Quando a porta finalmente se fechou e o último par de saltos se afastou corredor afora, a quietude me engoliu como um cobertor quente. Restamos só nós dois. Eu e ele. O homem de braços largos e olhos de bicho ferido, que não tirava os olhos de mim desde o segundo em que acordei.
Aldo puxou uma cadeira e se sentou devagar, o peso do corpo todo repousando nos cotovelos apoiados nos joelhos.
— Tá tudo bem? — perguntou com a voz grave, e baixa. Quase como se não quisesse que os outros soubessem que ele estava ali comigo.
— Eu... eu não sei. — Minha voz saiu como a de um menino. — Eles disseram que você me encontrou.
Ele assentiu, olhos presos nos meus.
— Eu vi teu carro capotar. Corri... te puxei da ribanceira. Chovia muito. Achei que você tava morto.
Fiquei em silêncio. O som da chuva parecia continuar vivo na minha cabeça. Tentei imaginar aquele momento, mas tudo que vinha era o cheiro da terra molhada e o gosto de sangue.
— Obrigado, Aldo.
O silêncio entre nós durou segundos longos. Até a maçaneta da porta girar mais uma vez.
Entrou um homem de camisa social arregaçada nos cotovelos, cinto policial à mostra, blazer pendurado displicentemente no ombro. Bonito. Alto. O tipo de homem que sabe que chama atenção e não faz questão de disfarçar. O sorriso veio antes da apresentação.
— Leônidas Maia, né? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Achei que fosse mais... loiro.
Aldo se levantou, se colocando entre mim e o estranho.
— Quem é você?
— Plínio Lopes. — Mostrou a carteira de policial, sem tirar o sorriso do rosto. — Delegado responsável pela investigação do atentado ao senhorzinho aqui. Vim fazer umas perguntas, se não for incômodo.
— Agora? — Aldo rosnou. — O cara acabou de acordar de um coma.
— Se não agora, quando? — Plínio respondeu sem perder o tom calmo. — A memória é como um balde com furo. A gente nunca sabe quando vai secar.
— Ele tá frágil — Aldo insistiu. — Dá pra esperar.
— Fragilidade me excita. — Plínio piscou pra mim, como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Mas prometo ser delicado.
Senti meu rosto esquentar. Meu coração acelerou, mas não de medo.
Aldo deu um passo à frente, o maxilar trincado.
— Você tá tirando com a minha cara?
Plínio soltou um riso curto.
— Tô fazendo meu trabalho. Mas se quiser conversar lá fora, campeão, a gente resolve.
— Quero que você vá embora.
— Eu também queria muita coisa. Queria, por exemplo, saber por que o carro do Leo explodiu, por que ele tava fugindo, por que não tem câmera nenhuma funcionando naquela avenida no dia do acidente, e quem, dentro da casa dele, sabia pra onde ele ia. — Ele se virou pra mim. — E aposto que você também quer saber disso, né, Leozinho?
Aldo olhou pra mim. Pela primeira vez desde que acordei, ele parecia com medo. De mim.
Assenti devagar.
— Quero saber tudo.
Plínio sorriu, satisfeito.
— Então vamos conversar.
Plínio puxou a cadeira de canto com o pé e se sentou, cruzando as pernas como quem tinha todo o tempo do mundo. Abriu um bloquinho surrado e uma caneta Bic. A ponta estalou duas vezes antes de ele começar.
— Leônidas Maia... idade?
— Vinte e nove. — Falei sem pensar. E me assustei.
Plínio ergueu uma sobrancelha.
— Aparentemente, a memória seletiva está ótima.
Aldo pigarreou alto, mas eu sorri, tentando parecer tranquilo.
— É o que tá na pulseira do hospital.
Plínio riu. Fechou o bloco. Me olhou.
— Onde você estava indo naquela noite?
— Eu... não lembro.
— Tava fugindo de alguém?
— Eu não sei.
— Por que saiu correndo do ginásio em Paraisópolis?
Aldo arregalou os olhos e se adiantou.
— Como assim, ele saiu correndo?
— Tem uma câmera do outro lado da rua. Pegou tudo. O moço aqui parecia desesperado.
Aldo ficou pálido. Olhou pra mim como se tentasse ler o que nem eu conseguia mostrar.
— Eu não sei por que corri — sussurrei. — Só lembro da chuva. E de estar com medo.
Plínio inclinou a cabeça.
— Você desconfia de alguém?
— Não. Eu... não lembro de ninguém.
— E da sua irmã? Luiza?
Senti um calafrio, mas forcei um sorriso gentil.
— Ela é maravilhosa comigo. Disse que sempre fomos muito próximos.
Plínio anotou algo. E disse, quase sem olhar:
— Ela te odeia.
Aldo se remexeu na cadeira.
— Chega. Ele precisa descansar.
— Tá tudo bem — eu disse baixo. — Posso responder mais.
Plínio sorriu, satisfeito. Se levantou, guardou o bloco e se inclinou sobre mim. O hálito dele cheirava a café amargo.
— Você é bonito demais pra morrer queimado num carro. Sorte a sua que caiu pro lado certo da história. Ainda dá tempo de escolher se quer justiça... ou vingança.
E então ele piscou.
Aldo deu um passo à frente. Mas Plínio já estava abrindo a porta.
— Volto amanhã. Com sorte, você sonha com alguma coisa útil. Se não, volto só pra ver essa boca de novo.
Ele saiu, deixando o cheiro de chuva molhada e tensão no ar.
Aldo estava parado, com os punhos fechados, olhando pra porta como se quisesse quebrá-la.
— Não confia nele? — perguntei.
Ele me encarou. A raiva virou algo mais... preocupado.
— Não confio em ninguém.
E saiu, sem dizer mais nada.
Fiquei sozinho. O som da chuva ainda caía do lado de fora. E eu, fingindo ser alguém que não era, me perguntava quanto tempo conseguiria manter esse teatro antes de me afogar de vez na mentira.
A noite caiu silenciosa sobre o hospital, interrompida apenas pelo apito baixo dos monitores e a respiração pausada do quarto. O mundo ainda parecia enevoado dentro da minha cabeça — como se minha mente estivesse mergulhada em águas turvas e cada pensamento fosse um esforço para emergir.
Estava quase adormecendo, embalado pelas vozes suaves da equipe de enfermagem e pelas palavras gentis do homem que disse ter me salvado — Aldebaran. Estranho... por que meu coração disparava toda vez que ele entrava no quarto? Era medo? Era conforto?
Não sei. Só sei que, quando fechei os olhos, ouvi algo vibrar.
O som abafado de um celular — meu celular — em cima da cômoda ao lado da cama. A tela estava rachada, uma fenda passando exatamente sobre a imagem de fundo que eu não reconhecia. Uma rua talvez. Ou uma sombra. Era tudo tão confuso.
Peguei o aparelho com dificuldade. A mão ainda trêmula. Quando atendi, a linha ficou muda.
— Alô...? — minha voz saiu fraca.
Nada. Só o chiado de fundo e, então, silêncio.
Desliguei, respirei fundo e me virei de lado, puxando o lençol até o queixo. Devia ser engano.
Mas então, vibrou de novo.
Não era ligação dessa vez. Um SMS. A tela quebrada dificultava a leitura, mas eu forcei os olhos, o coração repentinamente acelerado.
《 "Você voltou. Cuidado com quem você confia. Nem todo salvador é santo."》
Engoli em seco.
Me virei devagar, como se alguém estivesse atrás de mim, observando.
Mas o quarto estava vazio.
Só eu, a chuva lá fora, e o som constante da minha própria dúvida crescendo dentro do peito.