18- No Limiar da Realidade

Um conto erótico de Lauro Costa
Categoria: Gay
Contém 1156 palavras
Data: 17/04/2025 22:53:08
Assuntos: Gay

Quando a porta finalmente se fechou e o último par de saltos se afastou corredor afora, a quietude me engoliu como um cobertor quente. Restamos só nós dois. Eu e ele. O homem de braços largos e olhos de bicho ferido, que não tirava os olhos de mim desde o segundo em que acordei.

Aldo puxou uma cadeira e se sentou devagar, o peso do corpo todo repousando nos cotovelos apoiados nos joelhos.

— Tá tudo bem? — perguntou com a voz grave, e baixa. Quase como se não quisesse que os outros soubessem que ele estava ali comigo.

— Eu... eu não sei. — Minha voz saiu como a de um menino. — Eles disseram que você me encontrou.

Ele assentiu, olhos presos nos meus.

— Eu vi teu carro capotar. Corri... te puxei da ribanceira. Chovia muito. Achei que você tava morto.

Fiquei em silêncio. O som da chuva parecia continuar vivo na minha cabeça. Tentei imaginar aquele momento, mas tudo que vinha era o cheiro da terra molhada e o gosto de sangue.

— Obrigado, Aldo.

O silêncio entre nós durou segundos longos. Até a maçaneta da porta girar mais uma vez.

Entrou um homem de camisa social arregaçada nos cotovelos, cinto policial à mostra, blazer pendurado displicentemente no ombro. Bonito. Alto. O tipo de homem que sabe que chama atenção e não faz questão de disfarçar. O sorriso veio antes da apresentação.

— Leônidas Maia, né? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Achei que fosse mais... loiro.

Aldo se levantou, se colocando entre mim e o estranho.

— Quem é você?

— Plínio Lopes. — Mostrou a carteira de policial, sem tirar o sorriso do rosto. — Delegado responsável pela investigação do atentado ao senhorzinho aqui. Vim fazer umas perguntas, se não for incômodo.

— Agora? — Aldo rosnou. — O cara acabou de acordar de um coma.

— Se não agora, quando? — Plínio respondeu sem perder o tom calmo. — A memória é como um balde com furo. A gente nunca sabe quando vai secar.

— Ele tá frágil — Aldo insistiu. — Dá pra esperar.

— Fragilidade me excita. — Plínio piscou pra mim, como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Mas prometo ser delicado.

Senti meu rosto esquentar. Meu coração acelerou, mas não de medo.

Aldo deu um passo à frente, o maxilar trincado.

— Você tá tirando com a minha cara?

Plínio soltou um riso curto.

— Tô fazendo meu trabalho. Mas se quiser conversar lá fora, campeão, a gente resolve.

— Quero que você vá embora.

— Eu também queria muita coisa. Queria, por exemplo, saber por que o carro do Leo explodiu, por que ele tava fugindo, por que não tem câmera nenhuma funcionando naquela avenida no dia do acidente, e quem, dentro da casa dele, sabia pra onde ele ia. — Ele se virou pra mim. — E aposto que você também quer saber disso, né, Leozinho?

Aldo olhou pra mim. Pela primeira vez desde que acordei, ele parecia com medo. De mim.

Assenti devagar.

— Quero saber tudo.

Plínio sorriu, satisfeito.

— Então vamos conversar.

Plínio puxou a cadeira de canto com o pé e se sentou, cruzando as pernas como quem tinha todo o tempo do mundo. Abriu um bloquinho surrado e uma caneta Bic. A ponta estalou duas vezes antes de ele começar.

— Leônidas Maia... idade?

— Vinte e nove. — Falei sem pensar. E me assustei.

Plínio ergueu uma sobrancelha.

— Aparentemente, a memória seletiva está ótima.

Aldo pigarreou alto, mas eu sorri, tentando parecer tranquilo.

— É o que tá na pulseira do hospital.

Plínio riu. Fechou o bloco. Me olhou.

— Onde você estava indo naquela noite?

— Eu... não lembro.

— Tava fugindo de alguém?

— Eu não sei.

— Por que saiu correndo do ginásio em Paraisópolis?

Aldo arregalou os olhos e se adiantou.

— Como assim, ele saiu correndo?

— Tem uma câmera do outro lado da rua. Pegou tudo. O moço aqui parecia desesperado.

Aldo ficou pálido. Olhou pra mim como se tentasse ler o que nem eu conseguia mostrar.

— Eu não sei por que corri — sussurrei. — Só lembro da chuva. E de estar com medo.

Plínio inclinou a cabeça.

— Você desconfia de alguém?

— Não. Eu... não lembro de ninguém.

— E da sua irmã? Luiza?

Senti um calafrio, mas forcei um sorriso gentil.

— Ela é maravilhosa comigo. Disse que sempre fomos muito próximos.

Plínio anotou algo. E disse, quase sem olhar:

— Ela te odeia.

Aldo se remexeu na cadeira.

— Chega. Ele precisa descansar.

— Tá tudo bem — eu disse baixo. — Posso responder mais.

Plínio sorriu, satisfeito. Se levantou, guardou o bloco e se inclinou sobre mim. O hálito dele cheirava a café amargo.

— Você é bonito demais pra morrer queimado num carro. Sorte a sua que caiu pro lado certo da história. Ainda dá tempo de escolher se quer justiça... ou vingança.

E então ele piscou.

Aldo deu um passo à frente. Mas Plínio já estava abrindo a porta.

— Volto amanhã. Com sorte, você sonha com alguma coisa útil. Se não, volto só pra ver essa boca de novo.

Ele saiu, deixando o cheiro de chuva molhada e tensão no ar.

Aldo estava parado, com os punhos fechados, olhando pra porta como se quisesse quebrá-la.

— Não confia nele? — perguntei.

Ele me encarou. A raiva virou algo mais... preocupado.

— Não confio em ninguém.

E saiu, sem dizer mais nada.

Fiquei sozinho. O som da chuva ainda caía do lado de fora. E eu, fingindo ser alguém que não era, me perguntava quanto tempo conseguiria manter esse teatro antes de me afogar de vez na mentira.

A noite caiu silenciosa sobre o hospital, interrompida apenas pelo apito baixo dos monitores e a respiração pausada do quarto. O mundo ainda parecia enevoado dentro da minha cabeça — como se minha mente estivesse mergulhada em águas turvas e cada pensamento fosse um esforço para emergir.

Estava quase adormecendo, embalado pelas vozes suaves da equipe de enfermagem e pelas palavras gentis do homem que disse ter me salvado — Aldebaran. Estranho... por que meu coração disparava toda vez que ele entrava no quarto? Era medo? Era conforto?

Não sei. Só sei que, quando fechei os olhos, ouvi algo vibrar.

O som abafado de um celular — meu celular — em cima da cômoda ao lado da cama. A tela estava rachada, uma fenda passando exatamente sobre a imagem de fundo que eu não reconhecia. Uma rua talvez. Ou uma sombra. Era tudo tão confuso.

Peguei o aparelho com dificuldade. A mão ainda trêmula. Quando atendi, a linha ficou muda.

— Alô...? — minha voz saiu fraca.

Nada. Só o chiado de fundo e, então, silêncio.

Desliguei, respirei fundo e me virei de lado, puxando o lençol até o queixo. Devia ser engano.

Mas então, vibrou de novo.

Não era ligação dessa vez. Um SMS. A tela quebrada dificultava a leitura, mas eu forcei os olhos, o coração repentinamente acelerado.

《 "Você voltou. Cuidado com quem você confia. Nem todo salvador é santo."》

Engoli em seco.

Me virei devagar, como se alguém estivesse atrás de mim, observando.

Mas o quarto estava vazio.

Só eu, a chuva lá fora, e o som constante da minha própria dúvida crescendo dentro do peito.

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