A notícia caiu como uma bomba logo na primeira aula da manhã: a escola ia sediar um campeonato de futebol americano. Todo mundo vibrou, claro. Menos o Emmett.
O rosto dele travou na mesma hora, os olhos desviando pro nada, como se quisessem escapar do próprio passado. Eu conhecia bem aquele olhar. Os seus colegas de Futebol Americano da Freedom High School, nossa antiga escola, estaria lá. Diferente de nós, os alunos foram enviado para uma escola especifica para jogadores de futebol. Os mesmos caras que um dia fizeram da minha vida um inferno.
— Você não precisa falar da gente, Em. — Murmurei, encostando minha mão no rosto dele, passando o polegar com calma sobre sua pele quente. Era meu jeito de dizer "tô aqui".
— Não é essa a questão, bebê. É que quando eu penso que já fui babaca contigo, sei lá, fico muito mal. — A voz dele veio baixa, embargada, como se cada palavra pesasse o triplo.
Meu coração apertou. O Emmett de hoje e aquele garoto que um dia riu das minhas inseguranças não pareciam a mesma pessoa. Ele havia mudado. A gente havia mudado.
— Emmett Montgomery-Kerr. — O chamei, com firmeza e carinho ao mesmo tempo. — Você mudou. Provou de diversas maneiras que me ama. Você me ama, né?
— Claro. — Ele respondeu na hora, como se fosse óbvio. Como se essa fosse a única verdade no mundo. — Nossa, George, você mudou tanta coisa em mim. Cara, você salvou a minha vida. Sinto que o amor que te dou ainda é pouco.
Fiquei em silêncio por um segundo, sentindo meu peito inflar de um jeito estranho e bom.
— Para mim é o suficiente. Sabe, você é a primeira pessoa que penso quando acordo e a última que penso antes de dormir. Eu confio em você com o meu único olho bom fechado. — Falei, rindo da minha própria piada, tentando aliviar o peso daquele momento.
— Idiota. — Ele riu também, e aquele som me fez respirar melhor. O Emmett rindo sempre fazia o mundo parecer menos complicado.
— Preparado? — Perguntei, mesmo sabendo a resposta.
— Não, mas não tenho escolha. — Ele deu de ombros, se aproximando. Me beijou com ternura e urgência. — Mas contigo ao meu lado estou preparado pra tudo.
O som dos tambores da banda escolar já podia ser ouvido a quilômetros de distância. Eu e Emmett seguimos pelo caminho de concreto até os portões do campo de futebol, cercados por balões vermelhos e amarelos tremulando no vento. Parecia que até o céu tinha se vestido com as cores da Cleverfield High naquele dia.
Encontramos Nathan e Sofia perto da entrada, encostados em uma das árvores que fazia sombra ao lado do estacionamento. Ambos pareciam prontos para qualquer coisa, menos para um jogo de futebol.
— Vocês vieram! — Eu disse, forçando um sorriso animado.
— É, mas só porque a escola tá obrigando. — Resmungou Nathan, ajeitando o chapéu de aba larga que quase cobria seus óculos escuros. — Isso aqui tá mais quente que o inferno em pleno verão.
Sofia tirou o celular do bolso e começou a tirar fotos das decorações. Mesmo ela, que geralmente odiava eventos escolares, parecia ansiosa.
— Pelo menos tá bonito, né? — Ela comentou, apontando para as arquibancadas decoradas. As líderes de torcida ensaiavam suas acrobacias no canto do campo, e a banda tocava com força total. O público vibrava, gritando em uníssono:
— Cleverfield Alligators! Cleverfield Alligators!
Nosso mascote, o Alli — um jacaré gigante com uma cabeça de espuma e dentes exageradamente brancos — fazia sua entrada triunfal no gramado. Ao som da música-tema da escola, ele começou a famosa "dancinha da cauda": um giro exagerado com o corpo todo, imitando o movimento mortal dos jacarés. A arquibancada explodiu em aplausos.
— Essa dancinha nunca vai deixar de ser esquisita. — Murmurei, enquanto subíamos os degraus em busca de um lugar para sentar.
Mal havíamos nos acomodado quando Emmett já se levantou.
— Preciso encontrar a professora Yadav e o pessoal do time de natação. Volto já. — Ele deu uma última olhada para nós antes de desaparecer no meio da multidão.
Fiquei ali, entre Nathan e Sofia, tentando ignorar a pressão do sol sobre a minha cabeça.
— O Sr. Dawson vai ficar responsável pela lista de presença. — Expliquei, tentando amenizar a má vontade deles. — Então é melhor a gente ficar por aqui um tempo.
— Que saco... justo hoje pra fazer um sol tão forte. — Reclamou Nathan mais uma vez, abanando o rosto com um panfleto do jogo.
Sofia então levantou o celular e apontou para o céu.
— Pelo menos tem um arco-íris. — Ela sorriu e tirou uma foto.
Eu olhei para o céu também. De fato, um arco-íris cortava as nuvens ao longe, bem acima das arquibancadas.
— Que isso signifique boa sorte. — Falei, tentando manter o clima leve.
Mas antes que alguém respondesse, uma rajada de vento forte passou por nós. Meu boné quase saiu voando e um calafrio me percorreu a espinha. Algo naquele vento... me fez estremecer.
Olhei ao redor, mas ninguém parecia ter sentido o mesmo. Talvez fosse só coisa da minha cabeça. Ainda assim, não consegui deixar de sentir que algo estranho estava prestes a acontecer.
***
Escrito por Emmett
Eu tenho poucos arrependimentos na vida. Perder um braço jogando o esporte que eu amava não é um deles. Mas a forma como tratei o George... isso sim. Isso me persegue.
Ele era só... bom. Um daqueles caras que iluminam o ambiente só por estar presente. E eu? Eu era um covarde. Um covarde metido a machão, escondido atrás de apelidos cruéis e risadas forçadas. Eu sei que ele lembra. Eu também lembro. De cada "piadinha", cada olhar, cada empurrão. Aquelas palavras machucaram mais ele do que qualquer treino pesado já me machucou. E foram minhas. Eu fiz aquilo. Por medo. Medo do que os outros pensariam se soubessem que eu me via nele. Que eu sentia algo. Se eu pudesse voltar...
Hoje, ironicamente, aqui estou eu — sem um braço, sem uma carreira, mas tentando ser alguém melhor — ajudando a treinadora Yadav a verificar o campo do time de futebol. Ela está cobrindo o técnico por uns dias. O cheiro da grama, a textura debaixo dos meus tênis... bateu uma saudade pesada. A natação foi minha salvação, mas o futebol americano foi meu primeiro amor.
— Montgomery-Kerr? — A voz veio de trás, inconfundível, ainda com aquele tom arrogante de sempre. — É você mesmo? — Aiden Bright se aproximou com um sorriso mal disfarçado de escárnio e estendeu a mão.
— E aí, Bright. — Cumprimentei com frieza.
— Ei, pessoal! — Ele gritou para os outros idiotas do nosso antigo time. — É o Emmett!
Eles vieram correndo como se tivessem encontrado um troféu perdido.
— Cara, tu devia ter ido com a gente pra Green Hills. Lá só tem futebol. De verdade. — Disse um deles, já rindo.
— Mesmo sem o braço, tu podia ajudar o time, tá ligado? Ser mascote, talvez. — Outro comentou.
As risadas vieram em coro. Engoli seco.
E então, como se não fosse suficiente, Aiden mandou:
— Vi uma foto tua com aquela bichinha... o George Sanches.
Na hora, meu punho fechou instintivamente. A vontade de socá-lo era quase tão forte quanto a vergonha que senti anos atrás.
— É. Ele é meu namorado. — Soltei. Direto. Sem rodeios. E o melhor? O silêncio que veio depois. Aqueles rostos, sempre tão cheios de opinião, agora estavam pálidos, confusos. Eu queria ter gravado aquele momento.
— Na... namorado? Cara, você não é bicha...
— Aiden, eu sempre fui gay. Só não me entendia na época. — Olhei no fundo dos olhos dele. — O que fizemos com o George foi errado. E eu não vou mais permitir que você chame meu namorado de "bicha".
Ele deu aquele risinho torto, tentando parecer despreocupado.
— Relaxa, cara. Se quiser socar em um gay, digo, no seu namorado...
Eu já ia partir pra cima quando a mão firme da treinadora Yadav pousou no meu ombro.
— Ei, Emmett. Não vale a pena. — Ela disse, me puxando de volta à razão. — Sabe o que é engraçado e triste? Você teve a coragem de enfrentar gigantes em campo, mas tremia diante do amor de alguém. Que valentia seletiva a sua. — Olhando sério para Aiden.
Aquilo bateu fundo. Era verdade. Eu fui valente nos gramados, mas um covarde no coração. Sorri, finalmente. Um sorriso leve, com gosto de alívio e resistência. E antes de ir, não resisti — mostrei o dedo do meio praquele bando de idiotas.
Mas a alegria durou pouco.
Uma ventania estranha começou, rápida e agressiva. Placas voaram. Um barulho metálico cortou o ar.
— Cuidado, treinadora! — Gritei, e me joguei sobre ela no exato momento em que o marcador de pontos desabou no chão.
— Isso é um... — Comecei.
— Um tornado! — Ela gritou, se levantando às pressas.
E ali, no meio do caos, percebi que às vezes, a maior tempestade é a que acontece dentro da gente. Mas hoje... hoje eu estava pronto pra enfrentar as duas.
***
GEORGE
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Alerta de emergência
Alerta de tornado nesta área até 3:15 PM EDT.
Abrigue-se agora. Verifique a mídia local. - Prefeitura de Jacksonville
***
— Puta merda! — Olhei para a tela do celular em desespero.
Foi a única coisa que consegui gritar quando o céu ficou preto de repente, como se alguém tivesse apagado o sol com um clique. A voz do Sr. Mars estourou nos alto-falantes da escola, tentando soar calma, mas dava pra perceber o desespero até no tom dele:
— Atenção, alunos e visitantes. Por favor, dirijam-se para o abrigo da escola. Por favor, mantenham a ordem.
A ordem, é claro, já tinha ido pro caralho.
— Vamos! — gritou Nathan, enquanto o chapéu dele voava longe, arrastado pelo vento. Ele agarrou a mão da irmã, Sofia, e começou a descer as arquibancadas correndo, meio tropeçando.
Eu mal conseguia enxergar direito. Poeira, folhas, papel voando. Aquilo não era só vento. Era alguma coisa errada, como se o mundo tivesse saído do eixo.
— Esse vento não é normal. Tá muito forte! — gritei, quase não me ouvindo. Então vi o Emmett. Ele tava acenando pra gente do outro lado, lutando contra o vento como se estivesse dentro de um furacão.
— Galera, o Emmett!
Descemos rápido, escorregando nos degraus molhados da arquibancada. Eu, Nathan, Sofia e mais dois amigos que eu nem conseguia distinguir direito no caos. Quando a gente alcançou o Emmett, ele me puxou num abraço forte. Nem parecia ele... tinha um olhar diferente. Focado, determinado. Eu tava tremendo e ele parecia uma âncora.
A equipe pedagógica gritava, tentando organizar o fluxo pra dentro da escola. Algumas pessoas obedeciam. Outras só corriam, empurrando, gritando. A escola parecia tão longe... uns 300 metros talvez, mas com aquele vendaval, parecia atravessar um deserto em plena tempestade de areia e granizo.
A gente começou a correr. Eu sentia meu coração quase explodir no peito, como se quisesse fugir do meu corpo antes que o pior acontecesse. O vento parecia me empurrar pra trás a cada passo que eu dava pra frente. Olhei pro lado e lá estava ela — a nossa árvore de carvalho. Aquela onde a gente costumava sentar depois da aula, falar besteira, comer lanche... Ela balançava como se fosse feita de papelão. Aquilo me deu um calafrio.
A chuva de granizo começou de repente. Pedras de gelo caindo com força. Pessoas gritando, caindo no chão. Mas o que me derrubou mesmo foi o que vi. Uma espécie de déjà-vu. Uma sensação de que tudo aquilo já tinha acontecido antes... E não de um jeito bom.
Caí no chão com tudo. Emmett veio correndo me ajudar, mas ninguém tava com tempo pra isso. Cada um por si. A chuva era como uma chuva de socos.
Nathan e Sofia voltaram por mim e, com muita dificuldade, me levantaram. Eu odiava isso. Ser um peso. Fazer eles perderem tempo comigo.
Estávamos quase chegando na escola quando ouvimos aquele estrondo. Uma árvore — gigante — foi arremessada na nossa direção como se fosse um brinquedo.
— Nós vamos morrer! — gritou Sofia, chorando.
— NÃO! — gritei de volta, mas acho que ninguém ouviu.
Fizemos uma corrente humana. Emmett na frente. Ele parecia o único que conseguia andar como se o vento não tivesse efeito nele. Juro, parecia que ele carregava uma força diferente naquele momento. A porta principal da escola tava bloqueada pela árvore caída. As pessoas corriam em todas as direções. Um caos completo.
Foi quando a gente esbarrou na Jennifer e na Britney. As duas estavam completamente encharcadas, descabeladas, em pânico. Sem saber pra onde correr, seguimos juntos até o estacionamento. Lá, um cara tentou entrar no próprio carro e... o vento simplesmente o levou. Sumiu no ar. Eu fiquei paralisado. Eu não conseguia ver mais nada. Só ouvia gritos, choros, o barulho da destruição.
Encontramos uma estrutura escura, parecia uma sala de manutenção. Entramos, empurrando uns aos outros pra dentro. Era a sala do gerador.
— Nós vamos morrer! — Jennifer gritava, histérica.
— Calma! — Emmett exclamou, passando a mão na cabeça, tentando raciocinar. Olhou ao redor e apontou: — Ali!
No chão, uma grade. Tinha uma escada. Com esforço, abrimos a tampa e começamos a descer as meninas primeiro. Cada segundo parecia durar uma eternidade. Depois de todas descerem, pedi pro Emmett ir logo. Sabia que ele ia precisar de força pra segurar a descida. Mas no momento que ele começou a descer...
A estrutura começou a tremer.
Um barulho alto. Tipo uma explosão abafada. O teto se abriu, e o Nathan foi lançado contra a parede com tanta força que eu pensei que ele tinha desmaiado. Emmett caiu escada abaixo, rolando, até sumir da minha vista. Inconsciente.
Corri até o Nathan. Estava tonto, sangrando no supercílio. Com um esforço absurdo, ajudei ele a se levantar. Consegui levá-lo até a escada e começamos a descer.
Mas aí o vento me pegou.
Do nada, fui levantado do chão como se não pesasse nada. Me agarrei na grade com todas as forças. Nathan me segurou pela mão, gritando meu nome, mas a força do vento era absurda.
— GEORGE!!! — A mão dele escorreu e ele caiu dentro do buraco. Consegui segurar na estrutura da escada.
Meus dedos começaram a escorregar. Eu ia voar. Eu sabia disso. Até que, de repente, várias mãos me agarraram.
Sofia. Britney. Jennifer.
Elas me puxaram de volta com toda a força que tinham. Depois que as meninas me colocaram para dentro, tudo aconteceu tão rápido que minha mente só processou de verdade quando vi o Nathan, ofegante, segurando o corpo desacordado do Emmett. Meu coração congelou.
— Emmett! — soltei num fio de voz, correndo até ele.
Me ajoelhei ao lado dos dois, minhas mãos trêmulas tocando o rosto pálido do meu namorado. Ele ainda respirava, mas estava inconsciente. Eu o abracei com força, quase tentando transferir minha própria energia pra ele, como se o meu calor pudesse acordá-lo.
O lugar onde estávamos era apertado, escuro, com canos que pingavam e paredes mofadas. Parecia um porão, ou uma espécie de estação de dejetos da escola. O cheiro era horrível, um misto de esgoto e metal oxidado, mas ninguém se importava. Não mais. Lá fora, o inferno era pior.
Estávamos todos tremendo de frio. Juntos, sentados no chão úmido, nossos corpos formavam uma muralha de calor humano, uma tentativa desesperada de não desmoronar. Eu passei meus braços ao redor do Emmett, puxando-o contra o meu peito. Seu corpo ainda quente era a única coisa que me impedia de enlouquecer completamente.
Era como reviver o mesmo pesadelo. O mesmo medo. A impotência. A sensação de que o mundo desmoronava sobre mim, de novo.
Quantas vezes mais eu ia ter que passar por isso?
Minha visão se perdeu no escuro, buscando algo que não existia.
Paz?
Alívio?
Futuro?
Não. Nada daquilo estava ali. Só havia ruído, respirações entrecortadas, e o som distante da tempestade lá fora — o eco do vento, que nunca parecia nos deixar em paz.
"Eu não posso viver desse jeito". Essa frase se formou dentro de mim com uma clareza cortante. Eu não posso.
Eu preciso ir embora dessa cidade. Preciso me salvar antes que ela me consuma completamente. Antes que tudo o que eu sou — ou fui — se perca nesse caos.
Virei o rosto para o Emmett. Ele dormia um sono forçado, de exaustão ou talvez desespero. Sua feição era tranquila, mas eu sabia que por dentro ele também estava quebrado. Como eu. Como todos nós. E foi nesse instante que as lágrimas vieram. Quentes, silenciosas. Chorei baixinho, para não assustar ninguém.
Chorei porque eu o amava. E porque sabia da decisão cruel que estava tomando. Porque, no fundo, talvez fosse a última vez que eu pudesse tê-lo assim, nos meus braços.