Onde o Sol se Esconde (continuação)
Os dias seguintes pareceram se arrastar em um compasso estranho entre esperança e medo.
Teo e Samuel continuavam a encontrar refúgio um no outro, mas sabiam que cada sorriso trocado, cada olhar demorado, era também um risco.
O orfanato São Jerônimo não era apenas um lar para órfãos. Era um campo de sobrevivência. Entre os internos, poucos se atreviam a confiar em alguém além de si mesmos.
Havia Joãozinho, um menino de nove anos, franzino e desconfiado, que vivia escondido pelos cantos, como um animalzinho arisco. Renato, aos 14, era rebelde e barulhento, mas atrás da pose havia um medo constante que o tornava imprevisível. E havia também Paulo, com 17 anos e olhos endurecidos por coisas que nunca dizia em voz alta.
Cada um carregava seus próprios fantasmas, seus próprios pactos de silêncio.
Foi numa tarde de sexta-feira que tudo mudou.
Samuel e Teo estavam ajudando a empilhar caixas velhas no depósito — um porão úmido e mal iluminado — quando ouviram passos pesados descendo as escadas. Congelaram.
Era Padre Buzzi.
— Vocês dois... — a voz dele era macia como seda, mas havia veneno nela. — Sempre juntinhos, não é?
Teo sentiu a mão de Samuel apertar a sua discretamente atrás de uma caixa.
Samuel ergueu a cabeça, encarando o padre com a mesma coragem silenciosa que sempre admirara em Teo.
— Somos amigos, senhor. — respondeu com firmeza.
Padre Buzzi sorriu de um jeito que fazia o estômago revirar.
— Amigos... claro. — sua voz se arrastava como uma serpente pelo chão de pedra. — Espero que saibam escolher bem em quem confiar. Amigos podem ser perigosos.
Ele virou-se e subiu as escadas lentamente, deixando um rastro de ameaça no ar pesado do porão.
Teo respirou fundo, tentando controlar o tremor no corpo.
— Ele sabe... — sussurrou.
— Ele desconfia. — corrigiu Samuel. — Mas não vai nos separar. Eu juro.
**
Entre os adultos do orfanato, havia poucos que os meninos podiam considerar aliados. A maioria era indiferente ou cruel. Mas havia Dona Clarice, a cozinheira.
Uma mulher robusta, de cabelos presos num coque apertado e olhos bondosos escondidos atrás de óculos de lentes grossas. Clarice conhecia cada menino pelo nome. Sabia quem comia pouco porque estava triste. Sabia quem chorava à noite mesmo tentando esconder.
Ela nunca falava demais, nunca fazia perguntas perigosas. Mas, às vezes, deixava um pão quente embrulhado num guardanapo, esquecido de propósito no parapeito da janela do refeitório. Ou fingia não ver quando Samuel e Teo demoravam alguns minutos a mais no pátio, sozinhos.
Uma tarde, Clarice chamou Samuel na cozinha, sob o pretexto de pedir ajuda para carregar sacos de farinha.
Enquanto ele lutava com um saco pesado, ela se aproximou e, em voz baixa, disse:
— Cuidado, menino. Tem olhos demais em cima de vocês.
Samuel ficou imóvel, o coração batendo forte.
— A senhora sabe...? — perguntou, a voz quase falhando.
Clarice sorriu, um sorriso triste.
— Eu sei. — disse. — E não vejo mal nenhum em dois meninos acharem um no outro o que esse lugar tenta matar. Só... sejam espertos. Não deem motivo.
Antes que Samuel pudesse responder, ela voltou a trabalhar como se nada tivesse acontecido.
Aquela pequena cumplicidade reacendeu algo em Samuel: esperança.
Não estavam completamente sozinhos.
**
Mas Padre Buzzi não era o único perigo.
Padre Clemente começara a chamar meninos para "confissões" mais frequentes. E havia cochichos sobre inspeções surpresa nos dormitórios, sobre punições misteriosas para os que "desobedeciam as regras".
O orfanato era uma panela de pressão prestes a explodir. E Samuel e Teo estavam no centro dela.
Numa noite de sábado, enquanto os trovões ribombavam nas montanhas, Samuel acordou com Teo encolhido ao lado dele, tremendo. Não de frio, mas de medo.
Sem dizer nada, Samuel puxou Teo para mais perto, envolvendo-o com o próprio corpo.
— Shhh... — sussurrou. — Eu tô aqui. Sempre vou estar.
Teo ergueu os olhos para ele, cheios de lágrimas que não conseguia conter.
E então, de novo, seus lábios se encontraram. Um beijo longo, demorado, carregado não de desejo, mas de necessidade. A necessidade desesperada de não estarem sozinhos num mundo que parecia querer destruí-los.
Fora do quarto, o vento uivava pelas frestas das janelas.
Dentro dele, dois corações batiam juntos, teimosamente vivos.
**
No dia seguinte, uma notícia se espalhou entre os internos como fogo:
o reitor receberia uma visita de inspetores do governo.
Pela primeira vez em anos, alguém de fora pisaria no orfanato.
E isso poderia mudar tudo.
Para melhor.
Ou para muito, muito pior.
Continua...