Quem disse que existe calma após a tormenta? Depois do Furacão Fernandes, vivenciei um maremoto atrás do outro. E agora estou aqui, no velório da família Clark. Os caixões ficaram fechados, pois apenas restos mortais de Rachel e seus pais foram encontrados. Foi necessário um exame de DNA para confirmar. A Sra. Samantha Clark, avó da minha melhor amiga, fez um discurso emocionante sobre a importância da família e dos amigos.
No velório da Rachel, reencontrei alguns colegas que sobreviveram ao Furacão Fernandes. Percebi que Rachel era muito querida pelos alunos e funcionários da Freedom High School. Era estranho vê-los ali, reunidos por um motivo tão triste, mas também reconfortante saber que ela havia deixado sua marca.
Não muito longe de mim estavam Emmett e seus pais. Assim como eu, ele tinha uma ligação especial com Rachel. Confesso que no início fiquei enciumado, mas ao perceber o motivo da conexão deles, eu entendi. Rachel era um farol para quem se sentia perdido, e Emmett havia sido um desses.
A cerimonialista perguntou se alguém gostaria de dizer algumas palavras. Mesmo nervoso, levantei a mão e subi ao púpito. Olhar para aquelas pessoas me deixou muito emocionado. Compartilhávamos uma história de superação e sobrevivência.
— A Rachel era muito mais que uma amiga. Eu a considerava uma irmã. Foram quase dez anos de amizade. Assim como perdi a Rachel, perdi o Zeek. A gente era chamado de Trigêmeos, afinal, andávamos juntos para todos os lados. Durante os últimos meses, eu homenageei minha amiga de diversas formas, inclusive passando todos os dias no memorial feito pela Sra. Clark. Eu espero que a Rachel sinta orgulho de cada um que está aqui. Obrigado, irmã. — Me declarei, olhando para a foto dela, que estava próxima ao caixão.
— Obrigada pelas palavras, querido. — Agradeceu a Sra. Clark, enxugando as lágrimas.
— Mais alguém? — Perguntou a cerimonialista.
Emmett se levantou e foi até o púpito. Ele parecia firme, mas seus olhos denunciavam a dor que sentia. Engoliu em seco antes de começar.
— A Rachel salvou minha vida. — Sua voz quebrou por um instante. — Quando tudo desmoronou, ela me ajudou a encontrar a luz no fim do túnel. Não sei se estaria aqui hoje se não fosse por ela. Por isso, eu serei eternamente grato. Sempre.
Eu não aguentei. Abracei minha mãe e chorei copiosamente. Dar adeus a Rachel era como enterrar a última parte do meu passado feliz. O furacão levou tudo, mas o que mais doía era perceber que ele também havia levado pedaços de quem eu era.
***
Eu não sabia que o tempo podia passar tão rápido. As provas chegaram e o meu desespero também. Bem, eu não poderia usar a cartada de jovem sobrevivente do furacão. Depois de um dia puxado de matemática e educação física, cheguei em casa exausto, mas fui recebido por uma latida alta e estridente. De início, me assustei, mas logo percebi que se tratava de um cachorro da raça Border Collie. Lembrei dele da nossa última visita na ONG.
A cadela era um mesclado de preto e branco. Sua coleira estava sem nome. Mamãe falou que a cachorra ficaria em uma semana de adaptação. Passei a mão em sua cabeça e seu rabo balançou de um lado para o outro. Sabe quem gostou da cadela? A Anne. Ela abraçava e beijava o animal, que não se importava com o ataque.
— E aí? — minha mãe perguntou, toda animada.
— Bem, é uma cachorra. — Respondi sem muita animação. Eu confesso que nunca fui um garoto que queria um animal de estimação.
— Ela precisa de um nome. — Explicou mamãe.
— A gente nem sabe se ela vai ficar. Posso chamá-la de Cachorra? — Perguntei.
— Claro, filho. — Mamãe tocou no meu rosto e sorriu. — Inclusive, ela vai te acompanhar nas aulas de direção, viu? Suas aulas vão acontecer no período da tarde. Hoje vou na escola para pedir a sua dispensa em alguns dias.
— Eu não vou cuidar dela, viu. — Soltei.
— Vai sim. — Retrucou minha mãe cantarolando.
— Cachorro. — Balbuciava Anne, enquanto atazanava a vida do pobre animal.
***
Sabe qual a melhor parte? A Cachorra fez sucesso na escola. Como parte da adaptação, eu precisaria criar um vínculo com o animal. Mamãe preparou uma bolsa com todos os itens necessários para que ela tivesse um mínimo de conforto.
Durante o intervalo, a cadela virou a sensação da escola. Todos os alunos vieram até nós. Ela, toda faceira, aproveitava os carinhos e selfies. Juro, até parecia entender o que estava acontecendo.
Para evitar aglomeração, a levei para o jardim da escola. Peguei minha garrafa de água e coloquei um pouco em sua vasilha. Depois, despejei um pouco de ração em um comedouro retrátil. Apoiei as costas em uma árvore e ficamos curtindo a sombra.
Não demorou muito para Nathan se aproximar. Meu colega estava mais avoado que o normal. Perguntei o que estava acontecendo, e ele deu um longo suspiro. Pelo jeito que se comportava, eu logo deduzi que ele estava gostando de alguém. Nathan concordou e explicou que sua crush era Britney Thompson, uma das líderes de torcida da escola, logo, amiga da Jennifer.
— É, meu amigo. — Peguei no ombro de Nathan, que tirou os óculos e coçou os olhos. — Inclusive, o signo de vocês é compatível? — Perguntei.
— Virgem e Peixes. Somos o match ideal. — Ele respondeu.
— Pena que ela é amiga de Satã. — Brinquei. — Ninguém é perfeito.
A Cachorra deitou ao meu lado e Nathan também, mas ele apoiou a cabeça no meu colo. Esse gesto me fez lembrar de Zeek. Nós tínhamos esse tipo de intimidade, e eu não sabia se estava preparado para me abrir para uma nova amizade.
Pensei em levantar, mas a Cachorra me fitou com aqueles olhos cor de mel. Limpei uma lágrima que escapou.
Ok. Tudo bem. Respira, George. Você precisa começar a quebrar esses muros e se abrir para novas amizades. Com as mãos trêmulas, comecei a acariciar os cabelos coloridos do Nathan. Eu não precisava chamá-lo de melhor amigo, mas poderia demonstrar afeto, algo que sempre fiz com as pessoas que eu gostava.
Olhei para baixo e Nathan também me encarava. Com cuidado, colocou os óculos e sorriu.
— Sabe, as pessoas sempre tiveram medo de mim. — Ele confessou, voltando a atenção para a árvore que balançava com o vento. — E você chegou e foi a primeira pessoa a me tratar como Nathan. Eu senti falta de ser visto, George. Eu sei que não sou o Zeek e talvez nunca consiga ser. Mas você é o meu primeiro amigo de verdade. — Garantiu.
— Você me lembra muito o Zeek. Eu tenho medo de me abrir para novas amizades e elas irem embora. — Expliquei e ouvi um grunhido da Cachorra, que se aproximou mais de mim.
— O Zeek não foi embora, George. Ele vive dentro de você. As memórias que vocês compartilharam sempre estarão contigo. — Disse Nathan.
— Obrigado, Nathan. Obrigado por ser paciente comigo. — Agradeci. — Agora me conta essa fofoca, cara. A Britney?
Eu sempre pensei que meu coração era um lugar pequeno. Depois de tudo que aconteceu, parecia que ele tinha encolhido ainda mais, apertado pelo medo, pela dor, pelas lembranças que não me deixam em paz. Eu não queria abrir espaço para mais ninguém, porque quanto mais gente entra, mais gente pode sair. E eu já perdi o suficiente.
Mas então veio o Nathan.
Ele não pediu permissão para estar na minha vida. Só apareceu, com seu jeito estranho, seu sorriso fácil, sua mania irritante de não aceitar um "estou bem" como resposta. Ele não se afastou quando eu quis me isolar. E nos meses em que nos conhecemos, defendeu e cuidou de mim como se eu fosse algo precioso. Eu nunca pedi por isso. Mas, talvez, eu tenha precisado.
E agora eu me pergunto: será que deixar alguém entrar no meu mundo de novo é tão ruim assim? Talvez não precise ser uma irmandade, algo profundo e definitivo. Talvez baste uma amizade. Um ponto de apoio no meio do caos.
Talvez seja hora de abrir espaço.
***
Dirigir. Algo que eu nunca imaginei que faria depois do furacão.
A primeira etapa do processo era fazer o teste teórico. Para isso, tive que ir ao departamento de trânsito local, um prédio pequeno e burocrático que cheirava a papel velho e café requentado. Preenchi formulários, mostrei meus documentos e esperei minha vez para usar um dos computadores.
A prova não foi tão difícil quanto eu imaginava, mas a ansiedade fez com que minhas mãos suassem e meu coração disparasse. Eu lia as perguntas duas, três vezes, temendo errar por um descuido. Afinal, se eu não passasse, teria que refazer o teste e, sinceramente, eu não queria pisar naquele lugar de novo tão cedo.
Quando a tela mostrou a palavra "Aprovado", soltei um suspiro de alívio. Eu havia passado na primeira etapa. Ainda não era uma vitória completa, mas pelo menos eu estava um passo mais perto.
A primeira aula teórica aconteceu alguns dias depois. Eu estava nervoso, mas felizmente o instrutor, o senhor Martinez, era um homem paciente. Ele não apenas explicava as regras de trânsito, mas também parecia compreender a minha situação sem precisar que eu a justificasse o tempo todo.
— Você vai precisar de algumas adaptações, George, e isso é completamente normal. — Disse ele com um sorriso encorajador. — Não se preocupe, vamos encontrar a melhor forma de te ajudar.
A parte prática, no entanto, foi onde as coisas ficaram mais complicadas. Como eu não tinha visão no olho direito, era obrigatório que eu dirigisse com o auxílio da Cachorra, que parecia mais empolgada com a experiência do que eu.
Antes de entrar no carro, Daisy se sentou ao meu lado e observou tudo atentamente. Meu instrutor, para minha sorte, se mostrou compreensivo. Ele ajustou os espelhos, me deu tempo para me acostumar com o ambiente e garantiu que eu não me sentisse pressionado.
— Vai no seu tempo, garoto. Dirigir é prática e adaptação. Você vai pegar o jeito. — Explicou.
Eu respirei fundo, liguei o carro e segui as instruções. No começo, tudo parecia um pouco mais difícil do que eu esperava. Eu precisava compensar a visão limitada, usar mais os espelhos e confiar na Cachorra para perceber pontos cegos. Mas, aos poucos, comecei a ganhar confiança.
A única limitação imposta foi que eu não poderia dirigir à noite. Mesmo com Cachorra ao meu lado, a baixa visibilidade seria um problema sério. Relembrar esse fato foi um balde de água fria, mas eu compreendi.
— Não se trata de habilidade, George, e sim de segurança. — Contou o instrutor. — Vamos focar no que você pode fazer e fazer bem. Você vai dirigir, só precisa de alguns ajustes.
E era isso que importava. Eu não deixaria essa limitação me impedir de conquistar minha independência. Eu iria dirigir. De dia, com a Cachorra ao meu lado, mas iria.
Ao sair do carro, me deparei com Emmett. Ele já dirigia, mas precisou trocar os documentos do carro adaptado para PCDs. A Sra. Montgomery-Kerr era uma advogada influente na cidade e obteve a permissão para o filho dirigir mesmo tendo um membro amputado.
— E essa beleza? — Ele perguntou, acariciando os pelos da Cachorra.
— É a Cachorra. — Respondi.
— Cachorra? Tipo, mas qual o nome dela?
— Ela não tem nome ainda. É apenas Cachorra. — Expliquei, segurando o guia dela. — E você?
— Pegando meus documentos novos. — Ele contou. — Quer uma carona?
— Olha só. — A voz irritante da Jennifer chamou a nossa atenção. — Não sabia que pessoas especiais tiravam carta de motorista.
Jennifer era Deus. Não no sentido religioso ou espiritual, mas porque essa garota parecia ser onipresente. Eu juro que onde quer que eu fosse, lá estava ela. Corredores, biblioteca, quadra, refeitório... até no banheiro masculino um dia quase esbarrei com ela porque, segundo suas palavras, "estava só conferindo a maquiagem no espelho grande".
Ela era aquela garota que todo mundo conhece, e que fazia questão de ser conhecida. Cabelos pretos sempre impecáveis, sorriso de comercial de pasta de dente e um olhar que transitava entre tédio e julgamento. Cada passo que ela dava parecia coreografado para impressionar, como se um vento invisível soprasse apenas para fazer seus cabelos se moverem dramaticamente.
— Sério, garota, não te bastou o cancelamento? — Questionei.
— A culpa foi sua! — Ela exclamou, cruzando os braços e virando o rosto.
— Quer saber, Emmett, vamos embora. Não adianta discutir com a Jennifer. Ela tem mais insegurança do que meu Wi-Fi quando chove! — Soltei, e Emmett deu uma risada gostosa.
— Ei, Jennifer, eu posso até ser especial. — Disse Emmett com um sorriso travesso no rosto. — Mas sabe o que ainda funciona? — Ele perguntou, mostrando o dedo do meio para a nossa colega. Em seguida, Emmett segurou a minha mão e seguimos para o estacionamento.
— Você é louco! — Exclamei rindo.
O carro de Emmett era diferente de qualquer outro em que eu já havia entrado. No console, todos os botões essenciais estavam posicionados na parte superior, facilitando o acesso dele. O volante possuía um suporte adaptado que funcionava como uma espécie de prótese, permitindo que ele dirigisse com segurança. Cada detalhe era pensado para que ele tivesse controle total, e eu não conseguia parar de observar aquilo.
Ele parecia tão seguro, como se dirigir daquela maneira fosse algo completamente natural para ele. Talvez fosse. Talvez Emmett sempre tivesse essa capacidade de se adaptar e seguir em frente, diferente de mim.
— Obrigado pela carona, Emmett. — Agradeci quando estacionamos, e a Cachorra latiu também.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Claro.
— Você e o Nathan estão namorando?
— Não. Ele é o meu amigo. — Expliquei nervoso e gaguejando. — Por que você está perguntando isso?
— Nada. — Ele respondeu e ficou em silêncio. — Ei, George, topa ir ao cinema? Por favor.
Aquele "por favor" me quebrou. O meu coração estava batendo tão forte que fiquei com medo de ter um treco.
Eu não sabia ao certo o que sentia por Emmett. Durante muito tempo, ele foi apenas um obstáculo na minha vida, alguém que eu precisava superar. Mas agora, tudo parecia diferente. Eu me preocupava com ele, ria com ele, me sentia... bem ao lado dele. Era estranho e confuso, mas, ao mesmo tempo, havia algo confortante nisso. Algo que me fazia querer descobrir mais.
— Tudo bem. Eu topo. — Respondi.
Não sei para onde essa história vai, mas vou pagar para ver.