30- Dia De Cão

Um conto erótico de Lauro Costa
Categoria: Gay
Contém 3885 palavras
Data: 02/05/2025 00:13:51
Assuntos: Gay

NARRADO POR LEÔNIDAS.

Um bom dia, pra mim, costumava começar com café preto, silêncio e alguma mentira que me deixasse seguir em frente. Mas naquele dia, ele começou com a bochecha colada no capô de uma viatura.

O céu sobre o Jardim Europa ainda estava pálido quando bateram à minha porta como se estivessem caçando um monstro. Não tinha imprensa, não tinha plateia. Só o frio metálico das algemas e o hálito impessoal da lei. Um dos policiais me agarrou pelo braço, o outro me empurrou contra o carro. A seda do meu roupão deslizou pelo ombro. O glamour se desfez ali mesmo, no concreto da minha própria calçada.

Na delegacia, fui jogado num cubículo mal ventilado como um resto de gente. Quando Plínio entrou, percebi que a situação ia de mal a pior. A mesma cara mal comida, o mesmo desejo recalcado escorrendo pelos olhos. Terno amarrotado, pulso firme e rancor antigo.

— Leônidas Maia... Nunca pensei que ia te pegar assim, quietinho.

— Vamos facilitar isso pra você, Leônidas. A arma estava com as suas digitais. E a sua irmã está morta. Quer começar explicando isso?

Cruzei os braços, as algemas rangendo.

— Não vou dizer uma palavra sem minha advogada.

Plínio andava em círculos ao meu redor como se estivesse num strip-tease ao contrário, tirando meu silêncio à força. Me encarou de cima a baixo, com aquele olhar que ele achava discreto. Não era.

— Bonito você. Mesmo sujo e com esse cabelo desgrenhado. Deve ter sido difícil resistir a tentação de acabar com a irmãzinha perfeita, hein?

— Você está me interrogando ou me medindo, Plínio? — eu cuspi. — Porque tá começando a parecer que quer me comer mais do que me prender.

Ele deu um passo em minha direção, dedo em riste.

— Você não sabe com quem está lidando.

— Ah, eu sei muito bem. Você é o mesmo delegado frustrado que tentou me levar pra cama anos atrás, lembra? Só que eu não quis. E, spoiler: não vai rolar agora também.

O silêncio cortou o ar. Ele ficou vermelho. Eu, aliviado.

— Você vai se arrepender de falar assim comigo — ele sussurrou, entre os dentes.

— E você vai se arrepender de ter me prendido sem prova nenhuma. Eu sou Leônidas Sampaio. Tenho mais advogados do que você tem cueca limpa. E eu vou arrancar tua farda no tribunal por assédio, abuso de autoridade e por essa fantasia ridícula de dominador reprimido.

Ele bateu na mesa.

— Você é o principal suspeito da morte da sua irmã! Está entendendo? Essa arrogância não vai te proteger por muito tempo.

— Então me acusa. Me leva pra julgamento. E se prepara pra cair junto. Porque se você acha que sou só um rostinho bonito com problemas familiares, está mais enganado do que a Luíza ao confiar em Felipe.

Márcia entrou na sala da delegacia com o blazer meio amassado, os olhos firmes como se quisesse me bater e me abraçar ao mesmo tempo. Quando a porta fechou atrás dela, eu finalmente respirei.

— Finalmente alguém com cérebro nesse lugar — murmurei.

Ela ergueu uma sobrancelha, sem humor.

— Não começa. Tô aqui pra te tirar dessa, não pra massagear seu ego. Alexandre tá bem. Fica calmo.

— Ele ficou com… com… — e então franzi a testa, tentando puxar da memória um nome que sempre me escapava — tua… aquela moça… tua namorada… como é mesmo?

Márcia cruzou os braços, o corpo inclinado pra frente, e me lançou aquele olhar que ela costumava usar quando eu esquecia o prazo das reuniões.

— Tatiane, Leônidas. Ta-ti-a-ne. A mulher que você esquece o nome desde o primeiro Natal em que te apresentei.

— Eu ia falar Talita.

— Ia nada. Você ia dizer Tarsila, ou Telma, ou sei lá o quê.

— É que eu tô com a cabeça cheia. Acusado de matar minha irmã, preso sem nem um café decente, e ainda me cobram nomes? Isso é abuso psicológico.

Ela não riu. Mas os olhos suavizaram.

— Tatiane ficou com o Alex. Ele me ligou chorando, achando que tinham te matado. Você tem noção do que esse menino já passou? Você é tudo o que ele tem, Leo.

A garganta apertou. Apoiei os cotovelos na mesa, massageando as têmporas.

— Eu sei. Por isso você tá aqui. Por ele… e por mim. Obrigado, Márcia.

— Agradece me dando algo concreto. Vamos conversar com o delegado. Você vai me contar tudo. E quando digo tudo, quero dizer tudo mesmo.

— Inclusive que eu passei a noite inteira transando com o Aldo?

Ela bufou, jogando a cabeça pra trás.

— Pelo amor de Deus, Leônidas…

— Tá, desculpa. Foi mais forte que eu. Mas eu tenho as gravações. As câmeras de casa gravaram tudo.

Ela piscou devagar. Depois assentiu.

— Aí sim, meu bem. Agora estamos começando a trabalhar.

Márcia ajeitou os punhos da camisa, respirou fundo e deu aquele sorrisinho de quem sabe que vai colocar homem arrogante no lugar. Eu segui atrás, algemado, mas de cabeça erguida.

Plínio nos esperava na sala de interrogatório com a paciência de quem já tinha me condenado no café da manhã.

— Voltamos, delegado — disse Márcia com a polidez forçada de quem pisa num campo minado com salto agulha.

— Meu cliente vai prestar depoimento agora. E vai esclarecer muita coisa.

Plínio ergueu os olhos do papel. O terno estava amassado, a gravata torta. Parecia mais cansado do que perigoso, mas o ego dele ainda brilhava como uma arma destravada.

— Ótimo. Espero que não invente outra desculpa de novela mexicana.

Me sentei. Olhei pro espelho falso. Sabia que tinham outros assistindo. Sempre tem.

— A arma usada no assassinato da minha irmã era da casa. Uma pistola que meu pai mantinha no cofre da sala. Eu e Luíza sabíamos a senha.

Ele não respondeu. Márcia aproveitou o silêncio.

— Leônidas passou a noite toda em casa. Ele tem câmeras internas. Pode provar isso.

— E por que só agora menciona isso? — Plínio se inclinou como quem fareja mentira.

— Porque meu cliente não queria envolver uma terceira pessoa. Mas eu o convenci de que estamos além da fase do pudor.

Plínio fez menção de falar, mas foi interrompido por um alvoroço no corredor. Gritos, passos apressados, vozes exaltadas.

A porta se escancarou. Aldo.

Suado, descabelado, com a camisa amarrotada e os olhos febris. Parecia mais um gladiador em crise do que um lutador aposentado.

— Eu quero depor! Eu tava com o Leônidas! A noite toda! — berrou, ignorando os policiais que tentavam contê-lo. — Ele não matou ninguém! Ele tava comigo, porra!

A sala congelou.

Márcia suspirou, murmurando um “ai, caralho” quase maternal. Plínio arregalou os olhos.

— Isso aqui é um interrogatório, não um circo!

— Então me bota na jaula também — rosnou Aldo, olhando pra mim com uma força estranha. — Mas ele não matou a irmã. Eu tava com ele. E tem câmera, tem gravação, tem tudo.

O silêncio que se seguiu pareceu durar uma década.

Foi então que o telefone tocou. Um dos agentes atendeu, assentiu, e sussurrou algo para Plínio. O delegado mordeu o lábio inferior, irritado.

— As imagens confirmam. Leônidas estava em casa. A noite inteira.

Me levantei, ainda algemado, e encarei Plínio de frente.

— Vai me soltar ou quer que eu processe o estado por cárcere ilegal, difamação, abuso de autoridade e por essa sala estar com cheiro de mofo?

Márcia sorriu, satisfeita. Plínio bufou e fez sinal para o policial me soltar.

Quando as algemas caíram, esfreguei os pulsos. Aldo ainda estava na porta, parado, respirando fundo. Não nos tocamos. Não ali.

Mas os olhos dele diziam tudo.

E os do repórter plantado na recepção também. O mesmo que sorriu maligno quando ouviu a frase “ele tava comigo a noite toda”.

No dia seguinte, a manchete já me aguardava:

“Leônidas: Uma Noite de Luxúria Enquanto Sua Irmã Era Assassinada”

A cidade inteira leu. E, por um instante, São Paulo inteira soube com quem eu fui dormir.

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Quando cheguei em meu apartamento, passei por Tatiana e fui direto para o quarto para tomar um banho, mas Alexandre entrou no quarto sem bater. Tinha esse jeito de gato de rua — leve, silencioso, sempre pronto pra se enfiar onde não devia.

— Você matou ela mesmo como estão falando ? — ele perguntou, do nada, com os olhos marejados.

— Não matei, Alex. — Sentei na beira da cama. — A Luíza foi assassinada.

— E quem foi ? E por quê ? Corremos perigo ?

— Não sabemos, mas fique tranquilo, contratei seguranças para nós proteger.

Ele encostou na parede e cruzou os braços.

— E a gente vai ter que ir no velório?

— Vamos, sim.

— Mas por quê? Ela te odiava. E a mãe dela te odeia mais ainda.

— Eu sei. Mas... mesmo quando a gente odeia alguém, a gente pode querer se despedir. E eu não odeio a Luíza.

— Eu era chamado de bastardo por ela e ainda assim, fui criado nesse barril de pólvora chamado família. A gente aprende a sobreviver com o que tem.

— Não é isso... — comecei, me abaixando até ficar na altura dos olhos dele. — Eu amo o Aldo. Isso é verdade. E ele também me ama. Mas às vezes, Alexandre, amar alguém não significa que a gente vai ficar com essa pessoa.

— Mas a Camila disse que você é o motivo de tudo. Que você tá fazendo o pai dela se afastar.

— Camila tá com raiva. E ela tem todo direito de estar. Eu também já tive. Ainda tenho, às vezes. — respirei fundo. — Mas o que aconteceu entre mim e o Aldo... não é culpa de ninguém. Aconteceu porque a gente se encontrou num momento quebrado. Porque ele me viu. E eu vi ele. E a gente se segurou, tentando não afundar.

Ele me olhou, finalmente. O rosto estava vermelho, mas os olhos estavam firmes.

— Ele vai voltar pra mãe da Camila?

— Eu acho que sim. — admiti, sentindo minha própria garganta fechar. — E é melhor assim. Pra ele. Pra Camila. E pra mim também.

— Você vai parar de ver ele?

— Já parei, Alex.

O silêncio entre nós era denso como chumbo. Ele engoliu em seco.

Alex olhou pro chão, pensativo.

— Você vai mesmo continuar comigo?

— Eu sou seu pai, Alexandre. Isso não muda. Nem com morte, nem com mentira, nem com a Camila me odiando.

Ele veio até mim e me abraçou de lado, com aquela vergonha típica dos meninos que já se feriram demais.

— A gente vai no velório amanhã. Mas depois... a gente segue. Juntos.

— Você promete?

— Prometo.

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Naquela noite Roberto me visitou em casa. Aproveitou para levar o convite para a inauguração do centro esportivo em Paraisópolis, por motivos óbvios deixei o projeto por causa de Aldo, mas Roberto fazia questão da minha presença. Roberto tentou me convencer a aceitar a proposta de Miguel. Recusei. Tinha outros planos...

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O velório acontecia na capela mais luxuosa do cemitério do Morumbi. Um lugar feito para acomodar tragédias com requinte e ar-condicionado. Chegamos discretamente. Eu com um paletó escuro emprestado de Roberto, Alexandre segurando minha mão com mais força do que eu esperava.

A primeira coisa que senti foi o cheiro forte de flores caras. A segunda, os olhares. Eles me atravessavam como lâminas frias. Alguns cochichavam. Outros apenas viravam o rosto. E, lá na frente, ao lado do caixão, estava ela.

Renata.

A mãe que ainda acreditava na fantasia da filha perfeita. A viúva perpétua de um casamento falido. Os olhos inchados de dor. O luto dela era verdadeiro. Mas o ódio também.

Quando me aproximei, com Alexandre do lado, Renata saiu de perto do caixão e veio direto até mim, como uma tempestade de preto e joias.

— Você tem coragem de aparecer aqui? — sibilou entre os dentes. — Você... assassino.

— Eu não matei a Luíza, Renata. — disse, tentando manter o tom baixo. — E você sabe disso.

— O que eu sei é que ela morreu por sua causa. Foi incriminou ela, que a coitada teve que se sujar pra se proteger, e no fim você destruiu tudo. A FAMA, o Marcelo... até a nossa família!

— Renata, por favor. O Alexandre está aqui. — Márcia tinha se aproximado. Tentava conter o barraco, mas não havia mais como.

Renata me olhou como se quisesse cuspir no meu rosto. Mas se conteve.

— Você devia ter sido enterrado no lugar dela. — disse, com a voz trêmula. — É você quem merecia estar naquele caixão.

Ela se afastou, voltando aos prantos para perto do caixão. Um grupo de jornalistas do lado de fora tentou captar imagens, mas os seguranças os mantiveram afastados.

Eu fiquei ali, paralisado. Meu pai, o Marcelo, só ficou me encarando e não disse nada. Não fez nada. Como sempre.

Alexandre me puxou levemente pela manga.

— A gente pode ir embora?

Assenti. Nem precisei pensar.

Enquanto saíamos, vi Miguel do outro lado do salão, conversando com um empresário cliente da FAMA. Quando nossos olhos se cruzaram, ele apenas levantou uma taça de champanhe fúnebre e me deu um sorriso.

Era isso. O fim de uma era. O fim oficial da minha família.

Luíza estava morta.

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O restaurante era refinado demais pro meu humor daquela semana. Toalha branca, garçons silenciosos, o tipo de lugar onde ninguém grita nem quando perde tudo. Miguel já estava lá, claro. Terno escuro, drink intacto, e aquele sorrisinho que misturava poder com tédio.

— Chegou — ele disse, como quem anuncia um prêmio ou uma sentença.

Sentei sem cumprimentos.

— E então? — ele foi direto. — Já decidiu?

— Já.

— Vai aceitar?

— Não.

Ele riu com o nariz, ajeitando os punhos da camisa como se eu tivesse contado uma piada boa demais pra minha aparência.

— Vai recusar um salário alto, escritório próprio, verba ilimitada e meu charme?

— Especialmente seu charme.

Ele se encostou na cadeira, observando meu rosto como se esperasse um blefe.

— Vai fazer o quê, Leônidas? Voltar pra FAMA? A FAMA está à venda. Marcelo perdeu o controle, e Luíza... bem... — ele parou por respeito, ou por estratégia.

— Não vou voltar pra FAMA.

— Então?

— Miguel, você não precisa saber de tudo. Perder o controle é libertador.

— Você vai abrir algo seu?

Dei um gole demorado no vinho. Não respondi. Deixei o silêncio trabalhar por mim.

— Eu te conheço. Você tá tramando. — Ele sorriu. — Tem nome?

— Tem. Mas você vai odiar.

— Ótimo. Isso me instiga.

Inclinei-me sobre a mesa, devagar.

— Miguel, eu sobrevivi à FAMA, à Luíza, ao meu pai e ao seu ego. Eu posso muito bem andar sozinho. E se der errado... bom, pelo menos não vai ser com você segurando minha mão.

Ele não respondeu de imediato. Depois soltou:

— Se você mudar de ideia...

— Eu não mudo. Eu me reinvento.

Pedi a conta. Ele quis pagar. Recusei. Não era sobre dinheiro. Nunca foi.

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A pizza estava murcha. Alexandre dormia encostado no braço da poltrona com um saquinho de Doritos tombado no colo. A TV murmurava alguma reprise de reality show onde ninguém parecia mais desesperado do que eu.

Márcia apareceu na porta da cozinha com uma cerveja na mão e Talita, Tayene , Tamara sei lá, sempre esqueço, logo atrás, usando uma blusa do Iron Maiden que claramente era minha.

— E aí, Leônidas? Já decidiu se vai aceitar a proposta do sugar daddy?

— Miguel não é meu sugar daddy — resmunguei, esticando as pernas.

— Ele tem mais de quarenta e quer te dar um emprego. A definição tá quase batendo.

A namorada de Marcia riu e se jogou ao meu lado.

— E aí, já contou pra ela? — perguntei, olhando para Márcia.

— Contar o quê?- disse Márcia

— Que eu vou abrir uma nova empresa.

Márcia arregalou os olhos.

— Como assim? Vai abrir uma empresa?

— Sim. De gerenciamento de carreira, marketing, imagem pública… O que eu já fazia, mas agora com mais deboche.

Talita levantou uma sobrancelha.

— Deboche?

— O nome será QUIMÉRA.

— Você tá zoando — Márcia disse, tentando não cuspir a cerveja.

— Porque é multifacetada, aguenta pressão e é feroz.

— Isso é o slogan? — Talita perguntou.

— Ainda não. Mas podia ser, né?

Márcia me olhou com aquele misto de cansaço e cumplicidade que só ela sabia equilibrar.

— Você quer que eu trabalhe com você ?

— É claro. Ninguém entende mais de rebranding de macho problemático do que a gente.

— Uma empresa gerenciada por uma lésbica comunista e um marketeiro promiscuo .— Tatiane enumerou, divertida.

— Perfeita pra esse país — eu disse

Márcia cruzou os braços, me olhando como quem já sabia que ia aceitar, só queria ouvir eu implorar.

— Ok, Quimera. Mas você vai pagar em dia ou vai pagar em drama?

— Drama. Sempre.

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O interfone tocou às 22h47. Estávamos desmontando caixas da mudança quando Márcia atendeu. Eu vi a expressão dela mudar — do tédio para o alerta.

— Leônidas... é ele.

— Quem?

— O cavalo sem noção.

Aldo.

Suspirei. Fingi que não ouvi.

— Ele tá lá embaixo, na portaria. Quer subir.

— Manda ele embora.

— Ele não quer ir. Está gritando com o porteiro. Quer falar com você “nem que seja a última coisa que ele faça”. Palavras dele.

— Jura que ele tá fazendo cena?

— Quer que eu peça reforço?

— Quero que ele suma da minha vida.

Alexandre apareceu na sala com uma bolacha na mão.

— É o Aldo?

— É — respondi.

— Vai falar com ele?

— Não. Ele teve a chance dele. Teve mil chances. Agora ele vai aprender o significado de “limite”.

Márcia olhou pra mim e não disse nada. Só pegou o celular e mandou mensagem para a empresa de segurança privada. Trinta segundos depois, o interfone tocou de novo. O porteiro anunciou, quase sem graça:

— Senhor Leônidas... ele tá tentando forçar o portão. Tá dizendo que vai subir de qualquer jeito.

— Diga que, se ele insistir, vou chamar a polícia.

— Mas ele é famoso... é o Aldebaran Rocha...

— E eu sou o Leônidas Maia. E tô dizendo: se ele quebrar o portão, ele passa a noite na delegacia.

Márcia desligou. O silêncio depois da ligação foi um alívio doído.

Eu me sentei no sofá, respirei fundo. Alexandre me olhava, tenso.

— Você vai mesmo deixar ele assim?

— Ele me deixou pior. E eu tô cansado de sangrar por quem não sangra por mim.

O interfone não tocou mais.

Aldo havia entendido.

Ou talvez não. Mas agora... não era mais problema meu.

FIM DO RELATO DE LEÔNIDAS.

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Ainda naquela noite...

O hotel era ordinário, escondido numa ruela poeirenta perto da fronteira. O ar-condicionado fazia mais barulho que efeito, e o ventilador do teto rodava com uma lerdeza preguiçosa. Vicente estava sentado na beira da cama, camisa de linho aberta até o peito, com uma pasta de couro sobre os joelhos. Tinha o olhar calmo de quem já organizou muitos destinos sem retorno.

Felipe entrava e saía do banheiro a cada três minutos, enjoado. Tinha os lábios secos, as olheiras fundas, o corpo tremendo em pequenas ondas. Olga, ao contrário, parecia firme. Usava um vestido justo, colado demais para a situação, e mascava chiclete com raiva. Mas seus olhos não disfarçavam o pânico.

— Já está tudo pronto. — Vicente abriu a pasta, revelando três passaportes, envelopes de dinheiro, e uma fileira de saquinhos plásticos envoltos em filme PVC. — O trajeto é o mesmo de sempre. Entram por Leticia, de lá pegam a lancha até Puerto Asís. Daí, cada um vai pro seu lado.

Felipe olhou para os saquinhos. Engoliu em seco.

— Eu... não sei se consigo. Engolir isso... é... perigoso.

Vicente não riu. Só pegou um dos pacotinhos e o ergueu à luz fraca do abajur.

— Perigoso é ficar. Você acha que a polícia não vai rastrear os dois? Você quer ser pego com ligação direta à morte da Luíza, e à droga do Freitas?

Felipe sentou no chão, a cabeça entre os joelhos. Olga se aproximou, abaixando-se diante dele.

— Para de drama. Você já enfiou coisa pior em lugares piores. — Ela disse, sussurrando com um sarcasmo cansado. — A gente se mete nessa por tua causa, Felipe. Agora engole.

Vicente fechou a pasta.

— Vão dormir. Amanhã, às seis da manhã, começa a travessia. Olga leva as malas com as roupas de disfarce. Felipe, você já começa o jejum hoje. Nada de comida sólida. Só água e banana amassada até o embarque.

— E depois?

— Depois? Depois, vocês desaparecem.

Felipe levantou o rosto.

— E Leônidas?

Vicente sorriu de lado. Um sorriso de quem sabe mais do que fala.

— Se ele for esperto, vai manter a boca fechada. Se não for... Bom, nós daremos um jeito.

Ele apagou o abajur.

— Durmam. Essa é a última noite com nome verdadeiro.

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INTERIOR – APARTAMENTO DE LEÔNIDAS – NOITE

A cidade vibrava ao fundo, um zumbido constante por trás da fina cortina de chuva que riscava os vidros do apartamento de Leônidas. A iluminação suave deixava tudo em penumbra, exceto a tela do notebook sobre a mesa e o reflexo amarelado do vinho na taça esquecida.

Márcia falava ao telefone perto da janela, a voz baixa e carregada de tensão. Leônidas a observava em silêncio, afundado na poltrona, com o olhar fixo nela como se já soubesse que não seriam boas notícias.

Ela interrompeu a conversa com um breve e seco:

— Me envia. Agora.

Desligou. Voltou-se para ele, ainda com os dedos apertando o celular como se estivesse segurando uma granada.

— O que foi? — Leo perguntou. — Me conta que tipo de maldição ainda paira sobre mim.

Ela não sorriu.

— Era sobre o carro. A sabotagem. Eu continuei investigando, mesmo depois que a polícia resolveu deixar pra lá.

Leônidas ajeitou-se na poltrona.

— A polícia focou nos materiais achados na casa do Felipe. No cofre, nos papéis. Ninguém deu atenção ao mecânico que mexeu no meu carro. Sumiu logo depois. Simples demais, né?

Márcia assentiu.

— Pois é. E agora ele apareceu. Em Londres. Estava usando outro nome, tentando passar despercebido. Mas o Lúcio achou ele.

— Lúcio?

— Um dos meus associados. Discreto, eficiente e com as conexões certas. Seguiu o rastro do dinheiro. Descobriu que o mecânico tinha passagem por fraude, adulteração de peças, e outras porcarias. Se a polícia inglesa pegasse ele, seria cadeia certa.

— E o que ele fez?

— Cedeu. Confessou que sabotou seu carro. E disse que foi pago pra isso. Suborno puro.

Leônidas franziu a testa, desconfiado.

— Claro que disse. Quando ameaçado de prisão, qualquer um inventa uma história.

— Ele tinha seguro. Gravou a conversa com o mandante.

Ela abriu o notebook. O som de uma notificação preencheu o cômodo. Um novo e-mail com um vídeo anexado.

Antes que ela clicasse, Leônidas se inclinou.

— Espera. E se for falso? Editado? Ele pode ter gravado qualquer idiota falando, ou manipulado o áudio… Eu não vou cair nessa tão fácil.

— Eu pensei o mesmo. Já mandei o vídeo pra análise. Lúcio conhece gente que faz isso com nível forense. Em algumas horas, saberemos se é real ou não. Mas Leo… eu vi o vídeo. E o que meu instinto diz é que é real.

Leônidas assentiu, tenso. Márcia clicou no play.

A imagem era de baixa qualidade. Um galpão. Som abafado. O mecânico, nervoso, com um boné mal colocado, falava com alguém fora do quadro. A voz que respondia era firme, calculada.

— Quinze mil. Metade agora, metade depois. Ninguém pode saber. Ele não pode sair vivo da Rebouças. Mexe só o bastante pra parecer acidente.

O mecânico engoliu seco e respondeu com um “tá certo”. A filmagem tremia. O rosto dele era visível, a tensão evidente.

Fim da gravação.

Márcia fechou o notebook lentamente.

— Está aí. A prova. Ele foi pago. Subornado.

Leônidas estava imóvel. Os olhos perdidos num ponto qualquer da parede, como se estivesse vendo outra coisa. Uma lembrança, talvez. Um cálculo frio.

Depois, disse:

— Se isso for real... alguém cruzou uma linha que não tem mais volta. Irei trazer o inferno para terra.

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