PARTE 2 – Entre Portas Fechadas
Narrado por Larissa
Andrey me beija com amor. Com rotina. Com cuidado.
Mas nunca com urgência.
Rodrigo me olha com silêncio. E às vezes, só às vezes, eu sinto meu corpo inteiro responder como se estivesse sendo tocado.
É errado. Eu sei. Já decorei esse discurso inteiro, palavra por palavra. Já ensaiei explicações para um tribunal que só existe na minha cabeça.
Mas a verdade é que há vontades que nascem no escuro. Que crescem onde ninguém vê. Que se alimentam dos vazios que outras pessoas deixam.
Mamãe tem estado cada vez mais ausente. Mesmo quando está em casa, parece ocupada com algo além de nós. Os olhos grudados no celular, a cabeça em outro lugar. Rodrigo também mudou. Está mais calado, mais pensativo. A leveza que ele tinha quando chegou já não aparece mais com tanta frequência.
E eu... eu só observo. Cada gesto. Cada ausência. Cada microexpressão que, para qualquer outra pessoa, passaria despercebida.
Foi numa sexta-feira qualquer. Chovia fino lá fora, e eu tinha decidido trabalhar de casa. A casa estava silenciosa — Amanda havia saído cedo, Linara estava na faculdade, e Rodrigo... estava no escritório, porta entreaberta, luz acesa.
Passei pelo corredor e hesitei. O som do teclado preenchia o ambiente com uma tranquilidade quase hipnótica. Bati levemente à porta.
"Posso?"
Ele me olhou, os olhos um pouco cansados, mas gentis. Sempre gentis.
"Claro. Aconteceu alguma coisa?"
"Não. Só... me senti meio sozinha lá fora."
Ele fechou o notebook, inclinou o corpo pra frente.
"Senta aqui."
Sentei na cadeira em frente à mesa dele. O cheiro do perfume dele era sutil, mas presente. Madeira, algo ambarado... sempre o mesmo desde que me lembro. Um cheiro que grudou na minha memória como algo que pertence. Que é casa.
"Você tá bem?", ele perguntou.
"E você?", rebati.
Ele sorriu de lado. "Não sei. Às vezes me pergunto o que ainda estou fazendo aqui."
Aquilo me atravessou como uma lâmina.
"Como assim?"
"Seu olhar... quando era pequena, você me olhava como se eu fosse um herói. Ultimamente, parece que ninguém mais me vê assim."
Ficamos em silêncio.
"Eu ainda te vejo", sussurrei. E só percebi o peso daquelas palavras depois que saíram da minha boca.
Ele me olhou por alguns segundos. Longos. Perigosos.
Mas não disse nada. Apenas levantou, foi até a estante, pegou um livro qualquer e me entregou.
"Toma. Acho que vai gostar desse."
Naquela noite, reli o trecho três vezes. O personagem principal estava dividido entre o amor seguro e o desejo perigoso. Em certo momento, ele dizia:
“Talvez existam pessoas que não nasceram para serem nossas. Mas nasceram para nos lembrar de tudo o que somos capazes de sentir.”
Me doeu.
Porque era exatamente isso.
Rodrigo era o que me fazia sentir. Não só o desejo — mas a dúvida, o medo, a fome por algo que eu mesma não conseguia nomear.
Andrey era o que me fazia esquecer.
Comecei a provocar mais. Pequenas coisas. Shorts mais curtos quando passava por ele. Um perfume novo. Um toque rápido no braço. Um elogio sobre a camisa. Tudo em tons baixos, mas calculados.
E ele respondia. Não diretamente. Mas desviava o olhar quando eu me aproximava. Respirava mais fundo quando eu falava perto demais. Apertava a mandíbula em silêncio.
Uma noite, fomos jantar fora, só nós dois. Amanda estava num evento, Linara havia ido dormir na casa de uma amiga. Ele sugeriu uma pizzaria que eu adorava.
Conversamos como amigos. Como pai e filha. Como dois cúmplices que sabiam que aquela noite carregava algo diferente.
Na volta, dentro do carro, o silêncio era espesso.
"Você tá diferente", ele disse, sem olhar pra mim.
"Talvez eu esteja me permitindo ser quem sempre fui", respondi.
Ele encostou o carro em frente à casa. Ficou ali, com a mão no volante, sem se mover.
"Você sabe o que está fazendo?"
"Você sabe?"
Ficamos nos olhando. O tempo parou.
Mas ele saiu do carro. Não disse nada. E eu o segui, com o coração batendo entre as pernas.
Nos dias seguintes, não falamos sobre isso.
Mas tudo mudou.
Os toques se tornaram mais demorados. Os olhares, mais perigosos. Eu sentia o corpo dele tenso perto do meu. E mesmo sem dizer, ele estava cedendo. Aos poucos.
Uma noite, Amanda havia ido dormir. Linara também. Eu desci até a cozinha de camisola, sabendo que ele estaria lá, como sempre, tomando o último café do dia.
Fingimos surpresa. Fingimos normalidade.
"Não consegue dormir?", ele perguntou.
"Não. E você?"
"Mesma coisa."
Sentei no banco da cozinha. O tecido da camisola subiu um pouco nas coxas. Eu sabia. Ele também.
Conversamos sobre trivialidades, como sempre. Mas havia um tremor por baixo das palavras. Um ritmo novo. Um desejo prestes a vazar pelas frestas.
"Você sente falta dela?", perguntei de repente, sobre Amanda.
Ele me olhou.
"Às vezes. Às vezes, nem tanto. Acho que me tornei mais um item da mobília."
"Você é muito mais que isso", sussurrei.
E, por um segundo, ele se inclinou. Só um pouco.
Mas foi suficiente.
Senti o calor da sua respiração perto do meu rosto. A tensão elétrica no ar. O momento exato em que ele quase me beijou... e não o fez.
"Boa noite, Larissa", ele disse, se afastando.
Fiquei ali, sozinha. Com o gosto do quase ainda queimando em mim.
Deitada na cama, com os olhos abertos no escuro, eu finalmente aceitei.
Eu o queria.
Mais do que deveria. Mais do que podia justificar.
E, agora, sabia que ele também me queria.
O jogo entre nós já tinha ultrapassado os limites do imaginário. Só restava um passo. Um gesto. Uma noite.
Mas será que teríamos coragem?
Ou continuaríamos nesse loop perigoso, entre portas fechadas, olhares longos e silêncios ensurdecedores?