— Fui eu, Sr. Mars.
Minha voz soou firme, mas dentro de mim tudo estava desmoronando. Sentado diante do orientador pedagógico da Cleverfield High School, senti o peso dos olhares sobre mim. Meus pais estavam ao meu lado, perplexos, tentando entender como seu filho havia se envolvido em uma confusão tão grave.
O Sr. Mars girou o monitor em nossa direção e apertou o play. O vídeo mostrou cada detalhe. Meus socos, meus chutes, minha risada diabólica. "Quero sangue, quero sangue", eu gritava. Fechei os olhos por um instante, envergonhado. Eu não me orgulhava daquilo. Nenhum pouco.
— O que tem a dizer sobre isso, George? — O Sr. Mars perguntou, com as sobrancelhas arqueadas.
Engoli em seco. Sabia que tinha sido longe demais, mas não podia simplesmente me jogar no fogo sozinho. Peguei meu celular e mostrei o vídeo da pegadinha contra Nathan. Britney Thompson, usada como isca para enganar e humilhar meu amigo. Nathan, exposto, vulnerável, rindo de nervoso enquanto os atletas zombavam dele. Em seguida, iniciaram a sessão de violência com os tomates. Senti o peito queimar de raiva só de lembrar.
— Eu sei que errei, mas Nathan não merecia isso. — Minha voz tremia. — Eles usaram a Britney para enganar ele. Isso é transfobia! Sim, eu agi errado, incitei a violência, mas eles também não estavam certos.
O Sr. Mars suspirou e cruzou os braços. Ficou em silêncio por um tempo, refletindo.
— Suspensão de dois dias e detenção nos próximos três sábados. Além disso, quero uma redação de cinco mil palavras sobre a importância do diálogo para evitar violência. — Ele assinou um papel e me entregou. — Podem ir.
Levantei-me, aliviado por escapar de algo pior, mas antes de sair da sala, ouvi o nome do meu namorado ser chamado novamente.
— Sr. Montgomery-Kerr!
Virei-me e vi Emmett sentado ao lado do pai, cuja expressão era ainda mais dura que a do Sr. Mars. Meu estômago afundou. Lancei um sorriso amarelo para meu namorado e saí da sala.
Quando cheguei em casa, fui recebido com silêncio. Um silêncio denso, carregado. Minha mãe tinha os olhos vermelhos, inchados de tanto chorar. Meu pai mantinha-se rígido, preocupado, segurando-se para não explodir. Anne, minha irmã mais nova, era a única alheia à tensão, brincando com a Cachorra como se nada tivesse acontecido.
O jantar foi desconfortável. A comida esfriava no meu prato enquanto minha mãe começava um discurso sobre responsabilidade e limites.
— George, acho que vamos trocar sua psicóloga. — Disse ela, recolhendo os pratos.
Olhei para ela, incrédulo.
— O quê? Não! — Minha voz saiu alta demais. — Eu amo a Dra. Moore. Isso é injusto! Ela é quem mais está me ajudando!
— Não levante a voz para sua mãe. — Meu pai interveio, firme.
— Eu não estou levantando a voz! Eu estou lutando pelo que acredito!
— Com violência, filho? — Meu pai me encarou, esperando por uma resposta.
— Eu estava defendendo um amigo! — insisti.
— Existem outras maneiras de ajudar Nathan. — Ele rebateu.
Soltei uma risada sem humor. Uma onda de frustração subiu por minha garganta.
— Que formas, pai? Esperar que ele morra igual ao Zeek? — Meus olhos arderam. — Você tem ideia de quantas pessoas trans morrem por causa do preconceito?!
A cadeira do meu pai arrastou pelo chão quando ele se levantou abruptamente. Em um instante, ele estava na minha frente, segurando meu braço com força. Sua outra mão ameaçou subir, mas ele se conteve.
— Me respeita, garoto. Eu sou seu pai! — Ele rosnou.
— Comigo? — Minha voz saiu trêmula, carregada de dor. — Eu tô ótimo, pai. Me desculpa por estar causando tantos problemas para vocês. Às vezes... eu só queria estar lá com Zeek. Debaixo da terra.
As palavras saíram antes que eu pudesse segurá-las. O ar foi sugado da sala. Minha mãe cobriu a boca com as mãos, assustada. Meu pai me olhou de um jeito que nunca tinha olhado antes. Minha visão embaçou com as lágrimas que finalmente caíram.
— Você sabe como é difícil estar dentro da minha cabeça? — Minha voz falhou. — É uma luta constante. Eu luto para aceitar meus sentimentos. Eu luto para superar as perdas. Eu luto para seguir em frente. Mas eu tô cansado, pai. Eu só tô cansado.
E então, ao invés do tapa que temi, senti os braços dele ao meu redor. Um abraço forte, quente, cheio de desespero e culpa. Minha mãe pegou Anne no colo e veio para perto, envolvendo-me também. Desabei ali, nos braços deles, soluçando. Estava cansado de me desculpar. Cansado de lutar. Só estava cansado.
***
Não, eles não tiraram a Dra. Moore do meu caso. Na verdade, decidiram adicionar mais uma sessão com ela. A terapeuta não ficou nada feliz quando soube da confusão. Assim que me sentei em sua sala, ela cruzou as pernas e apoiou as mãos sobre o bloco de anotações, me encarando com aquele olhar de quem já sabe o que vai dizer, mas ainda quer me ouvir errar primeiro.
— Conte-me o que aconteceu, George.
Respirei fundo. Eu já sabia o roteiro dessa conversa. Mas, ainda assim, contei tudo. O jeito como Nathan foi cercado por aqueles idiotas na praça, as risadas cruéis, os empurrões e os tomates. Como algo dentro de mim estalou quando vi o olhar dele sentado no banco, assustado e encolhido, esperando que alguém fizesse alguma coisa. Então, eu fiz.
Cinco caras. Cinco brutamontes maiores do que eu. E, mesmo assim, eles caíram um por um. Tudo bem que contei com a ajuda do Emmett, da Sofia e do próprio Nathan. Não sei exatamente como, mas a raiva tomou conta. Meu coração batia no ritmo dos meus punhos acertando qualquer coisa que se mexesse. Quando percebi, eles estavam no chão, gemendo, e eu estava com os nós dos dedos sangrando.
A Dra. Moore escutou tudo com atenção, sem interromper. Ela só anotava coisas no caderno, ocasionalmente assentindo. Quando terminei, ela respirou fundo e me olhou nos olhos.
— George, violência nunca deve ser a solução para nada. O diálogo sempre é a melhor saída. E, se o diálogo não funcionar, a melhor coisa a se fazer é reportar para um adulto.
Bufei e olhei para o lado. Eu já sabia que ela diria isso.
— Ah, claro. Porque contar para um adulto resolve alguma coisa, não é? Eles teriam batido em Nathan de qualquer jeito. Se eu não tivesse feito nada, ele estaria no hospital agora.
Ela inclinou a cabeça levemente, como se analisasse minha reação.
— Eu entendo por que você acha que precisava fazer isso. Mas quero que tentemos algo. Quero que você rastreie essa raiva dentro de você. De onde ela vem? O que a alimenta? O que faz com que ela tome conta de você ao ponto de perder o controle?
Fiquei em silêncio. Eu não fazia ideia de como encontrar essa tal raiva. Ela simplesmente estava lá. Sempre esteve. Dormindo dentro de mim, esperando um motivo para acordar e destruir tudo ao redor.
A Dra. Moore sorriu de leve, como se entendesse meu silêncio.
— Vamos trabalhar nisso. Juntos. Mas você precisa estar disposto a olhar para dentro, George. Você está?
Não respondi. Apenas encarei as mãos fechadas sobre meu colo, tentando ignorar os nós dos dedos machucados. Eu queria dizer que sim. Mas, no fundo, eu não tinha certeza.
Lá estava eu, em pleno sábado, vagando pelos corredores da Cleverfield High School. Cinco meses estudando aqui e ainda não me acostumei com a claridade absurda desse lugar. Parece que cada parede de vidro foi colocada para me lembrar que estou exposto o tempo todo. Uma ideia bonita no papel, mas péssima na prática.
No meio do caminho, encontrei Emmett. Ele me olhou com aquele sorriso de canto de boca que me desarma e me faz esquecer de tudo, pelo menos por alguns segundos. Demos um selinho rápido, porque ainda temos um pingo de juízo. Assim como eu, ele levou um sermão monstruoso dos pais e perdeu o direito de dirigir por dois meses. Pelo visto, nosso "pequeno" incidente rendeu muito mais do que hematomas. Ainda não conversamos sobre o meu ataque de raiva, mas Emmett foi compreensivo, como sempre. Talvez compreensivo até demais.
Os gêmeos também estavam na mesma furada que a gente, prontos para passar a tarde de sábado presos na escola como se fôssemos um bando de delinquentes juvenis. A professora Yadav foi a escolhida para monitorar nossa detenção. Pelo humor dela, dava para ver que trabalhar no fim de semana não estava nos planos. Bem-vinda ao clube, professora.
— Vocês são a turma mais talentosa dessa escola, e, ainda assim, estão aqui, presos em um sábado, porque resolveram brigar na rua como neonatais! — Ela reclamou, ajeitando os óculos no rosto. — Isso é ridículo!
No meio do discurso indignado, o celular dela tocou. O olhar que lançou para a tela mostrava que era algo importante. Sem nem pedir desculpas, ela se afastou para atender a ligação, deixando-nos sozinhos com nosso castigo: escrever uma redação que precisava ser entregue até o último sábado de detenção.
Suspirei e olhei para o lado. O time de futebol americano não parecia nada feliz. A expressão fechada deles deixava bem claro que minha presença não era bem-vinda. Ignorei o aviso silencioso e caminhei em direção a Brent, o capitão do time. Peguei uma cadeira, virei ao contrário e sentei de frente para ele. De imediato, percebi o leve susto em seu rosto. Pequenos hematomas ainda manchavam sua pele.
— George — Emmett se aproximou, talvez temendo que eu fizesse algo insano.
Mas não era minha intenção.
— Me desculpa — falei, pegando todo mundo de surpresa. — Desculpa por ter te espancado.
Brent bufou, tentando manter a pose.
— Nem doeu tanto assim.
— Você desmaiou — revirei os olhos.
— Me pegou desprevenido.
Cruzei os braços e encarei o grupo.
— De verdade, eu sinto muito. Não estava em um bom lugar, mas o que vocês fizeram também não está certo.
Os jogadores abaixaram a cabeça. Continuei:
— Vocês são os maiores exemplos dessa escola. Tem ideia de quantos garotos gostariam de ser como vocês? O Emmett era assim. Provavelmente um jogador até melhor do que vocês e, ainda assim, o reduziram à deficiência dele. O Nathan é um cara como qualquer outro, que só quer ser amado, e vocês usaram isso contra ele. Eu não me orgulho do que fiz, quero ser uma pessoa melhor. Sei que vocês também podem ser. Podemos recomeçar?
Estendi a mão para Brent. Ele hesitou, trocou olhares com os amigos, e, por um segundo, achei que ia me ignorar. Mas então, ele apertou minha mão.
— Sou George Sanches.
Ele sorriu de leve.
— Sou Brent Carter. Foi mal, galera.
Um dos jogadores se aproximou, ainda desconfiado, mas com um brilho curioso no olhar.
— Cara, precisa me ensinar como derrubou o Brent com três socos.
— Que brega. — reclamou Jennifer, jogando o cabelo para trás enquanto se acomodava no banco de trás da sala.
Sofia virou para trás, assustada.
— Que diabos está fazendo aqui, garota? — perguntou, claramente surpresa.
Jennifer apontou para Britney, que estava sentada do outro lado da sala com uma expressão de culpa estampada no rosto.
— Essa fofoqueira delatou para o Sr. Mars que fui eu quem teve a ideia do bullying. — disse Jennifer, revirando os olhos.
Revirei os meus também. Claro que tinha dedo dela nisso.
— Claro que tinha dedo teu. — soltei, sem paciência para os joguinhos dela.
— Nathan, eu posso falar com você...? — Britney tentou se aproximar de Nathan, mas foi rapidamente rejeitada.
— Me deixa em paz, Britney. — Ele colocou os fones de ouvido e ignorou completamente a garota.
Jennifer não perdeu a oportunidade de soltar mais um comentário venenoso.
— Não dá confiança para isso...
Foi a gota d'água.
— Cala a boca, Jennifer. — pedi, tentando manter a calma. Mas não dava mais. — Você não percebeu que ninguém se importa com a tua opinião? Que as pessoas só te seguem porque não têm nada melhor para fazer? Desculpa se pessoas felizes como o Nathan te incomodam. Chega, eu já falei que não vou mais aguentar merda de ninguém, nem de você. Para, porque tá feio. Você pode até ser bonita por fora, mas por dentro é feia e triste.
Ela fingiu um choro dramático, olhando para Brent como se esperasse apoio.
— Brent... vai deixar ele falar comigo assim? — Jennifer apelou.
Brent suspirou e deu de ombros.
— Ele tem um ponto, Jennifer. Você que trouxe os tomates e pediu para fazer a pegadinha com o Nathan. — disse, sem demonstrar remorso.
Para surpresa de ninguém, Jennifer não negou.
— Eu fiz isso mesmo, e daí? A nossa escola era tão boa antes deles chegarem. Agora temos o Capitão Gancho com esse olho de vidro, o cara sem braço que se acha peixe e a aberração. — Apontou para Nathan. — Agora, voltem para os seus lugares antes que aquela indiana estranha retorne para a sala, eu não suporto a voz dessa mulher tomara que seja deportada. Eu já estou cansada de vocês.
Respirei fundo e, sem hesitar, rebati:
— Caramba, que vida triste, garota. Deve ser patético ser você. Pois saiba que, mesmo com nossas deficiências e diferenças, somos pessoas muito melhores que você. — Falei, voltando para o meu lugar. Emmett veio atrás e sentou ao meu lado.
Foi então que Sofia sorriu de maneira travessa e cantarolou:
— Ei, Jennifer... preparada para os teus cinco minutos de fama?
Jennifer franziu a testa.
— O que você tá falando, bruxa azeda?
Então viu. Os olhos dela se arregalaram ao perceber que Sofia estava segurando o celular, apontando diretamente para ela.
— Cara, isso é melhor do que qualquer feitiço. — brincou Sofia, agora apontando o celular para si mesma. — E assim, queridos seguidores, a prova de que Jennifer Harris é capacitista e transfóbica. Não esqueçam de curtir e compartilhar. — finalizou com um sorriso, encerrando a live.
Jennifer surtou.
Foi necessário praticamente o time inteiro para segurá-la. A professora Yadav chegou na sala e, assim que assistiu ao vídeo, seu rosto mudou completamente. Ela olhou incrédula para a queridinha da escola.
— Jennifer, que absurdos são esses? — questionou, a voz carregada de reprovação.
Jennifer, desesperada, tentou se justificar, as lágrimas agora não pareciam tão falsas.
— É brincadeira, Sr. Yadav! É isso! — exclamou, em um tom quase histérico. — É brincadeira, eu juro! — agora chorando de verdade.
Mas ninguém mais comprava suas desculpas.
— Sofia, por favor, me envie esse vídeo. O Sr. Mars precisa assisti-lo com urgência. — disse a professora, lançando um olhar desapontado para Jennifer.
Silêncio. Um silêncio carregado de consequências. E, pela primeira vez, Jennifer Harris parecia realmente assustada.
***
Estar na detenção não é algo fácil. Ficamos presos dentro de uma sala, enquanto a vida acontece lá fora. Tudo bem que a gente mereceu o castigo, eu só lamento por ter metido meus amigos — e o Emmett — nessa situação.
Após toda a confusão com a Jennifer, seguimos para uma famosa lanchonete da cidade. Era legal fazer parte de uma turma novamente. Eu agradeço muito à terapia e aos meus pais, que me incentivaram a abrir meu coração. Sei que o Zeek e a Rachel sempre vão ter um lugar especial dentro de mim. Eles ficariam felizes e, com certeza, adorariam fazer amizade com a Sofia e o Nathan, mesmo com as peculiaridades deles.
— A professora vai levar o vídeo para o conselho da escola. — revelou Sofia, que fez questão de denunciar a patricinha da escola.
— Espero que o Sr. Mars tome uma atitude firme, pois ele disse que a primeira coisa que devemos fazer é denunciar qualquer atitude suspeita para o conselho da escola. — falei, enquanto devorava um hambúrguer.
— O castigo deu fome no meu bebê. — Emmett soltou, para a surpresa de todos, que não aguentaram e riram.
— Nathan, estou tonta com essa doçura toda. — Sofia se apoiou no irmão e fingiu um desmaio.
— Pelo amor, tem alguém amando. — disse Nathan, que continuava chateado com a situação da Britney.
— Ei, cara, não fica assim. — pedi, deixando o lanche de lado e pegando no ombro dele. — Tenta conversar com a Britney.
— Pra quê? Ela sabia da armação e mesmo assim não me avisou. Eu nunca fui tão humilhado na minha vida...
— Nem quando cortou o próprio cabelo na quinta série? — perguntou Sofia, com um sorriso travesso no rosto.
— Essa eu quero ver! — exclamou Emmett, tomando um gole de refrigerante.
Sofia mostrou uma foto onde Nathan estava com o cabelo picado em diferentes partes, graças a um vídeo do YouTube. Eu quase chorei de tanto rir. Mesmo chateado, Nathan também riu e mostrou outra foto — no dia seguinte, quando sua mãe o levou para um salão e tiveram que raspar tudo.
Enquanto a gente ria, eu percebi que momentos assim eram raros. A vida é cheia de problemas, perdas e dias cinzentos, mas também é feita dessas pequenas explosões de felicidade que a gente encontra no meio do caos. Amigos que seguram a sua mão, que tiram sarro das suas piores histórias, mas que também sabem te dar força quando tudo parece desabar. Senti no peito que, apesar dos tropeços, eu estava no caminho certo.
Talvez crescer seja isso: errar, rir, chorar e, acima de tudo, ter com quem dividir tudo isso.