SEGUNDA TEMPORADA
Aldo não sabia explicar por que seus pés não obedeceram o roteiro da coletiva. O ginásio em Paraisópolis estava cheio, a imprensa presente, o evento social sendo um sucesso. Mas, no meio da multidão, ele viu Leônidas. Sozinho. Pálido. Furtivo. Correndo como quem foge da própria sombra.
O instinto falou mais alto. Aldo largou tudo.
Correu para o estacionamento, mas já era tarde. Leônidas já tinha saído. Aldo entrou em seu carro e partiu atrás.
A tempestade caiu com brutalidade sobre o bairro do Morumbi, como se o céu desabasse em fúria. A água cortava o vidro do carro em listras violentas, e os limpadores não davam conta. As curvas da estrada escorregavam sob os pneus como casca de sabão.
Aldo mantinha os olhos fixos nas luzes vermelhas do carro de Leônidas à frente. Até que, numa curva fechada demais para a velocidade, as luzes simplesmente sumiram.
— Leo?
Um segundo depois, uma explosão rasgou o silêncio da noite.
Aldo freou com violência. O carro quase girou no asfalto encharcado. Ele abriu a porta com o motor ainda ligado e correu. Os trovões acompanhavam o rugido das chamas ao longe. O cheiro de gasolina queimada era inconfundível.
— LEO!
A ribanceira estava coberta de lama e folhas arrancadas pela chuva. Aldo escorregou, caiu, se levantou. E correu.
O carro embaixo ardia como um túmulo em chamas. Mas Leônidas... não estava lá dentro.
Ele o encontrou alguns metros adiante, entre arbustos encharcados, o corpo tombado, o rosto coberto de sangue, os cabelos loiros grudados na testa. A chuva lavava sua pele, misturando-se com o vermelho vivo que escorria de uma ferida aberta na cabeça. Havia uma pedra logo ao lado.
Aldo caiu de joelhos.
— Não, não, por favor. Leo... fala comigo... eu tô aqui...
Nenhuma resposta. Apenas a respiração curta, frágil, lutando contra o peso da noite.
Aldo o envolveu nos braços, encharcado, enlameado, tremendo. Voltou colina acima carregando Leônidas no colo, como um soldado que se recusa a abandonar o corpo do irmão.
Enquanto o carro ardia às costas, a chuva seguia caindo.
SEIS SEMANAS DEPOIS...
PONTO DE VISTA LEÔNIDAS
A primeira coisa que senti foi frio.
Não o tipo de frio que vem da chuva ou do vento, mas um frio de dentro. Um vazio gelado que se arrastava por baixo da pele, nas costelas, nas pontas dos dedos.
Abri os olhos com esforço. Tudo era branco demais. Luz demais. Silêncio demais.
Tentei me mexer, mas o corpo respondeu com protestos: músculos enrijecidos, dor nos ombros, uma sensação estranha de ter pertencido a outro alguém por muito tempo. Minhas mãos estavam pálidas e finas como as de um estranho.
Então o vi.
Havia um homem ao meu lado. De olhos fechados, sentado numa cadeira improvisada, dormindo como quem não dormia há dias. O rosto marcado, a barba por fazer, as mãos calejadas. Mesmo assim, havia algo... familiar.
“Quem é você?”, pensei. Mas não disse em voz alta. Não ainda.
A garganta arranhava como se eu tivesse engolido cacos de vidro. Estava com sede. Estava com medo.
Fechei os olhos de novo. Tentei lembrar. Qualquer coisa. Um nome. Uma rua. Um rosto.
Nada.
O desespero veio como uma onda gelada. Onde estou? Quem sou? Quem é ele?
Fui tomado por uma tontura repentina. O coração acelerou, alarmado por um perigo invisível. E quando abri os olhos pela segunda vez, o homem já estava em pé ao meu lado, apertando um botão na parede, chamando socorro.
— Leo? — a voz dele era rouca, incrédula. — Você tá me ouvindo?
“Leo.”
Era isso? Meu nome?
Tentei responder. Um som ridículo saiu da minha garganta, algo entre um sussurro e um soluço.
A porta se abriu com estardalhaço e mais pessoas entraram. Gente de branco, de azul, rostos que eu nunca vi, mas que me olhavam com comoção. Como se eu fosse importante. Ou frágil. Ou ambos.
O homem se afastou, dando espaço para os enfermeiros.
— Ele acordou... ele finalmente acordou.
Ouvi alguém perguntar meu nome. Outro dizer a data. Me mostraram um espelho pequeno, e só então eu vi o rosto refletido. O cabeça raspada com cabelos ondulados castanhos crescendo.As olheiras profundas. Os olhos — meus olhos? — estavam vermelhos. Encharcados.
“Sou eu?”
“Esse é o meu rosto?”
— Leônidas... você lembra de alguma coisa? — perguntou a médica com um tom doce demais. Irritante, até.
Tentei responder. Mas era como tentar pescar numa lagoa vazia. Nenhum peixe. Nenhuma memória.
Nada.
Só a angústia crescente de estar num corpo que não parecia meu, cercado de pessoas que não ousavam me contar tudo.
— Não... — minha voz saiu trêmula. — Eu... não lembro de nada.
Pude ver nos olhos deles: choque, pena, alívio. E naquele instante, soube que algo terrível havia acontecido.
E que todos à minha volta tinham medo do que eu poderia lembrar.
As enfermeiras saíram primeiro. Uma delas acariciou de leve meu ombro, como se dissesse "força", mas sem palavras. O homem que estivera ao meu lado, ainda de pé, respirava fundo demais. Suava. Parecia emocionado, mas se controlava.
— Eu sou Aldo — ele disse, finalmente. — Tô aqui desde o acidente, Leo... não saí do seu lado.
Assenti com a cabeça, mas o nome não dizia nada. O rosto dele me comovia, me causava um tipo estranho de conforto, como se a pele do mundo ficasse menos apertada quando ele falava.
Logo em seguida, ouvi passos rápidos no corredor. Vozes alteradas. Confusão. E então... a porta se abriu com violência.
— MEU FILHO! — uma mulher muito elegante, de perfume forte e olhos pintados de tristeza, entrou com um grito dramático. — Ai, meu Deus! Leônidas! Você tá vivo, você acordou!
Ela me abraçou antes que eu pudesse reagir. O cheiro dela invadiu minha memória... e ainda assim, nada. Nem uma fagulha.
— Ele não lembra de nada, Renata — Aldo tentou intervir, mas ela nem ouviu.
— Sou sua mãe, meu amor. E este aqui — apontou para um homem mais velho, de paletó bege e rosto pálido — é seu pai. Marcelo. Estamos aqui. Sempre estivemos.
Marcelo me olhou com lágrimas nos olhos. Havia algo artificial naquela expressão, mas talvez fosse só a dor disfarçada. Ele pegou minha mão com delicadeza.
— Me perdoa, filho... por tudo. Eu falhei. Mas agora... agora a gente vai recomeçar.
Não entendi o que ele queria dizer. Nem o motivo daquele pedido de perdão. Só consegui assentir outra vez. Era tudo que eu podia oferecer.
Mais gente foi entrando. Todos falando ao mesmo tempo. Olhares misturados de alívio e expectativa. E então ela apareceu — de vestido elegante, salto alto, um casaco nude sobre os ombros e o perfume doce que ficou no ar mesmo depois dela parar ao meu lado.
— Leozinho... — disse com a voz suave, baixa, quase emocionada. — Eu sou a Luiza. Sua irmã.
Pisquei algumas vezes. “Irmã?” Repeti a palavra na cabeça como se fosse um eco distante.
Ela sorriu e ajeitou uma mecha do cabelo escuro por trás da orelha.
— Desde pequenos sempre fomos muito grudados. Lembra? Você dizia que eu era sua melhor amiga. — Acariciou minha mão com ternura demais para quem parecia estar me conhecendo outra vez. — Ninguém te conhece como eu.
Engoli em seco, confuso. Aquela mulher linda, confiante, bem arrumada... nada nela me parecia familiar. Mas o jeito como falava, como se tivéssemos uma história juntos... me fez sentir culpado por não lembrar.
— Você... era minha melhor amiga? — perguntei baixinho.
Ela sorriu, e por um segundo vi algo duro por trás dos dentes brancos — uma sombra.
— Sempre fui. E ainda sou.
Meu pai tossiu ao fundo, desviando a atenção. Renata, a mulher que dissera ser minha mãe, o encarou com dureza e cochichou algo. Aldo permaneceu em silêncio, como se observasse tudo de longe, sem pertencer àquela cena.
Marcelo se aproximou e disse com a voz embargada:
— Vocês são meus filhos, meu maior bem. Cresceram juntos, sempre foram ... parceiros.
Quis perguntar mais, mas tudo girava na minha cabeça. As palavras entravam e saíam como fumaça. Me senti pequeno, como se o mundo tivesse me passado por cima enquanto eu dormia.
Luiza apertou minha mão com mais força.
— A gente vai te ajudar a lembrar de tudo. Com calma. O importante é que você tá aqui com a gente agora.
Ela sorriu.
E eu sorri de volta.
Porque não sabia o que mais fazer.
Porque, no fundo... eu precisava de alguém para confiar