bufou. A raiva era maior que o bom senso.
— Tá. Mas sem drama.
Os quatro se separaram do grupo discretamente. Luiza e Júlia ficaram para trás, inventando que Elisa tinha ido ao banheiro. Ninguém percebeu o sumiço imediato.
Na estação, o portão lateral estava entreaberto. Elisa puxou Mateus pela manga da blusa e entraram. O lugar estava ainda mais sinistro por dentro: chão de terra batida, janelas estouradas, luz entrando em feixes finos, criando um jogo de sombras.
— Aposto que você vai sair correndo — disse Mateus, encarando as paredes rabiscadas e pedaços de madeira no chão.
— Aposto que você vai chorar primeiro.
Mas no meio da troca de farpas, ao se apoiarem em uma estrutura instável, uma viga cedeu. O estalo ecoou como um trovão abafado. Elisa gritou, e Mateus instintivamente a empurrou para longe. A madeira caiu sobre seu braço com força.
— Merda! — ele gritou, caindo no chão.
— Mateus?! Para! Para com isso, tá fingindo?
Mas o cotovelo já inchava, e o braço pendia torto, a dor estampada no rosto dele.
— Você quebrou... — Elisa sussurrou, pálida.
Ela engoliu o pânico, procurou ao redor. Achou um pedaço de madeira comprida, arrancou parte da própria blusa e improvisou uma tala. Tirou o casaco e amarrou numa tipoia.
— Desculpa. Foi só uma brincadeira. Eu não achei que...
— Cala a boca e termina de amarrar isso.
Ela mordeu o lábio, segurando as lágrimas. Depois de amarrar, sentou-se ao lado dele, em silêncio. Só o barulho das madeiras estalando e o vento passando pelas frestas preenchia o ar.
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Cena de encerramento:
Na praça, a professora Janete estranhava a ausência dos dois.
— Elisa? Mateus? — chamou em voz alta, olhando ao redor.
Nada.
Procurou os nomes na lista. Chamou os monitores. Conferiram banheiros, sorveterias, lojas.
Nada.
Pegou o celular e discou, os olhos duros e a voz tensa:
— Diretora Úrsula? Janete falando. Tivemos um problema. Dois alunos sumiram.
No escritório da escola, ao ouvir o nome da filha entre os desaparecidos, Úrsula sentiu o chão abrir-se. O telefone escorregou por entre os dedos. O ar sumiu do peito.
Elisa. Mateus. Sumidos.
E ninguém sabia onde procurar.
Naquela mesma tarde em que os alunos do Colégio Municipal Professora Maria Dulce se espalhavam pelo centro histórico, Arquimedes Magalhães, o engenheiro de gestos rudes e olhar de aço, costurava em silêncio os bastidores da cidade.
Com o macacão ainda sujo da obra e os cabelos presos num lenço velho de couro, Arkan caminhava pelas ruas de Rancho da Serra como quem media cada passo. Seus olhos não paravam. Nada escapava. Nem os cartazes na praça, nem as conversas abafadas nas mesas do café onde vereadores se reuniam entre goles de café fraco e vaidades mornas.
Ele parou diante da biblioteca municipal. Do lado de dentro, a estagiária adolescente mal notou quando ele pediu os arquivos do jornal local. Enquanto ela buscava, ele recostou-se no balcão de madeira e sorriu, quase com desdém, ao ver a edição de 2003, encardida e amarelada. A manchete o fez suspirar:
> “Pedro Krazinsk assume presidência do Grêmio: nova era para o Colégio Maria Dulce.”
Arkan virou a página. Encontrou as fotos: Pedro ao centro, Úrsula sorrindo ao lado, e um Gael quase apagado no fundo da imagem.
— Típico — murmurou.
Deixou a biblioteca com cópias em mãos e seguiu direto para a pensão onde estava hospedado. Ali, na solidão do quarto com vista para os fundos da igreja, estendeu sobre a cama todos os nomes e ligações que conseguira em apenas duas semanas: vereadores, diretores, professores antigos, lideranças sindicais, ex-funcionários da prefeitura. Muitos ligados a Pedro. Alguns ainda devotos. Outros, apenas calados por conveniência.
Com a ponta de uma lapiseira, Arkan circulou dois nomes: Amadeu e Dolores Cabalero.
Deixou a folha de lado. Pegou o celular e gravou um áudio:
> “Sra. Dolores, sou um conhecido da sua filha Úrsula. A senhora talvez não saiba, mas ela e seu neta estão em risco. Rancho da Serra não é mais a mesma. Sugiro que venham. Urgente.”
Ele não assinou. Tampouco explicou o porquê. Apenas pressionou enviar e ficou olhando para o celular como quem jogava uma bomba no mar.
Minutos depois, saiu do quarto. Atravessou a praça, parou num antiquário, comprou um relógio de bolso quebrado, entrou no bar do Alcides.
— Tá virando freguês, hein, Arkan? — disse Alcides, puxando conversa.
— Me acostumo fácil com silêncio e cerveja gelada — respondeu ele, com voz de pedra.
O bar do Alcides era um abrigo quente numa cidade prestes a arder. Poucos clientes naquela hora, apenas o tilintar de copos e a voz arrastada de Zé Neto & Cristiano se espalhando pelos alto-falantes enferrujados.
> “Agora eu tô sofrendo / E ela tá desfilando…”
Arkan estava encostado no balcão, com o copo de cerveja entre os dedos. Não bebia por gosto — bebia por hábito. O olhar fixo no fundo do copo parecia procurar ali as respostas que o mundo não dava.
> “Eu tô largado às traças / Maldito sentimento que nunca se acaba…”
— Essa toca fundo, né? — disse Alcides, enxugando o balcão com o pano puído.
Arkan não respondeu de imediato. Levantou os olhos devagar e murmurou:
— Tem coisa que a gente não esquece. Só aprende a camuflar.
E tomou mais um gole.
Do lado de fora, os sussurros já corriam soltos: a filha do prefeito sumida, um menino também.
— Vai mais uma, Arkan? — gritou o dono, enxugando o balcão com pano encardido.
Arkan largou umas notas sobre o balcão e saiu sem dizer mais nada, como se o chamado da noite tivesse mais urgência que a bebida.
Do lado de fora, a praça principal já começava a se encher de murmúrios, celulares vibrando, vozes tensas.
Ele olhou para o alto do sobrado da prefeitura. As luzes estavam acesas. Gente entrando e saindo. Alvoroço.
Sem pressa, como quem já previa o caos, ele tomou o caminho até o Colégio Municipal Professora Maria Dulce, agora iluminado como uma cena de crime. Viaturas da guarda municipal bloqueavam parcialmente o portão. Algumas mães já choravam na calçada. Professores murmuravam entre si, tensos. A cidade dormia com um nó na garganta.
Ao se aproximar da lateral do prédio, Arkan ouviu os gritos antes de ver os rostos.
— Isso é culpa de vocês dois! — berrou Gael, os olhos em chamas, o rosto vermelho de angústia. — Vocês transformaram essa escola num campo de guerra pessoal! Meu filho sumiu!
Pedro mantinha o semblante contrito, mas a culpa aflorava nas rugas de sua testa.
— Gael, não é hora de... — tentou dizer.
Mas Úrsula, descompensada, avançou com os punhos cerrados.
— Você sempre foi um maldito imaturo! Veio pra cá pra destruir tudo que construímos!
Antes que encostasse em Gael, Pedro a segurou pelos braços, quase num abraço forçado.
— Para com isso, Úrsula!
— Me solta! Eu devia ter acabado com ele quando tive chance!
Gael recuou, olhos marejados, respiração pesada. Virou de costas, atravessou o portão, ignorando os olhares em volta, e saiu em disparada pelas ruas vazias, como se o ar da cidade pudesse trazer alguma resposta.
Arkan o seguiu à distância. Quando finalmente o alcançou na rua da praça da matriz, Gael havia parado, sem fôlego, as mãos nos joelhos.
Viaturas da polícia estavam estacionadas próximas, oficiais conversavam com professores e pais, tentando controlar a comoção crescente.
— Professor Gael Beltran? — disse Arkan, com voz grave, surgindo das sombras como um vulto.
Gael virou-se, ainda ofegante.
— Quem é você?
— Arquimedes. Mas pode me chamar de Arkan. Sou o engenheiro do projeto ferroviário... e, digamos, bom em encontrar caminhos.
Gael franziu o cenho, desconfiado.
— Tá me seguindo?
— Te observando. É diferente. Eu vi o que aconteceu lá na escola. E se você aceitar ajuda... posso procurar o seu filho por outros meios.
Gael hesitou, a tensão evidente no rosto.
— Por que você faria isso?
Arkan olhou para o céu fechado, depois para Gael. Sua voz saiu mais baixa, quase rouca:
— Porque eu sou pai. E sei exatamente o que você tá sentindo.
Gael engoliu seco. O rosto endurecido por mágoas antigas começava a rachar de medo.
Arkan estendeu a mão, firme.
— Vem. Eles não devem ter ido longe. A gente começa pelas trilhas da estação.
Gael assentiu. E os dois desapareceram pelas ruas mal iluminadas, enquanto, do alto do morro, as badaladas da igreja anunciavam nove da noite. Rancho da Serra, mais do que nunca, mergulhava em sua própria escuridão.