—Você vai fazer o seguinte Suzy — disse Madalena, com um brilho prático no olhar — Arruma uma briga com o Caio. Amanhã ou sexta, no máximo. Nada absurdo. Só uma coisa emocional, pra ele ficar ofendido. Você o provoca até ele perder a paciência, e você se faz de ofendida também. Ele vai cair direitinho.
— Você acha?
— Claro que acho. Homem é tudo burro. Daí você cancela Floripa, vai com seus amigos pra essa praia, vive o romancezinho, fode gostoso com o Ricardo. Na quarta de cinzas, você liga para o Caio chorando, diz que se arrependeu, que foi uma loucura.
Suzy caiu na risada, solta, leve, como se tivessem acabado de resolver a equação da felicidade.
Eu parei o vídeo ali. Encostei nas costas da cadeira e fiquei olhando pro teto, sem ver nada.
Eu não sabia exatamente o que me incomodava mais: o plano em si, o modo como riram do Caio, ou o fato de Madalena — minha sócia, minha colega de faculdade — tratar esse tipo de manipulação como algo banal. Um truque de sobrevivência.
Ou talvez fosse o olhar da Suzy. Aquela leveza no fim da conversa… parecia liberdade. Mas a que custo?
O fato é que o carnaval chegou e notei que Suzy colocou o plano em prática mesmo...
O Carnaval passou ... chegou a Quarta-Feira de Cinzas.
O escritório ainda estava meio vazio, com aquele clima de ressaca pós-feriado. Um silêncio que só é quebrado por cliques de mouse.
Madalena chegou pouco depois das dez, bronzeada, de bom humor, e com aquele jeito expansivo que usa quando quer distrair a atenção. Bateu na minha porta com um sorriso.
— Sobre a Suzy — ela disse, já entrando sem esperar convite. — Ela não veio hoje. Se machucou lá na praia. Foi no médico, pegou atestado. Volta amanhã.
Assenti devagar, sem tirar os olhos da tela. Fechei a aba do navegador onde eu ainda tinha pausado o vídeo da câmera da semana anterior. Não era hora pra falar disso ali. Então fiz o que sabia fazer bem: segurei o silêncio por um segundo mais longo que o confortável.
— Entra aqui comigo um minutinho, Madá. Fecha a porta.
Ela hesitou. Só um pouco. Mas entrou. Sentou-se na cadeira à minha frente, como quem já adivinhava que a conversa ia mudar de tom.
— Eu vou ser direto. Eu acho que esse atestado é falso.
Ela se admirou, mas não tentou negar de imediato. Só ficou olhando pra mim, o sorriso começando a desaparecer.
— Eu sei que você é amiga da Suzy. Sei também que ela não foi pra Florianópolis com o Caio. Sei que ela armou uma briga com ele de propósito. Sei que passou o carnaval numa praia com os colegas de faculdade. Com o tal do Ricardo.
Agora sim, o rosto dela ficou sério.
— Anderson…
— Calma. Não estou aqui pra fazer escândalo. Eu só quero que você entenda uma coisa: eu vou fingir que acredito nesse atestado. Vou deixar passar. Dessa vez.
Madalena respirou fundo. Olhou pra baixo, mexendo nos próprios dedos como quem procura a melhor forma de admitir um erro.
— O atestado é falso. — ela disse, por fim. — Ela me pediu ajuda. Queria ficar só mais um dia lá, com os amigos. Com o Ricardo. Eu… só tentei ajudar.
— Eu entendo. — respondi. E entendo mesmo. — Mas você é minha sócia, Madalena. A gente construiu essa empresa com base em confiança. Não dá pra você falsificar atestado pra uma funcionária — seja amiga ou não — e esperar que eu engula isso como se fosse normal.
Ela assentiu, quase envergonhada.
— Você tem razão. Foi impulso. Não vou fazer de novo. Te juro.
Madalena sempre teve esse instinto protetor com quem ela gosta. Mas havia uma linha tênue entre proteger… e acobertar.
— Obrigado por não expor isso pra todo mundo — ela disse, antes de levantar.
— Não faço isso por ela. Faço porque ainda acredito em você.
Ela parou, respirou fundo, e saiu da sala sem dizer mais nada.
Fiquei ali, sozinho, olhando pela janela, com uma sensação ruim. Eu não era pai da Suzy, nem juiz da vida de ninguém. Mas fiquei bem incomodado.
O meu incômodo é que eu realmente tinha me encantado por Suzy. Além de ser bonita e gostosa, aquele jeitinho dela, que exalava pureza tinha me conquistado.
Eu agora eu vi que Suzy não era tão inocente assim.
O que me levou a outro pensamento ...
Nunca imaginei que algo assim fosse passar pela minha cabeça. No começo, era só uma admiração inocente. Suzy chegou com aquele sorriso doce, um jeito leve de falar. Tudo nela era... diferente. Charmosa, sim, mas também segura. Culta. Refinada.
Eu também tenho dinheiro. Eu também poderia dar a ela tudo aquilo. Talvez mais.
Fiquei com vergonha de mim mesmo por pensar isso. Tentar “substituir” alguém? Como se ela fosse um projeto a ser financiado. Mas a ideia foi se firmando. Voltava sempre. Me perseguia nas horas vagas. Me fazia olhar pra ela de outro jeito. E, por fim, eu cedi.
Mas havia um detalhe que martelava na minha mente — se algum dia isso fosse possível, se Suzy quisesse... eu não faria questão de exclusividade. Não cobraria presença, não imporia controle. Ela poderia ter o tempo dela. Sair com quem quisesse. Eu só queria estar por perto, somar, cuidar, oferecer algo melhor. Queria que ela soubesse que podia contar comigo sem se sentir presa. Se fosse pra ela se sentir sufocada, que não fosse comigo.
Chamei Madalena para uma conversa a sós no escritório. Estava nervoso. Ela notou.
— Tá tudo bem, Anderson? — ela perguntou, fechando a porta.
Suspirei. Olhei pro chão antes de encará-la.
— Olha... isso pode parecer absurdo. Pode até te deixar chateada, mas eu preciso te falar. A Suzy... eu gosto dela. Não sei explicar. É mais do que atração. Me peguei pensando nela o tempo todo. E... eu sei que ela tem esse cara, o Caio. Mas eu fiquei imaginando... se eu não poderia ser esse cara.
Madalena franziu levemente a testa, mas permaneceu em silêncio.
— Eu sei o que parece — continuei. — Mas não é posse. Eu não quero tirar nada dela. Nem a liberdade, nem os sonhos. Se, algum dia, ela quisesse... eu gostaria de estar na vida dela. E não me importaria se ela quisesse sair com outras pessoas, ter o tempo dela, viver do jeito dela.
Madalena cruzou os braços, pensativa.
— Você quer... bancar a Suzy? Como o Caio faz?
— Não só isso. Quero dizer... talvez mais do que isso. Eu queria estar com ela
Ela me olhou por longos segundos, depois soltou um suspiro.
— É muita coisa pra processar, Anderson. Suzy é jovem. É esperta. Mas eu preciso ter certeza que isso não é apenas um impulso seu!
- Se for só um impulso, é o mais persistente que já tive.
- Vou pensar. Talvez eu converse com ela. Com cuidado.
Assenti. Já era mais do que eu esperava. A chance de ser ouvido. E, quem sabe, de ser considerado.
Fiquei ali depois que ela saiu. Em silêncio. Esperando que o tempo, mais uma vez, decidisse por mim.
Suzy seria um meio termo entre um relacionamento sério e uma noite com uma GP.
EU ainda estaria no controle, pois bancaria Suzy com meu dinheiro, e ela não me cobraria dedicação, afeto e atenção como Simone cobrava.
Os dias passaram em silêncio.
Aquele tipo de silêncio que pesa. Que não é exatamente ausência de som, mas a presença de algo que ainda não aconteceu. Madalena continuava agindo normalmente — profissional, cordial, mas evitava qualquer conversa mais profunda. Suzy também não demonstrava nada diferente. Sorria com aquele brilho que me desconcentrava, conversava com todos de maneira leve... e comigo, com a mesma educação de sempre.
Eu tentava me manter no eixo, seguir com o trabalho, esconder o nervosismo de cada momento. Sabia que, se Madalena não dissesse mais nada, eu teria que aceitar o silêncio como resposta.
Mas então, três dias depois, no fim do expediente, Madalena entrou na minha sala sem bater. Tinha aquela expressão dela de quem vem com algo importante — o olhar fixo, o passo firme.
— Anderson — disse, fechando a porta atrás de si. — Eu falei com a Suzy.
Meu coração deu aquele pulo. Tentei não parecer afetado, mas era inútil.
— E?
Ela se sentou de frente pra mim, com calma.
— No começo ela estranhou, claro. Ficou surpresa. Mas me ouviu com atenção. Não achou ofensivo. Muito pelo contrário... ela ficou curiosa. Me fez várias perguntas. Quis saber mais sobre o que você tinha dito, sobre como você pensava a respeito disso tudo.
Assenti, tentando controlar a ansiedade.
— E aí?
— Ela disse que está... disposta a conversar. Com a gente. Os três. Não pra dar nenhuma resposta definitiva. Mas pra ouvir de você. Olhar no teu olho. Entender se o que você quer é real. E como seria isso. Com calma. Sem pressão.
Demorei um segundo pra processar.
— Ela topa conversar comigo? Assim... abertamente?
— Sim. Mas comigo junto, pelo menos nesse primeiro momento. E eu concordei. Quero garantir que essa conversa seja madura, respeitosa. E segura, principalmente pra ela. Suzy é esperta, mas ainda é jovem. E essa situação é delicada.
Senti uma mistura de alívio e apreensão. Uma parte de mim queria que fosse só eu e Suzy. A outra parte — a racional — agradecia pela presença de Madalena. Aquilo precisava de equilíbrio.
— Quando seria essa conversa?
— Amanhã, no fim do expediente. Aqui mesmo. Já falei com ela, e ela topou. Só precisa de você disponível.
Assenti, ansioso.
— Eu tô.
Madalena levantou, ajeitou os cabelos e olhou pra mim por um instante mais longo que o normal.
— Anderson... essa não é uma situação comum. Nem pra ela, nem pra você. E qualquer passo em falso pode complicar tudo. Mas se você for sincero, e respeitoso como sempre foi, acho que vocês têm algo pra construir. Nem que seja um entendimento.
Ela saiu e me deixou sozinho com a ideia. Suzy tinha aceitado conversar. Me ouvir.
Amanhã, eu teria que me despir de qualquer vaidade. Mostrar exatamente o que estava em mim — O respeito. A vontade de estar por perto sem dominar. De somar, não de possuir.
E se ela visse isso… talvez o começo de algo fosse possível.
O dia da reunião chegou.
Passei o expediente inteiro tentando me concentrar no trabalho, mas era inútil. Cada e-mail que eu abria se desfazia no meio das palavras. Cada conversa com a equipe parecia acontecer num idioma diferente. Tudo em mim estava tenso — das mãos aos ombros.
A parte mais covarde de mim queria desistir. Queria mandar uma mensagem pra Madalena e dizer que não era uma boa ideia, que eu me precipitei, que me envergonhava até de ter colocado isso em palavras. Mas já era tarde demais. Eu tinha falado. Eu tinha me exposto. Voltar atrás agora não era mais uma opção. Seria fugir de mim mesmo. E isso... eu me recusei a fazer.
Fiquei na sala até que o escritório fosse esvaziando. O relógio foi arrastando os minutos. Às 18h03, ouvi uma batida leve na porta. Levantei a cabeça e lá estavam elas: Madalena, séria como sempre, e Suzy, com um olhar difícil de decifrar. Nem frio, nem calor. Atento. Cauteloso.
— Podemos? — perguntou Madalena.
Assenti e me levantei. Elas entraram, e eu fechei a porta atrás de nós. Sentamos os três em volta da mesa de reunião pequena, aquela perto da janela.
O silêncio inicial foi sufocante. Era como se todas as palavras tivessem desaparecido da minha boca.
Mas foi Madalena quem começou.
— Anderson... antes de qualquer coisa, quero dizer que o que você compartilhou comigo foi tratado com respeito. E que, pra nossa surpresa — ou talvez nem tanto — Suzy também não ficou escandalizada. Na verdade...
Ela olhou para Suzy, que sorriu, meio de lado. E então foi ela quem falou:
— A verdade, Anderson, é que a gente já tinha notado.
— Notado?
— Sim — ela continuou, com aquela voz calma dela. — Você não olha pra mim como olha pras outras pessoas. E não é só uma vez ou outra. A forma como você me escuta, como às vezes tenta disfarçar quando está prestando atenção... eu percebi. E a Madalena também.
Assenti, sem saber muito o que dizer.
Madalena cruzou os braços.
— E olha, Anderson... muitos homens se interessam pela Suzy. Isso não é novidade. Ela é linda, inteligente, tem presença. E isso, pra uma mulher, é um campo minado. Ela já viu de tudo. Mas... o seu jeito foi diferente. Você não invadiu. Não assediou. Não se aproximou de forma desrespeitosa. Só... sentiu. E isso, por incrível que pareça, fez diferença.
Suzy continuou:
— Quando a Madalena me contou o que você disse, eu fiquei surpresa, claro. Mas também curiosa. Porque eu te admiro. Sempre achei você um homem íntegro. E saber que você pensou tanto antes de falar... me deixou com vontade de ouvir mais.
Eu respirei fundo. Senti as mãos suarem, mas também um certo alívio.
— Eu não queria parecer um invasor. Nem um homem tentando comprar atenção. Só... senti. De um jeito que não sei explicar. E se isso soa estranho vindo de mim, eu entendo. Mas era preciso dizer. Porque guardar isso começou a me consumir.
Suzy assentiu, pensativa. Não sorriu, mas também não desviou os olhos.
— Eu não sei onde isso vai dar, Anderson. Mas acho que a gente pode conversar. Com calma. Ver até onde faz sentido.
Madalena se inclinou um pouco pra frente, séria como uma mediadora que coloca limites sem usar força.
— E tudo será com clareza, transparência e cuidado. Pra ambos. Ninguém vai brincar com ninguém aqui. Estamos entendidos?
Assenti.
— Mais do que nunca.
Naquele momento, percebi que não era mais sobre desejo ou impulso. Algo que talvez não tivesse nome ainda, mas que começava ali, com honestidade, olhos nos olhos — e três pessoas comprometidas em não machucar.
No entanto percebia algo estranho no ar. Não era só nervosismo. Era uma certa... estrutura. Como se tudo já estivesse planejado. Como se aquela conversa já tivesse sido ensaiada. Suzy estava com o mesmo olhar doce, a mesma voz suave — quase infantil, até — mas havia algo por trás. Um cálculo. Um controle.
Madalena começou, formal como sempre, quase como se estivesse conduzindo uma assembleia de sócios.
Suzy sorriu. Aquele sorriso suave, quase tímido, que sempre me desmontava. O que veio depois me pegou de surpresa.
— Anderson, antes de tudo, quero dizer que gosto de você. Sinto uma simpatia sincera. Você é mais agradável que o Caio, com quem estou agora. Mais gentil. Mais leve de lidar. Pra ser honesta, eu não gosto muito dele. Nunca gostei tanto assim. É mais... circunstancial.
Fiquei sem reação por um segundo.
Ela continuou, doce como sempre, como se estivesse pedindo açúcar no café:
— Mas, pra que a gente possa seguir conversando, eu preciso de algumas garantias. Condições claras. Porque, pra eu sair de onde estou, não posso correr riscos. Você entende, né?
Minha mente travou por um instante. Eu esperava sinceridade, até franqueza. Mas não com essa lógica. Não com essa... estrutura negocial. Eu, que sempre fui frio, analítico, calculista nos negócios, de repente me vi como o mais emotivo da sala.
— Que tipo de condições? — perguntei, tentando esconder o incômodo na minha voz.
Madalena entrou de novo, como quem assume o controle da negociação:
— Suzy é jovem, mas não é ingênua. Ela sabe o que precisa pra se manter, pra continuar estudando, se vestindo do jeito que se apresenta, se deslocando, vivendo com a dignidade que conquistou. E ela quer saber se você pode — e quer — oferecer isso. Sem rodeios. Como um acordo honesto entre adultos.
Suzy assentiu.
— Eu não tô vendendo afeto, Anderson. Eu quero ter liberdade. Quero poder ser tratada com respeito, com cuidado. Mas também quero segurança. Estabilidade. Eu não tô pedindo um castelo, só que as bases estejam claras.
Era surreal. Aquela menina que eu via como doce, agora se mostrava firme como aço. E Madalena, ao lado, apenas confirmava. A frieza não era de desprezo. Era de método.
E eu, ali no meio, me perguntava: Era isso que eu queria? Eu estava pronto pra entrar nesse tipo de relação — consciente, transparente, mas tão... crua?
A verdade é que, por mais que meu coração estivesse exposto, por mais que eu tivesse me preparado para uma conversa emocional, o que recebi foi um contrato emocional corporativo. Racional. E eu, que sempre me achei o mais racional da sala, fui quem primeiro sentiu a estranheza do que estava sendo dito.
Eu respirei fundo. Tentei me recompor. Ainda não era hora de responder. Era hora de entender.
Quando achei que a conversa já tinha me virado do avesso, Suzy tirou um pequeno caderno da bolsa. Um caderno. Como se fosse apresentar os tópicos de uma pauta corporativa. Sorriu gentilmente, quase envergonhada — mas não hesitante.
Continua ...