O sol começava a sair quando acordei. O Jack estava do meu lado. A sua respiração era tranquila e profunda. Dormi agarrado ao braço dele. Depois do ocorrido de ontem, não achei que fosse dormir tão bem. Talvez não tivesse se o Jack não estivesse ali.
Acariciei o braço dele, cheio de pelos, pele macia. Ele tossiu, então, deixei-o em paz. Me sentei na areia e observei ao redor. Algumas pessoas já tinham acordado também.
Apesar do acontecimento desolador, o cenário era lindo. A brisa, o mar, o céu. Um lugar paradisíaco.
— Bom dia.
— Bom dia, Jack.
Ele sentou ao meu lado.
— Como estão as suas costas?
— Bem. Só dolorido, mas eu estou bem. Você fez um ótimo trabalho.
— Que bom. Obrigado.
— Ué. Sou quem agradeçe.
Que sorriso lindo.
— Você está sentindo esse cheiro? É café? — indaguei.
— Parece que sim. Vou ver se consigo um pouco pra gente. Não saia daqui.
Que homem bom, cuidadoso. Não achava que existiam pessoas assim. Não demorou muito e ele voltou com alguns biscoitos e dois copinhos de plástico com café.
— Café da manhã? Humm. Obrigado, Jack.
— Por nada.
Ao tomar o café, não demorou para chegar uma mulher morena e de olhos azuis. Ela e Jack trocaram sorrisos. Pareciam já se conhecer.
— Oi. Sou a Kate.
— Eu sou o Donnie.
— Jack, podemos conversar?
— É claro, Kate.
Sim, se conheciam.
Imaginei qual seria o assunto, que não poderia ser dito ali comigo. Mas em alguns minutos eu saberia.
— O que ela queria? — perguntei ao Jack, quando ele voltou.
— Mais tarde vamos entrar na mata, vamos ver se conseguimos encontrar a cabine do avião.
— Mas e aquele barulho de ontem? Ninguém sabe o que foi. Não é um tanto arriscado?
— Sim. Mas temos que fazer alguma coisa. Temos que tentar.
— Certo. Então, eu vou junto.
— O quê? Não. Aqui é mais seguro. Você fica.
— Jack, eu vou junto. Eu quero ajudar.
Ele fez uma ligeira pausa e disse:
— Está bem — Sorriu.
— Aliás, Jack. o resgate ainda não chegou.
— Pois é. Por isso, vou te pedir um favor.
Jack me levou até um homem caído no chão. Ele tinha um estilhaço do avião cravado na barriga. A cabeça estava enfaixada.
— Ele pode acordar ou ficar se mexendo muito. Você segura ele pelos ombros, tá?
Assenti.
E então, Jack esterelizou as mãos e retirou o fragmento de metal. De repente, o homem despertou por um momento.
— Onde está ela? Onde está ela? — disse ele, com as mãos seguras na camisa do Jack.
E eu tentava conter o homem.
— Ela quem?
O homem desmaiou sem responder o Jack.
— Você encontrou antibiótico? — indaguei.
— Sim. Tive que entrar na cabine do avião.
— Lá dentro?
— Lá dentro.
Os mortos estavam todos lá.
Ao terminar de costurar o corte, Jack enfaixou a barriga do feriado com uma atadura — cobrindo a sutura. Depois pois um comprimido na boca do homem e tentou fazê-lo engolir com um pouco de água. Ele tossiu muito, mas conseguiu tomar.
— Ele vai ficar bem?
— Eu espero que sim, Donnie. Mas, mesmo com esse antibiótico, é um ferimento muito grave para se curar assim. Bom, nessas condições... Vamos torcer para que se recupere. Se a barriga dele ficar rígida, significa que o antibiótico não está funcionando.
— Ele vai ficar aqui jogado? — indaguei.
— Não. Nós vamos tentar fazer uma tenda pra ele.
— Nós?
— É, nós — Jack riu. — Vamos fazer ali do lado. Você me ajuda com o material?
— Ajudo.
E, enquanto colhiamos o material, eu aventurei:
— Podemos fazer uma tenda pra gente também, você não acha?
— Claro. Podemos sim.
Usamos lona como cobertura e outros pedaços do avião para fazer a tenta. Depois, colocamos o homem lá dentro.
Algumas pessoas já tinham montado abrigos, claro, não eram grande coisa. Usaram o que conseguiam.
Tudo pronto, então, era de partir. Pegamos alguns mantimentos, depois fomos encontrar a Kate para irmos à floresta.
— Está pronta?
— Estou, Jack — respondeu Kate.
— Ouvi diz que vocês vão procurar a cabine do avião. Eu também quero ir — disse um rapaz loiro, ao chegar correndo até nós.
Ele não estava com uma cara muito boa. Não deve ter pregado o olho, e parecia estar com frio.
— Não sei se é uma boa ideia, Charlie — Jack contestou.
— Quatro é melhor que três — Kate falou e sorriu.
Jack pensou por quase um minuto e falou:
— Tá legal. Vamos.
E entramos na mata tropical.
Jack e Kate caminhavam lado a lado, enquanto eu estava com o Charlie, um pouco atrás.
— Sabe, eu tenho a impressão que te conheço — falei.
Charlie sorriu e disse:
— Sou de uma banda chamada Drive-Shaft. Já ouviu falar?
— Talvez.
E Charlie começou a cantarolar.
— É. Eu já devo ter ouvido sim — falei. — A propósito, eu sou o Donnie.
— Sou o Charlie.
Um pouco a frente, Kate e Jack pararam. Eles olhavam para cima, para um homem pendurado nos galhos de uma árvore. A pele dele estava com cor de morte.
— Devemos estar perto — disse Jack.
E continuamos andando. Mais um pouco e notamos que alguns galhos das árvores estavam quebrandos e haviam alguns destroços pelo caminho. Mais a frente estava a cabine do avião. Estava com o bico para cima, pendendo numa árvore.
Que bom que achamos porque a chuva estava grossa. Logo, fomos averiguar a cabine do avião.
— Me dê a sua mão, Donnie.
— Obrigado, Jack.
Foi difícil difícil escalar lá dentro, nos agarramos em alguns bancos e no que podia. E enfim, chegamos até os controles do avião.
O estava morto, mas tinha o piloto.
— Ele está vivo? — perguntei.
Jack checou o pulso dele, mas não seria necessário, pois o homem acordou repentinamente.
Jack conversou com ele.
— Perdemos a comunicação antes de fazer o desvio. Eles não sabem onde procurar — disse o piloto. — E o rádio não funciona. Eu já tentei.
— Rádio? — indagou Jack.
— Não funciona. Aqui, peguie.
Jack segurou o rádio e tentou usá-lo.
— Viu só. Tem algum tipo de inferência aqui. Precisam tentar em outro local.
— Vocês viram o Charlie? — Kate indagou. — Ele estava logo atrás da gente. Charlie!
Ela saiu da cabine para procurá-lo. Um minuto depois, encontrou ele. Ouvi as vozes deles:
— Onde estava, Charlie?
— No banheiro.
— No banheiro?
De repente, foi outra coisa que ouvimos. O mesmo estrondo de ontem. Estava perto, vindo até nós, parecendo arrancar as árvores.
— O que é isso? — indagou o piloto.
— Temos que ir — disse Jack.
— Mas o que é isso? — repetiu o homem.
Ele subiu no comando do avião, para sair pelas janelas da cabine.
— Por aí não. Vamos, por aqui — Jack tentou convencê-lo.
— Eu preciso saber o que é isso — insistiu o piloto. E saiu pela janela.
Depois, só ouvimos os gritos dele, enquanto saíamos o mais rápido possível dali. E corremos mata a dentro.
O Charlie prendeu o pé em um cipó e caiu. Eu corria ao lado dele.
— Jack! — chamei-o, para que ele viese me ajudar com o Charlie.
A Kate tinha sumido. Depois que soltamos o Charlie, este correu para um lado e eu segui com o Jack, por outro. O barulho rodeava a gente.
— Vamos, me dê a sua mão — disse-me Jack.
Corremos mais um pouco e chegamos em alguns arbustos cheios. Nos escondemos lá dentro. Jack ficou atrás de mim, meio que me protegendo.
A coisa passou por cima de nós, balançando as árvores. Não deu para ver o que era, não só por conta da chuva mas o terror tomou conta de nós. O aquela coisa fez com piloto não deve ter sido nada bom.
Mas, logo, a coisa sumiu.
A respiração quente do Jack batia na minha orelha esquerda. As mãos dele seguravam forte os braços. E o cheiro dele me sentir algo, uma sensação de prazer, de desejo. Era tão bom estar perto dele.
— Tudo bem, Donnie?
— Sim.
— Então vamos procurar a Kate e o Charlie.
Saímos dos arbustos e voltamos para o caminho onde havíamos nos separado.
A chuva parou.
A Kate e o Charlie já vinham em nossa direção. Então, voltamos para o acampamento na praia. Eu fui bem ao lado do Jack. Aliás, ele que estava ao meu lado o tempo todo. Atento ao caminho, vendo por onde era seguro passar, olhando para mim e sorrindo para mim de vez em quando.
Ali, naquela ilha, depois daquele desastre, naquele fim de mundo, eu estava feliz. Porque, bom... Acho que tinha encontrado o homem da minha vida.