2- Pisando em Ovos

Um conto erótico de Lauro Costa
Categoria: Gay
Contém 2370 palavras
Data: 24/06/2025 11:14:51
Assuntos: Gay

Dizem que Rancho da Serra nasceu do barro e do ferro — e talvez também de algumas mentiras bem contadas. Fundada no fim do século XIX como entreposto ferroviário entre Valença e o mar, a cidade floresceu ao redor dos trilhos como flor do campo: simples, teimosa, resistente. A estrada de ferro hoje é ruína, mas a memória segue presente em tudo — dos bancos da praça central às casas antigas com platibandas descascadas e janelas de madeira pintadas de branco.

Com o tempo, Rancho virou refúgio de quem queria sossego... e prisão de quem nunca teve escolha.

Gael acordou com o som de galos, um cheiro leve de café passado e a claridade filtrada pelas cortinas floridas do quarto de infância. Era o fim de julho, e a cidade parecia igual e diferente ao mesmo tempo. Os morros ainda cercavam tudo como muralhas verdes, mas o tempo... o tempo era outro.

— Vambora, Mateus. Primeiro dia de aula — disse, batendo de leve na porta do filho.

— Já tô indo! — respondeu o adolescente, com a voz rouca de sono e mau humor.

No carro, o silêncio durou alguns minutos até ser quebrado pelo rádio, onde tocava “Maria” de Dua Lipa. Gael cantarolava baixinho.

Mateus torceu a cara.

— Aff? Bota uma Ana Castela, pai...

— Você tem um pai que ama Diva Pop. Se vira com isso.

Mateus bufou, mas sorriu. E quando chegou o refrão, os dois cantaram juntos. Meio por raiva.

A escola municipal Professora Maria Dulce ficava a poucos metros da igreja matriz e do coreto da praça. Era um prédio baixo, com janelas gradeadas, pátio de cimento e murais pintados com frases sobre respeito, leitura e cidadania — utopias frágeis num território onde os corredores escondiam outras histórias.

Gael estacionou. Respirou fundo.

— Rancho da Serra nunca foi simples. Mas agora, filho... a gente vai tentar fazer dela nossa casa. Por sua avó. Por nós.

Mateus olhou para o pai. Não disse nada. Mas apertou o ombro dele por um segundo, antes de descer.

No corredor de entrada, Stefani já o esperava, segurando duas canecas de café.

— Achei que ia faltar. — Ela entregou uma das canecas com um sorriso de apoio. — Pronto pra guerra?

— Me sinto como soldado convocado sem treinamento.

— A boa notícia é que ninguém aqui sabe atirar. A má é que todo mundo adora ver sangue.

Eles atravessaram o pátio em silêncio, ouvindo os primeiros passos dos alunos chegando. O som das conversas, das risadas e das mochilas arrastadas era ao mesmo tempo familiar e distante.

Na sala dos professores, Gael revisava o plano de aula deixado pela antiga docente quando ouviu uma voz conhecida bater à porta com uma doçura artificial:

— Bom dia, professor Beltran. Pronto para o primeiro dia?

Úrsula.

Usava um tailleur bordô impecável, maquiagem firme, olhar clínico.

— Sempre pronto — respondeu Gael, seco.

Ela entrou sem ser convidada.

— Só vim desejar sucesso. E lembrar que temos diretrizes a seguir. Nada de invencionices, de ideias "modernas demais". Nossos alunos precisam de disciplina e resultados, não de poesia e subjetividade.

Stefani pigarreou, mas manteve-se quieta, apoiada na parede como espectadora.

— Pode deixar — disse Gael, com um sorriso contido. — Prometo não ensinar ninguém a pensar.

Úrsula estreitou os olhos, prestes a retrucar, quando Pedro apareceu à porta.

— Gael... — disse, com a voz baixa e um sorriso que lutava para parecer casual. — Você tem um minuto?

— Tenho trinta segundos — respondeu Gael, sem se mexer.

Úrsula encarou o marido, surpresa.

— Vai querer conversar com ele agora?

— Só uma palavrinha. — Pedro forçou um olhar amistoso. — Em particular.

Stefani ergueu as sobrancelhas. Úrsula manteve o sorriso, mas seus olhos queimavam.

— Vou deixar vocês — disse ela, já dura. — Mas lembrem-se: profissionalismo, sempre.

Assim que a porta se fechou, Pedro se aproximou devagar.

— Ainda está bravo comigo?

Gael cruzou os braços.

— Bravo? Eu só não gosto de lixo perto de mim.

Pedro riu, desconfortável.

— Você sempre teve esse charme agressivo.

— E você sempre teve esse fetiche por me destruir.

— Eu sinto falta de você, Gael. A cidade ficou mais fria quando você foi embora. E agora...

— Agora eu voltei — interrompeu. — Por motivos que não envolvem você. Nem seu casamento, nem sua culpa.

Pedro engoliu seco.

— Eu não sou o mesmo.

— Pena. Porque eu sou. E continuo sem paciência pra covarde.

A porta abriu com um baque. Stefani reapareceu.

— Gael, os alunos estão entrando. Bora?

Gael passou por Pedro como quem cruza uma sombra antiga. Ele caminhou até a sala, sentindo os olhares dos alunos antes mesmo de abrir a porta. Ao entrar, vinte e seis rostos se viraram. Alguns curiosos, outros entediados. Mateus fingiu estar profundamente concentrado no caderno, como se o pai fosse um professor qualquer que havia surgido do nada.

Gael não se intimidou.

— Bom dia. Eu sou o professor Gael. Professor de Literatura. Professor novo. Professor gay. Professor viúvo. Pai de aluno. E sim, isso significa que qualquer frase maldosa que vocês pensarem... eu já ouvi, vivi, ou publiquei em texto.

Alguns alunos riram, desconcertados. Outros se entreolharam.

— Hoje, a gente vai conversar sobre palavra. O que ela constrói. E o que ela destrói.

A aula seguiu com fluidez. Gael era afiado, direto, envolvente. Conseguiu arrancar participações tímidas, algumas piadas e até olhares atentos. Terminou a aula com uma proposta:

— Quero que vocês tragam, na próxima aula, um trecho de música, poema ou letra de funk que mexe com vocês. E tragam sabendo dizer por quê.

Mateus o observava com disfarçado orgulho.

Gael sabia que não conquistaria todos naquele primeiro encontro. Mas havia, no ar, uma centelha de respeito.

Na segunda aula do dia, Gael foi conhecer a turma do 3º ano, onde estudava Pepe Ramos.

A diferença de postura era clara. Alunos mais velhos, debochados, testando limites. Gael chegou sem script.

— Como vocês estão? Não, não me respondam com “tudo bem”. Isso aqui não é rede social.

Risos dispersos.

— Tenho fama de exigente. Eu espero que vocês escrevam, que pensem, e principalmente que saibam discordar de mim com educação. Aqui, você não é punido por pensar diferente. Mas vai ser avaliado por como escreve isso.

Pepe, na terceira fileira, o observava com um olhar fixo demais para ser apenas acadêmico. Havia algo ali. Um fascínio quieto.

Daniel, o colega de classe de Pepe, já soltava piadinhas entre uma fala e outra. Gael percebeu. Guardou.

No fim da aula, deixou a turma com um desafio:

— Literatura é pra quem sente. Se você prefere não sentir nada, talvez queira tentar exatas.- disse para Daniel.

Na sala dos professores, Stefani o esperava com um café melhorado e uma expressão entre surpresa e orgulho.

— E aí, sobreviveu?

— Quase gostei. É assustador.

— Esse é o segredo.

O intervalo entre as turmas do terceiro ano havia começado havia poucos minutos. Alunos espalhavam-se pelo pátio cimentado, conversando em rodas, trocando piadas, olhando o celular. Pepe Ramos encostava-se a uma das pilastras, mexendo no celular enquanto observava o movimento ao redor com aquele misto de arrogância e tédio típico de quem sabe que todos olham, mas finge que não nota.

Daniel, um colega da mesma turma — loiro, de boné, riso fácil e preconceito mal disfarçado — passou com dois amigos, provocando:

— E aí, Pepe... calça tá justa hoje, hein. Vai ver o professor novo gosta de ver material alternativo.

Pepe parou de digitar. Levantou os olhos.

— Como é que é?

— Relaxa, mano. Tô só zoando. Vai ver o “poetinha” curte — completou Daniel, fazendo aspas no ar.

Alguns riram. Um dos colegas tentou amenizar:

— Deixa disso, Daniel...

Mas era tarde.

Pepe largou o celular, atravessou os passos entre eles como um raio e acertou Daniel com um soco direto no rosto. O som seco do impacto ecoou. Daniel cambaleou e caiu de lado no chão, segurando o rosto, sangrando.

Alunos gritaram. A confusão estourou.

Stefani, que passava pelo pátio, correu para separar a briga, gritando:

— PEPE! PELO AMOR DE DEUS! QUE ISSO?!

Pepe ainda respirava pesado, mãos cerradas.

— Esse merda me chamou de viado. Acha que pode falar o que quiser? - disse Pepe voltando a bater em Daniel.

Mateus, que tinha saído da sala pra pegar um lanche, correu até a cena, os olhos arregalados.

Gael, vindo de outro corredor, se aproximou rapidamente.

— Pepe... Para agora!!! Olha pra mim. Respira. — Disse Gael tirando Pepe de cima de Daniel.

Pepe recuou, tenso, mas obedeceu. Daniel continuava no chão, agora sendo ajudado por Stefani.

— Vamos pra sala da coordenação — disse Stefani, dura, mas calma.

Gael acompanhou Pepe em silêncio. O pátio inteiro os observava. E, ao longe, numa janela do segundo andar, Úrsula já observava a cena, os braços cruzados, olhos semicerrados.

A sala da direção da Escola Municipal Professora Maria Dulce era fria, como se a pintura bege descascada já avisasse: ali não se fazia acolhimento, se lavava roupa suja. Gael entrou com os documentos da ocorrência na mão e o rosto fechado. A diretora, como sempre, controlava o clima com um leve sorriso venenoso.

Úrsula fechou a porta devagar.

— Obrigada por estar aqui, professor. Já comuniquei os responsáveis. A Mãe de Pepe, Veronica trabalha fora, então pedi que o padrasto do aluno viesse, já os pais de Daniel, a Stefani irá atendê-los. — Eba!!! A dupla dinâmica de volta ao batente.

Gael ergueu os olhos e disse: — Ridícula!!!

Úrsula gargalhou, mas ele sabia que alguma coisa viria de ruim daquela cobra, e seu corpo reagiu com um leve arrepio.

A maçaneta girou. A porta abriu. E Felipe Camargo entrou junto com Pepe, que olhava para baixo.

Sapato engraxado, camisa social dobrada nos punhos, cabelo grisalho bem cortado. Tinha a mesma postura de sempre — a de quem está atrasado para um julgamento que já decidiu o veredito.

Pepe cumprimentou com um aceno discreto Gael e Úrsula.

Gael, em pé, não moveu um músculo, parecia que via um fantasma em sua frente.

— Professor. — disse Felipe, encarando-o com o mínimo necessário de emoção. — Fico sabendo que tivemos um problema?

— Seu enteado agrediu outro aluno após ser provocado com um comentário homofóbico — disse Gael, com profissionalismo calculado. — Eu estava encerrando a aula quando intervi na briga.

— O comentário foi mesmo nesse tom? — perguntou Felipe, com voz neutra.

Pepe respondeu, firme:

— Me chamaram de viado. Achei que devia agradecer com um soco ou uma flor. Preferi o soco.

Felipe olhou para o rapaz, e Gael percebeu algo que quase passou despercebido: orgulho contido.

Úrsula pigarreou.

— Ainda que a provocação tenha sido ofensiva, a agressão precisa ser registrada. Estamos lidando com um adolescente, mas também com a reputação da escola.

— Claro, diretora — disse Felipe, agora com um leve veneno na voz. — Mas também devemos lidar com o fato de que a escola não pode ser conivente com violência verbal, não é?

Gael manteve o olhar fixo no pai. Estavam tão próximos... e ao mesmo tempo, ainda falando como dois desconhecidos usando luvas.

— De qualquer forma — completou Felipe, pegando a caneta — assino o que for preciso. Mas meu enteado não será punido por se defender. Espero que isso esteja claro.

Úrsula sorriu com a boca, não com os olhos.

— Sempre prezamos pelo bom senso, senhor Camargo, mas os garotos serão punidos de acordo com suas respectivas infrações. Respeito mútuo sempre.

Felipe virou-se para sair. Antes de alcançar a porta, olhou por cima do ombro e encarou por alguns segundos o filho que ele havia rejeitado anos atrás por ser gay.

Gael com lágrimas nos olhos retribuiu o olhar com toda a sua dor.

Pepe os encarava, como quem tentava decifrar algo invisível entre os dois.

Após Pepe e Felipe saírem, Gael encarou Úrsula e disparou:

— Você me paga sua vaca !

— Olha o decoro professor. — disse Úrsula as gargalhadas.

O relógio da escola marcava quinze para as três quando o ronco grave da moto cortou o silêncio do estacionamento. O som era quase uma provocação: forte, metálico, vindo de alguém que não pedia licença.

Alunos espiaram pelas janelas. Professores saíram ao corredor. E foi assim que Arquimedes Magalhães, o agora chamado Arkan, pisou novamente no solo da Escola Municipal Professora Maria Dulce.

Usava uma jaqueta preta, jeans surrado e botas de couro que pareciam ter cruzado desertos. Tirou o capacete devagar, revelando cabelos grisalhos longos, bem aparados, e um rosto marcado pelo sol e por escolhas difíceis. Seus olhos escuros varreram o ambiente como quem mapeia território inimigo. No queixo, uma cicatriz discreta. No andar, uma autoridade que vinha de dentro — sem necessidade de título.

Pedro, com seu paletó bege e cara de político simpático, se apressou em recebê-lo.

— Arkan! Bem-vindo! Os alunos estão animados, viu?

— Tomara que estejam mais animados que eu — respondeu ele, com um sorriso enviesado.

— Fizemos questão de encaixar sua palestra no projeto de orientação vocacional. A turma do terceiro ano precisa conhecer outras possibilidades além da prefeitura e do comércio local.

— Engenharia é mais poeira do que glória. Mas vou tentar vender bem o peixe.

Enquanto caminhavam em direção ao auditório improvisado no refeitório da escola, passaram pela secretaria — e foi ali que Úrsula apareceu.

Ela travou no mesmo instante em que o viu.

Arkan parou também. Por um segundo inteiro, os dois se encararam como estátuas em um campo de batalha que ninguém mais enxergava.

— Diretora Úrsula Cabalero — disse Arkan, com polidez de quem sabe esconder o fogo.

— Senhor Magalhães. — Ela respondeu com o mesmo tom. Mas suas mãos tremiam.

Pedro tentou quebrar o clima:

— Eles já se conhecem, pelo visto...

— De vista — disse ela, seca.

— Rancho da Serra é pequena. Todo mundo já viu todo mundo — comentou Arkan, antes de seguir, sem pressa, até o fundo do corredor.

Úrsula ficou ali, parada, como se tivesse levado um soco no estômago.

No corredor, Gael assistia à cena de longe, ao lado de Stefani, que cochichou:

— Esse é o tal engenheiro?

— Esse é o tal homem que chegou com cheiro de tempestade — respondeu Gael, quase para si mesmo.

Arkan entrou no refeitório e começou a conversar com os alunos com naturalidade. Falava sobre construção civil, sobre ferrovias, sobre erros de cálculo que viram tragédia. Mas seus olhos sempre voltavam para Pepe, que ouvia com atenção — e, sem saber, carregava um elo distante com aquele homem.

No canto mais escuro do pátio, Úrsula observava a cena, escondida por trás da cortina da sala da direção. O rosto pálido, os olhos molhados de raiva.

O passado que ela expulsou estava dentro da escola. Convidado. Aplaudido. E perigoso

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 0 estrelas.
Incentive Lauro Costa a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.

Comentários

Este comentário não está disponível
Este comentário não está disponível